Modernismo brasileiro: entre a consagração e a contestação
Ana Paula Cavalcanti Simioni
Em 1995, o colecionador argentino Eduardo Constantini adquiriu na Christie’s de Nova York a tela
Abaporu, de Tarsila do Amaral, finalizada em 1928. A transação foi emblemática por ratar-se de o
maior valor já atingido por uma pintura brasileira no mercado internacional (1,3 milhões de dólares),
bem como por toda a comoção que sua venda causou no país. O fato de hoje estar exposta no
importante Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (MALBA), ombreada a nomes
consagrados como os de Frida Kahlo, Wilfredo Lam, Xul Solar e Antonio Berni, não foi suficiente para
que o episódio deixasse de ser compreendido como uma perda para a cultura nacional. Esse episódio
é uma evidência do quanto essa obra possui um valor paradigmático, ao lado de outras pinturas e
esculturas realizadas pelos artistas designados “modernistas”. Na realidade, o modernismo
brasileiro, cuja primeira fase compreende a produção realizada entre finais dos anos de 1910 e os
anos de 1940, consolidou um lugar ímpar na história da cultura no Brasil. Suas principais obras
foram, e ainda são, vistas como artefatos materiais capazes de cristalizar simbolicamente uma
cultura nacional de valor internacional. A elas foram atribuídos não apenas valores artísticos, mas
também valores culturais e políticos mais amplos, como o de símbolos identitários.
A glorificação do modernismo no Brasil é um processo que perpassa todo o século XX e que envolve
um conjunto de agentes – críticos, historiadores, curadores de arte – e diversas práticas sociais,
como o mercado de arte, as aquisições realizadas pelos museus e, ainda por vezes, uma política
cultural explicita levada a cabo pelo Estado, em sua dimensão nacional ou regional. Em linhas gerais,
pode-se dividir esse processo em três fases. O primeiro momento, que compreende o intervalo de
1917 a 1940, caracteriza-se pela construção de uma história da arte moderna no Brasil em que se
toma como ponto de vista a fala dos próprios participantes do movimento. A segunda fase, que vai
da década de 1940 até o final da década de 1970, pode ser entendida como o momento de
institucionalização da crença no valor da arte moderna no Brasil, processo que contou com a
chancela dos trabalhos produzidos no interior do sistema universitário, bem como das aquisições
oficiais de acervos notórios de artistas modernistas. No final da década de 1970, inicia-se um
momento de revisionismo crítico marcado pela emergência de diversos tipos de contestação sobre o
caráter efetivamente moderno do modernismo brasileiro, sobre os limites formais desse movimento
e ainda sobre a posição central de certos grupos e regiões do país na construção de um discurso
canônico, ao mesmo tempo em que houve tentativas de se repensar, de maneira mais matizada, o
alcance e a especificidade de tais produções no país.
Os primeiros tempos modernistas
As origens do modernismo no Brasil estão permanentemente em discussão. Tais contendas revelam
não apenas dicotomias entre modalidades de interpretação e de definição do que se entende por
modernismo, mas também clivagens regionais que envolvem grupos de intelectuais, universidades
com prestígios hierarquicamente distintos, museus, galerias e colecionadores1.
No entanto, a visão mais difundida considera que o estopim do movimento modernista ocorreu em
1922 em São Paulo. Em fevereiro desse ano, organizou-se no Teatro Municipal de São Paulo – uma
instituição central da conservadora elite paulistana inaugurada em 1914 – uma série de eventos
literários, musicais e plásticos que recebeu o nome de Semana de Arte Moderna (em referência a
modelos estrangeiros, notadamente à Semana de Deauville)2. Para muitos autores, esse episódio é
considerado um divisor de águas na história da arte brasileira, um marco zero do modernismo
nacional. Essa concepção do modernismo como movimento predominantemente paulista, defendida
1
inicialmente pelos seus protagonistas, foi retomada e reafirmada em estudos publicados na década
de 1970 (AMARAL, 1970; BRITO, [1958] 1974; ALMEIDA, [1961] 1976).
