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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP


REPOSITÓRIO DA PRODUÇÃO CIENTIFICA E INTELECTUAL DA UNICAMP

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Cidade Universitária Zeferino Vaz Barão Geraldo


CEP 13083-970 – Campinas SP
Fone: (19) 3521-6493
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M. SELIGMANN-SILVA, «Rosana Paulino: a arte como resistência…»

Rosana Paulino: a arte como resistência aos


apagamentos da violência colonial

MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
U N I V E R S I D A D E E S T A D U A L D E C A M P I N A S , UNICAMP, B R A S I L
[email protected]

Introdução

1. Jaime Lauriano, um dos mais influentes artistas afrodescendentes no


Brasil hoje, empregou uma “pemba branca”, giz utilizado em rituais de
umbanda, sobre “algodão preto”, em uma de suas obras na exposição A
empresa colonial (2015/2016), ocorrida na Caixa Cultural São Paulo e com
curadoria de Tomás Toledo. Com esse material, Lauriano retraçou o mapa
do Brasil, essa linha política, como parte de uma política do corpo e de
autoafirmação. Usurpando o poder de traçamento dos agentes cartógrafos a
serviço do poder, ele inscreve com pemba branca limites ressignificados: o
branco da pemba vira meio de inscrição das populações historicamente
oprimidas. Seu título estampa em tom irônico: República (democracia
racial) (2015). E, tensionando a imagem com um texto, Lauriano inscreve
ao pé do mapa do Brasil uma estrofe do “Hino à Proclamação da Repú-
blica”, um verdadeiro monumento ao esquecimento, já que suas palavras
(de autoria de Medeiros de Albuquerque) perpetram um crime de apaga-
mento: “Nós nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre
País…/ Hoje o rubro lampejo da aurora/ Acha irmãos, não tiranos hostis”.
Esse texto foi escrito em 1889, apenas um ano, portanto, após a “abolição”
oficial do sistema de escravidão. A abolição revela-se, como pode-se ler com
Abdias Nascimento (2016), um modo de aniquilamento, de morte e de polí-
tica do esquecimento. Aboliu-se a escravidão para se abandonar melhor os
negros à necropolítica capitalista moderna, sucedânea da necropolítica da
plantation. Lauriano tem outras importantes obras feitas com pemba sobre
fundo negro que traçam os contornos do mapa do Brasil para repensar
esses limites do ponto de vista decolonial. Recordo aqui seu impressionante

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M. SELIGMANN-SILVA, «Rosana Paulino: a arte como resistência…»

Invasão, etnocídio, democracia racial e apropriação cultural, de 2017, que


esteve na exposição, Agora somos todxs Negrxs? (2017, ocorrida em São
Paulo no Galpão VideoBrasil, com curadoria de Daniel Lima).
2. O que ocorre nessas exposições, curadorias e com essa multiplicação
de artistas negrxs? Antes de mais nada, a ruptura da cumplicidade entre o
dispositivo estético e o colonial. Explico-me. O classicismo, que está na base
do nascimento da história da arte, com Winckelmann, e também sustenta a
teoria estética da arte de Kant e sucedâneos, impõe-se como uma poderosa
máquina ontotipológica (Lacoue-Labarthe e Nancy, 2002). Esse modelo
clássico gera o “próprio” eliminando o “outro”, que é produzido nesse
mesmo gesto de produção/aniquilação. Estamos diante de um dispositivo, o
dispositivo estético, talvez o mais violento que a modernidade criou, pois é
a partir dele que se produz a linha divisória entre os dignos de direitos e de
solidariedade e aqueles que são a “carne” da máquina colonial (Seligmann-
Silva, 2019; 18-42). O dispositivo estético é um aliado do dispositivo colo-
nial, ambos produzem e aniquilam os seus “outros”. O “próprio” (europeu),
para existir, necessita de seu não-eu, o “outro”, seja a África ou o Oriente,
como autores como Frantz Fanon (1952), Abdias Nascimento (2016),
Edward Said (1978), e Stuart Hall (2003) o constataram no século XX e,
mais recentemente, toda uma série de autores pós-coloniais desenvolveram
em seus trabalhos, como Achille Mbembe (2017) e Grada Kilomba (2019).
3. Podemos dizer que a luta que se dá no campo das artes afrodescen-
dentes no Brasil é a luta pelo reconhecimento do elemento violento, ideoló-
gico, de apagamento dos negros e de uma miríade de culturas, no bojo
dessa ideologia estética “universal” e universalizante (ou seja, aniquiladora
doas “outros”, do “diferente”), antes de mais nada branca, eurocêntrica e
racista.
4. Não se pode mais falar de modo inocente de “democracia racial” ou
comemorar nossa cultura “sincrética” e a “miscigenação” sem perceber o
trauma que está na origem dessa hibridização. Com as mudanças profundas
ocorridas no campo das artes nas últimas décadas do século XX, ocorreu
uma ascensão do sujeito, do agente da arte, que antes estava em parte sub-
metido ainda ao campo da representação. Era como se o artista simples-
mente representasse o mundo, como um cientista ou um observador neutro
–universal. Uma série de artistas afrodescendentes, quase todos formados
em artes visuais, e coletivos artísticos passaram a interagir na cena cultural