A adoção da “Semana de 22” como um marco resulta do processo de construção da memória do
modernismo brasileiro, que contou inicialmente com os textos propagados pelos próprios
intelectuais e artistas pertencentes ao círculo modernista. Eles não se configuraram como um grupo
até 1917, quando a exposição de Anita Malfatti, artista paulista que retornava de seus estudos feitos
na Alemanha e nos Estados Unidos3, exibiu obras que chocaram os meios locais. Seus vigorosos nus a
carvão e, especialmente, suas pinturas expressionistas, as quais apresentavam um cromatismo livre e
uma tematização incomum de figuras humanas – como imigrantes (O Japonês, 1915-1916, São Paulo,
Instituto de Estudos Brasileiros) ou loucos (A boba, 1915-1916, Museu da Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo) – foram mal recebidos por um público acostumado às estéticas
naturalistas e pós-impressionistas então dominantes.
Nesse mesmo ano, em reação à exposição de Anita Malfatti, Monteiro Lobato, o mais importante
crítico de São Paulo, publicou o artigo intitulado “Paranoia ou mistificação?”, no qual expressava sua
rejeição pelas vanguardas históricas, vistas como correntes opostas ao figurativismo naturalista4 (cf.
CHIARELLI, 1995). A severa crítica propagada por Lobato contra as obras da artista, que considerava
distorções de mau gosto, provocou a reação de jovens literatos e artistas visuais, como Oswald de
Andrade, Menotti del Picchia e Emiliano Di Cavalcanti, os quais passaram a defendê-la nos jornais.
Dessa feita, começaram a se reconhecer e a atuar como grupo, tendo como principal lastro
institucional a imprensa. Ainda que São Paulo fosse nesse momento a cidade mais rica do país –
graças ao capital oriundo das exportações de café, a um acelerado processo de modernização,
intensificado por levas de imigrantes, e a um embrionário processo de industrialização –, possuía
relativamente poucas instituições culturais. Dentre elas, destacavam-se a Faculdade de Direito; o
Museu Paulista, fundado em 1895 e incorporado posteriormente à Universidade de São Paulo; a
Pinacoteca do Estado de São Paulo, inaugurada em 1905 (único museu da cidade dedicado
exclusivamente às belas artes); e o Liceu de Artes e Ofícios, um espaço de formação de artistas que,
como o nome indica, destinava-se mais às artes aplicadas do que às artes puras. Por isso, como
observa o sociólogo Sergio Miceli, nesse período “em termos concretos, toda a vida intelectual era
dominada pela grande imprensa, que constituía a principal instância de produção cultural da época e
que fornecia a maioria das gratificações e posições intelectuais” (MICELI, [2001] 2005, p. 17). Os
jornais e revistas ilustrados constituíam o lócus em que tais intelectuais se encontravam, expunham
seus trabalhos e propagavam seus ideais. Foi por meio das publicações na imprensa paulistana que a
primeira geração de modernistas aos poucos se impôs localmente. As críticas deflagradas por Lobato
contra Anita Malfatti suscitaram, assim, respostas em sua defesa nos jornais: ao artigo assinado por
Oswald de Andrade no Jornal do Commercio em 1918, somaram-se os textos de Menotti Del Picchia,
publicado no Correio Paulistano em 1920, e de Mario de Andrade, no Jornal de Debates em 19215.
Ainda que não estivessem reunidos em torno de princípios coesos capazes de gerar manifestos, se
viam e eram vistos por seus adversários como “futuristas”, em referência o célebre Manifesto
Futurista, do escritor italiano Filippo Tommaso Marinetti. Preocupados em superar tudo aquilo que
viam como retrógrado na cultura brasileira, como a tradição agrária, regional e popular, além da
acadêmica e parnasiana, buscavam o compasso com o cosmopolitismo irradiado pelas vanguardas
europeias. Nesse projeto, construíam em suas obras uma imagem de São Paulo como cidade aberta à
modernização, em constante mudança, livre do passado e em permanente marcha para o futuro.
Nesse desejo de atualização imediata, São Paulo emergia como um “mito tecnicizado” (FABRIS,
1994a), lugar de ininterrupta destruição das tradições, ansiosa por todos os tipos de inovação,
receptiva às novas linguagens artísticas e às transformações sociais, politicas e culturais caudatárias
das ondas imigratórias. Mesmo se tais imagens correspondessem mais aos desejos desses
“futuristas” do que à realidade cotidiana dos habitantes da metrópole, ainda hoje estão implantadas
no imaginário que projeta a cidade como “carro-chefe da nação”.
2
Assim, nesse momento, as produções dos “futuristas” não procuravam reivindicar as particularidades
da cultura brasileira, mas bem o contrário: desejavam compassar a cultura nacional, vista como
atrasada, às experiências internacionais, consideradas cosmopolitas e progressistas. Essa ambição
encontra-se bem expressa no romance Pauliceia desvairada (1922), de Mário de Andrade, e no
álbum Fantoches da meia-noite (1921), de Di Cavalcanti. Com efeito, as obras expostas na “Semana
de 22” – com exceção das enviadas por Anita Malfatti e John Graz – não podiam ser tomadas nem
como radicalmente modernas, devido ao predomínio das linguagens pós- impressionistas e
neocoloniais, nem como eivadas de uma preocupação com a “cultura nacional” (AMARAL, 1970).
Foi ao longo da década de 1920, quando muitos artistas brasileiros usufruíram de longas estadias em
Paris com vistas a aprimorar seus estudos, que, curiosamente, as particularidades da cultura
brasileira passaram a lhes interessar. Em 1921, Antonio Gomide e Victor Brecheret aportaram em
Paris, onde já se encontrava Vicente do Rego Monteiro; em 1923, chegaram Tarsila do Amaral,
Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Celso Antônio, entre tantos outros (BATISTA,
2012). É em Paris que Di Cavalcanti realiza os primeiros desenhos de mulatas – tema que se tornou
emblemático de seu trabalho e foi diversas vezes explorado em suas obras até o fim de sua vida. Em
sua autobiografia, ele explica que: “[....] Paris pôs uma marca na minha inteligência. Foi como criar
em mim uma nova natureza e o meu amor à Europa transformou meu amor à vida em amor a tudo
que é civilizado. E como civilizado comecei a conhecer minha terra” (DI CAVALCANTI, [1955] 1995, p.
142).
Tarsila do Amaral é quem talvez melhor explicite essa transformação súbita de linguagem, temática e
consciência. Em 1921, inscrita na Academie Julian, ela exercitou-se em nus pós-impressionistas; em
1923, quando aluna de Léger, compôs uma de suas obras mais emblemáticas, A negra (1923, São
Paulo, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo), considerada “pioneira de um
estilo modernista brasileiro” (AMARAL, [1975] 2003, p. 97). Em uma carta escrita à família, a pintora
assinala estar consciente do interesse que as culturas exógenas despertavam nos meios intelectuais
franceses: “[...] Sinto-me cada vez mais brasileira: quero ser a pintora de minha terra. Como
agradeço por ter passado na fazenda a minha infância toda. As reminiscências desse tempo vão se
tornando preciosas para mim. Quero, na arte, ser a caipirinha de São Bernardo, brincando com
bonecas de mato, como no último quadro que estou pintando. Não pensem que essa tendência é
mal vista aqui. Pelo contrário. O que se quer aqui é que cada um traga contribuição do seu próprio
país. Assim se explicam os sucessos dos bailados russos, das gravuras japonesas e da musica negra.
Paris está farta de arte parisiense” (AMARAL, [1975] 2003, p. 78).