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M. SELIGMANN-SILVA, «Rosana Paulino: a arte como resistência…»

brasileira desse ponto de vista da virada de(s)colonial. Eles vão imaginar a


negritude nos espaços da diáspora. Imaginar no sentido de criar imagens,
mas também de criar um campo de ação lúdico e político. Com a entroniza-
ção do sujeito e o deslocamento do campo estético em direção à política e às
micropolíticas, essa repolitização da arte implicou novas costuras da
memória, para jogar com o título da exposição de Rosana Paulino na Pina-
coteca que analisarei a seguir. O elemento testemunhal se torna central.
Rompe-se com a ditadura do cubo branco modernista que tentou eliminar a
relação das artes com a sociedade e o campo político. Às artes intelectuali-
zadas, depuradas do corpo e das paixões, do Renascimento à arte moder-
nista, sucede-se uma nova arte do corpo, performática, “quente”, eivada de
política e de desejo de intervenção na vida. O campo estético foi fraturado,
para o bem das artes, dos artistas e da sociedade. Ao mesmo tempo, no Bra-
sil ocorre na primeira década deste século um aumento do apoio às artes,
com mais prêmios, bolsas e opções de espaços expositivos, fruto de uma
expansão econômica acompanhada de uma democratização que se refletiu
também nas Universidades e na cultura como um todo. Esse movimento
começou a oscilar de volta por conta da crise econômica e política a partir
de 2013. Mas nem por isso as exposições deixaram de ocorrer: o campo
estético-político já estava por demais ocupado por essas novas modalidades
e modos de imaginar e costurar a memória. O programa do atual
governo (2019-2022) visa, via censura, cortes profundos no investimento
na área cultural e ataques organizados por milícias, asfixiar esse boom de
arte crítica no qual a arte negra se inseriu. O tensionamento produzido pelo
atual governo de caráter abertamente racista e neofascista produziu respo-
stas importantes, como o recente incêndio da estátua de Borba Gato em São
Paulo, realizado pelo grupo “Revolução Periférica” em 27 de julho de 2021
ou o incêndio da estátua de Pedro Álvares Cabral, no bairro da Glória, no
Rio de Janeiro, em 23/09/2021. Esse gesto simbólico contra a monumenta-
lização de Borba Gato desencadeou inclusive, de modo imediato, novas
políticas públicas. A cidade de São Paulo está fazendo um levantamento de
seus monumentos coloniais e propondo homenagear personalidades negras
com novos monumentos. Se é claro que a modernidade nasceu com a Revo-
lução Francesa e a tomada e destruição da Bastilha e, na mesma toada, o
tempo moderno é vertiginoso: tudo que é sólido desmancha no ar, escreveu

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Marx, por outro lado, temos que pensar como esses movimentos iconoclas-
tas e iconofílicos se dão. Marcos, monumentos e memoriais são esteios para
narrativas e para ações políticas. Perpetuar a colonialidade sob a forma de
monumentos, homenagens, nomes de ruas e logradouros implica perpetuar
o racismo, a exclusão, a violência de gênero, de classe etc. Por outro lado,
não se trata de acreditar que, trocando um monumento por outro, a colo-
nialidade irá ruir: temos que pensar para além da história monumental,
como já proclamava Nietzsche em 1873.
5. Para verticalizar essa discussão sobre a arte negra contemporânea no
Brasil e sua contribuição para essa crítica da colonialidade, me deterei na
produção Rosana Paulino, mesmo que de modo breve e focando em apenas
algumas de suas obras, para indicar a força dessa produção e seu caráter
exemplar.
6. Rosana Paulino é reconhecida como uma pioneira na nova arte negra
brasileira. Sua obra Parede da memória, de 1994, é uma referência dentro
dessa produção. Essa obra é composta por 11 fotografias de sua família que
se repetem atingindo diferentes números, chegando a atingir 1500 dessas
fotos, que são impressas sobre tecido em tamanho de cerca de 8 x 8 x 3 cm
cada, formando patuás, ou seja, um elemento da religiosidade afro, que tem
um valor de amuleto no candomblé. Cada patuá leva cores específicas, asso-
ciadas a Orixás que irão então proteger aquele que porta o talismã. Lembre-
mos que Abdias Nascimento escreveu sobre o candomblé como “o ventre
gerador da arte afro-brasileira” (Nascimento, 2016; 125). É importante pen-
sar que a própria Rosana Paulino narra a sua carreira a partir dessa obra
emblemática que esteve também presente na sua recente exposição na
Pinacoteca de São Paulo de 2018-2019.

1.

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M. SELIGMANN-SILVA, «Rosana Paulino: a arte como resistência…»

2.