Com efeito, a experiência de Tarsila é considerada o exemplo da viagem artística ideal, um caso
“paradigmático da relação entre condição abastada, aculturação francesa e alinhamento
modernista” (DURAND, [1989] 2009, p. 77). Casada com o poeta modernista Oswald de Andrade e,
assim como ele, beneficiária de uma considerável fortuna advinda do café e do capital imobiliário,
Tarsila logrou inserir-se nos círculos internacionais da vanguarda constituídos em Paris por meio de
inúmeras estratégias, como a participação como aluna nos ateliês dos já célebres Albert Gleizes,
André Lhote e Fernand Léger; a formação de uma alentada coleção de obras modernistas, viabilizada
pelo contato direto com os próprios artistas ou com seus representantes galeristas, como Léonce
Rosemberg; e ainda o investimento na criação de sua própria imagem de pintora plenamente
moderna, como bem evidencia seu autorretrato de 1923 (Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas
Artes), em que porta um manteau de Paul Poiret, cuja fama de costureiro elegante, moderno e
“exótico” assegurou às suas criações um capital simbólico explorado pela artista nesse quadro
(MICELI, 2003).
A essa inserção estratégica da pintora na vanguarda cubista francesa, soma-se um outro dado
também muito aclamado pela intelligentzia brasileira: a criação de uma série de obras modernas que
3
dialogava com as vanguardas internacionais de seu tempo, mas a partir de elementos tidos como
“nacionais”. Essa “fase Pau-Brasil”6, como foi denominada, compreende as produções realizadas por
Tarsila do Amaral na década de 1920. Em uma carta à pintora, Mário de Andrade, o líder intelectual
do grupo modernista paulista, mostrava o quanto ele se preocupava com a possibilidade de os
brasileiros se afastarem de sua missão, a saber, a de representarem seu país: “Tarsila, minha querida
amiga/Cuidado! Fortifiquem-se bem de teorias e desculpas e coisas vistas em Paris. Quando vocês
aqui chegarem, temos briga, na certa. Desde já, desafio vocês todos juntos, Tarsila, Osvaldo e Sergio
para uma discussão formidável. Vocês foram a Paris como burgueses. Estão épatés. E se fizeram
futuristas! hi!hi!hi! choro de inveja UI! Ui! Ui! Mas que viado! Mas é verdade que considero vocês
todos uns caipiras em Paris. Vocês se parisianizaram na epiderme. Isso é horrível! Tarsila, Tarsila,
volta para dentro de ti mesma. Abandona o Gris e o Lhote, empresários de criticismos decrépitos e
de estesias de ardentes! Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata virgem, onde não há arte
negra, onde não há também arroios gentis. Há MATA VIRGEM. Criei o matavirgismo. Sou
matavirgista. Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam. [...] Um
abraço muito amigo do Mário” (Mário de Andrade, in AMARAL, [1975] 2003, p. 369).
Ao longo da década de 1920, essa visão do modernismo como um movimento de valor nacional e
internacional cujo ponto inicial seria a “Semana de 22” foi se constituindo como um dogma,
principalmente graças ao espaço que seus membros cultivaram na imprensa da época, tornada uma
espécie de arena de propagação dos ideais do grupo. Menotti del Picchia, um de seus mais
fervorosos defensores, detinha uma coluna diária no Correio Paulistano, enquanto Oswald de
Andrade possuía ampla liberdade para escrever no Jornal do Commercio, além do que era
proprietário da importante revista O Pirralho. Não por acaso, a maior realização dos modernistas
enquanto grupo, findada a “Semana de 22”, foi a publicação da revista Klaxon, vitrine de sua
produção literária, plástica e intelectual que circulou entre 1922 e 1923 (MORAES, 2011, p. 163-167).
Alçado à condição de primeiro movimento genuinamente brasileiro e compreendido como um grito
da consciência nacional, o modernismo garantiu a certos grupos e a seus protagonistas um lugar de
grande proeminência; eles tornaram-se, assim, símbolos culturais – e políticos – dos poderes de
transformação oriundos das nações “periféricas”. Andrea Giunta analisa a força das estratégias
periféricas que permitiram a vários artistas latino-americanos e, em particular, ao movimento Pau-
Brasil, que eclode com Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, apropriar-se das estruturas formais
primitivas, deslocando o sentido da “outridade” para o centro do discurso das vanguardas. Ao fazê-
lo, esses modernistas contribuíram ativamente para um discurso universalizante da modernidade
(GIUNTA, 2011, p. 300). Discurso esse que, no caso das “modernidades periféricas” (SARLO, 1988),
parecia possuir a força de uma ação libertadora. As periferias tornaram-se, enfim, partícipes dos
movimentos culturais centrais, mas a partir de valores e estratégias que lhe eram próprios.
Se os anos 1920 foram o momento de efervescência do modernismo em formação, a década de 1930
pode ser considerada a época de maturação e oficialização do movimento. O governo de Getúlio
Vargas (1937-1945), visando a se contrapor ao liberalismo e ao regionalismo que caracterizaram a
Primeira República, levou a cabo uma política centralizadora que objetivava produzir um “novo
homem brasileiro”. Para tanto, a cultura e a educação tornaram-se dimensões prioritárias,
responsáveis por moldar a “alma da nação” (SCHWARZTMAN, 1984). Uma série de políticas culturais
foram implementadas no sentido de se promover a integração nacional por meio de símbolos que
até hoje identificam os sinais de “brasilidade”, tais como a feijoada 7, a capoeira e o samba: práticas
anteriormente combatidas, posto que associadas ao passado escravista, foram então consideradas
sinais da convivência pacífica entre raças e culturas, permitindo celebrar a “mestiçagem” como
elemento nacional integrador (SCHWARCZ, 1995).
No campo das artes e da arquitetura, o ministério liderado por Gustavo Capanema decidiu fazer da
área da cultura um negócio de Estado, atribuindo-lhe um orçamento que permitia a realização de
4
encomendas e criando uma intelligentzia, um corpo tecnicamente qualificado para dar vazão a suas
realizações (MICELI, [2001] 2005). Inaugurou-se um campo frutífero de possibilidades para
intelectuais, artistas e arquitetos – vários dentre eles de orientação modernista –, os quais foram
chamados a participar de um regime claramente autoritário. O caso mais emblemático é o da sede
do Ministério da Educação e Saúde, cuja construção devia materializar os discursos sobre a nação.
Para tanto, abriu-se um concurso para escolha dos melhores projetos e o vencedor foi o arquiteto
neocolonial Archimedes Memória. Esse fato desagradou o ministro, que desejava uma linguagem
mais moderna. Capanema anulou o concurso e convidou o arquiteto e urbanista de orientação
modernista Lucio Costa, cujo projeto havia sido inicialmente desclassificado. Formou-se então uma
equipe composta por Affonso Reidy, Carlos Leão, Jorge Moreira e Oscar Niemeyer, a qual contou
com a assessoria prestigiosa de Le Corbusier, arquiteto modernista franco-suíço que possuía então
uma relativa projeção internacional. O edifício constitui uma primorosa síntese visual do
modernismo brasileiro. Por um lado, absorve elementos do paradigma internacional defendido por
Le Corbusier, como o uso de pilotis para liberar o piso térreo, de uma fachada em vidro, de uma
planta livre e de brise-soleil, fatores associados a um discurso progressista voltado à celebração do
futuro. Por outro lado, relê e reinsere uma suposta “tradição” arquitetônica brasileira na medida em
que se vale de materiais como azulejos brancos e azuis – concebidos pelo pintor mais afamado da
época, Candido Portinari – para revestir as paredes externas do prédio; nobres madeiras nacionais
(como a sucupira) para a confecção do mobiliário; lioz8 português para revestir os pisos nobres e
ainda gnaisse carioca para revestir as empenas – duas pedras muito empregadas pelos escultores
barrocos cariocas. Tais elementos materializam a retomada imaginária de um certo passado
vinculado ao barroco, de sorte que, nesse edifício, futuro e passado encontram-se interligados
(WILLIAMS, 2001; CAVALCANTI, 2006).
Em seu interior, destaca-se o conjunto de pinturas murais encomendas a Candido Portinari, que
consagrara-se em 1934 com a composição O Mestiço (1934, São Paulo, Pinacoteca do Estado de São
Paulo), mostrando ser capaz de heroicizar tipos humanos populares, especialmente mestiços e
negros. Essa assimilação visual de questões raciais alinhava-se com os discursos então vigentes junto
a setores da intelectualidade nacional, e sua arte ganhou rapidamente a aprovação do Estado Novo,
aderindo ao ideário governamental. Portinari realizou dez painéis para o Ministério, cada um
figurando um dos momentos específicos dos diversos ciclos econômicos que constituem a trajetória
da nação: Pau-Brasil, Borracha, Açúcar, Café, etc. Ao combinar elementos clássicos e modernos,
utilizando-se da deformação e de elementos expressionistas, o artista criou tensões não apenas
entre os planos compositivos mas também entre a ideologia trabalhista e racial propagada pelo
governo, de um lado, e a figuração particular de heroísmo construída nessa série, de outro. O pintor
ousou ao representar os negros e mestiços como protagonistas da história do país: homens e
mulheres anônimos, força de trabalho expropriada e vitimada (FABRIS, 1996).
Com o Estado Novo, o modernismo alcançou uma proeminência notável. Após o Ministério da
Educação e Saúde, o Conjunto da Pampulha, construído entre 1942 e 19439, também mobilizou
grandes nomes da arquitetura e das artes plásticas. Realizado em Belo Horizonte, o projeto
consagrou definitivamente Niemeyer e Portinari como expoentes, respectivamente, da arquitetura e
da pintura modernista brasileira. Nos anos seguintes, seguiram-se outras encomendas de destaque,
como o Parque do Ibirapuera, inaugurado em 1954 em São Paulo, e a cidade de Brasília, construída
entre 1956 e 1960. Consagrado nacionalmente, o modernismo passou também a ser exportado
como “imagem do país”.
Durante o Estado Novo, em um contexto político de aproximação entre os Estados Unidos e a
América Latina, fomentou-se uma série de eventos com o objetivo de elaborar uma imagem positiva
do Brasil. Em 1940, foi realizada a exposição Portinari of Brazil no Museum of Modern Art (MoMA) e,
em 1943, a importantíssima Brazil Builds, também ocorrida no MOMA10. Idealizada por Philipp
Goodwin, curador da instituição, essa exposição contou com um catálogo que se tornou uma
5
referência internacional sobre a arquitetura brasileira, representada por meio de imagens de
edificações barrocas e construções modernistas. É importante lembrar também a participação do
país na Feira Mundial de Nova York, em 1939-1940, com um pavilhão projetado por Lucio Costa e
Oscar Niemeyer. Na década seguinte, Niemeyer e Portinari foram consagrados definitivamente no
âmbito internacional ao colaborarem na construção da sede das Nações Unidas: o arquiteto carioca
foi um dos coautores do projeto arquitetônico e o pintor paulista realizou dois imensos painéis
representando a Guerra e a Paz. A batalha para expandir e consolidar o modernismo brasileiro havia
sido vencida.
O modernismo se impôs como cânon nacional incontestável até o ingresso das linguagens
construtivas no país durante os anos 1950. A introdução das correntes abstratas, especialmente com
a inauguração da Bienal de São Paulo em 1951, colocou em cheque o predomínio das linguagens
figurativas constitutivas do programa modernista que se propagara no Brasil desde os anos 1920. Ao
longo da década de 1950, presenciou-se a ascensão do abstracionismo geométrico (mais conhecido
no Brasil pelo nome de concretismo) como uma nova vanguarda nacional (BRITO, 1985; COUTO,
2004). A ascensão da arte abstrata trouxe consigo a desvalorização da produção das gerações
anteriores e, com isso, uma certa marginalização das obras e dos artistas modernistas.
NOTAS
1. O Brasil é um país complexo, composto por estados com relativa autonomía. No entanto, os principais recursos estão
concentrados nas regiões Sudeste e Sul; nesse sentido, sublinha-se a concentração do mercado da arte em cidades como
São Paulo e Rio de Janeiro, as quais tendem a competir pelo título de “capital artística e intelectual” do país, a despeito da
importância da produção crítica e historiográfica de outros estados. Sobre o campo artístico brasileiro, os museus e as
políticas públicas, cf. FIALHO, 2012; sobre a concentração de exposições e curadores em São Paulo e no Rio de Janeiro, cf.
CYPRIANO, 2012.
2. A ideia de usar a Semana de Deauville como modelo para a Semana de Arte Moderna de 1922 foi uma sugestão de
Marinette Prado, esposa de Paulo Prado, um rico intelectual de São Paulo e também um dos mecenas da “Semana de 22”.
De acordo com o seu depoimento a Aracy Amaral, a Semana de Deauville, que existia desde o século XIX, ocorria durante o
verão e reunia exposições de arte, de moda, etc. (cf. AMARAL, 1998, p. 128-129).
3. Anita Malfatti estudou artes plásticas com Fritz Burger e Lovis Corinth em Berlim entre 1910 e 1914, quando retornou ao
Brasil após o início da Primeira Guerra Mundial. No ano seguinte, sempre contando com o apoio e com a ajuda financeira
de sua família, foi para Nova York dar sequência à sua formação. Estudou inicialmente na Art Students League e, em
seguida, com Homer Bross, na Independent School of Art, onde ficou até o seu retorno definitivo ao Brasil, em 1917
(BATISTA, [1985] 2006).
4. Monteiro Lobato, “A Propósito da Exposição Malfatti”, in O Estado de S. Paulo, 20 de dezembro de 1917.
5. Vários dos primeiros artigos escritos pelos modernistas foram publicados nos livros de Marta R. Batista (BATISTA, 1972) e
Mário da Silva Brito (BRITO, [1958] 1974).
6. O pau-brasil, uma espécie vegetal bastante comum no momento da chegada dos colonizadores portugueses ao Novo
Mundo, deu nome ao país. O uso dessa expressão pelos modernistas brasileiros revela, assim, a importância que eles
atribuíam às questões “nativas”.
7. A feijoada, prato tradicional consumido pelos escravos no Brasil, é composta de feijão e pedaços de carne de porco
misturados com arroz (introduzido no século XIX por imigrantes japoneses) e couve (uma planta indígena). Durante o
governo de Getúlio Vargas, ela foi considerada “o prato típico nacional”, pois permitia celebrar a noção de mestiçagem
defendida pelo regime.
8. Pedra calcária branca utilizada em esculturas e obras arquitetônicas; também pode ser usada como material de
revestimento.
9. O Conjunto da Pampulha, situado às margens de um lago artificial a 18 km de Belo Horizonte, era composto de quatro
prédios: o Cassino (hoje transformado em museu de belas artes), a Casa de Bailes (onde hoje funciona um centro de
estudos sobre urbanismo, arquitetura e design), o Iate Clube e a Igreja de São Francisco de Assis, totalmente decorada por
Portinari. Esse foi o primeiro grande projeto de Oscar Niemeyer.
10. Portinari of Brazil, (cat. expo., New York, The Museum of Modern Art, 1940), Nova York, 1940; Brazil Builds: Architecture
New and Old, 1652-1942, Philip L. Goodwin E., (cat. expo., New York, The Museum of Modern Art, 1943), Nova York, 1943.