Imagens 1, 2 e 3 - Título: Parede da memorioa - Artista:


PAULINO Rosana- Ano: 1994

7. Parede da memória, na sua apresentação apenas aparentemente


simples, sintetiza na verdade o encontro de vários gestos: o fotográfico, o da
costura, o da rememoração tanto da família como de uma origem afro. A
obra também alude aos universos da religiosidade, do jogo (jogo de memó-
ria) e da montagem, já que se trata de um arranjo que está sempre em
movimento, sendo remontado, sem nunca deixar de ser a Parede da memó-
ria. Essa parede com uma série de patuás, não deixa de ser uma versão

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contemporânea afro dos loci memoriai, os lugares de memória da mnemo-


técnica. Nessa tradição une-se a memoria rerum, memória das coisas, com
a memoria verborum, memória das palavras. Os imagines agentes, ou seja,
agentes da memória, são colocados em certos locais para se narrar imageti-
camente histórias (Yates, 1966). Existe um movimento nessa obra de Pau-
lino de apropriação de elementos da memória, de uma memória próxima,
familiar, mas também distante, associada a uma ruptura, a uma deriva, de
um saber e de um modo de estar no mundo o qual, de certa forma, a artista
reconhece como seu. Como nas palavras de Musa Michelle Mattiuzzi,
Rosana Paulino parece de fato “habitar as ruínas da colonialidade”, ela se
apresenta como alguém que sabe “habitar e reviver as ruínas dessa plurali-
dade afro-atlântica” (Pedrosa, Carneiro e Mesquita, 2018; 607-609). Sua
parede da memória porosa, cheia de espaços e em movimento, abre nosso
olhar para a uma história que costuma ser sistematicamente apagada, ocul-
tada. Ela atravessa e rompe com o robusto muro do esquecimento erigido
pelas narrativas da colonialidade.
8. Refiro-me ao pequeno e poderoso texto de Musa Michelle Mattiuzzi
publicado no catálogo Histórias afro-atlânticas. Vale a pena cita-lo, já que
apresenta uma espécie de manifesto decolonial da maior importância hoje
no Brasil marcado pelas política neocoloniais e pela resistência a essa
máquina colonial rediviva: “Na história contada pela branquitude –que
ainda hoje apresenta facetas de um Brasil colonial– a noção compulsória
sobre o “outro” é o que qualifico de mirada folclórica branca sobre aspectos
da estética negra e indígena. É um olhar e uma prática construídos a partir
do uso de signos que engendram a necropolítica como possibilidade de
inclusão e de representatividade, em um jogo perverso da linguagem branca
de captura e visibilidade. Penso isso quando investigo as narrativas que
fazem parte desse imaginário supremacista. Penso isso de Tarsila do Ama-
ral (1886-1973), artista que pintou a obra A negra que, se analisada fria-
mente, é de cunho racista, embora tenha conseguido fazer-se creditada por
uma falsa narrativa de que a representatividade importa e tenha sustentado
durante muito tempo o mito da diversidade racial e cultural desse país. Há
uma tecnologia política dos colonos herdeiros de criar soterramentos. […] A
“arte” destas terras que nunca deixaram de ser colônia, uma “arte” insti-
tuída aqui com o violento processo de inserção na modernidade ocidental.
“Arte” como o meio privilegiado por onde circulam as ideias escritas e a
criação visual realizadas por colonos herdeiros, estes que fazem parte de

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uma classe social abastada, que operam os signos na onda de apropriação e


tratam as suas ideias como universais. Na representação do discurso de que
somos todos iguais eles nos expropriam. Vejo a etnografia como parte e
como exemplo de agenciamento do poder dessas elites aplicado por meio de
um método científico. […] Se não vamos mudar nada, que ao menos possa-
mos habitar as ruínas da colonialidade e sobreviver de alguns encon-
tros. […] Escurecer com o meu negrume. […] [S]aber habitar e reviver as
ruínas dessa pluralidade afro-atlântica” (Mattiuzzi, 2018; 607-609).
9. A fotografia se tornou uma metáfora fundamental na arte contempo-
rânea e, no Brasil, tem estado na base da produção de artistas que lidam
com a memória e, mais ainda, com o esquecimento. Recordo Hélio Oiticica,
com seu Bólide caixa 18 “Homenagem a cara e cavalo”, de 1966 ou o seu
famoso seja herói, seja marginal de 1968 Recordo ainda de Paulo Nazareth,
figura chave na arte negra atual, assim como das fotografias de Ayrson
Heráclito (Diegues, 2013). A fotografia, sobretudo a analógica, tem um
momento de “impressão” (vale lembrar que Rosana Paulino é bacharel e
especialista em gravura) (Lopes, 2018; 171). A fotografia reatualiza outras
metáforas da memória, como a escritura, metáfora também fundamental na
referida tradição da arte da memória com sua ideia de inscrição mnemô-
nica. Afinal, a fotografia é literalmente uma escrita de luz. Mas ela também
remete à concepção psicanalítica de nossa memória como composta por
camadas, umas mais outras menos conscientes. A inscrição do trauma tam-
bém já foi comparada a um flash fotográfico. A fotografia enquanto retrato
tem também um elemento corpóreo e fantasmático: o retrato fotográfico
literaliza ambiguamente o aparecer e o desaparecer, a presença e a ausên-
cia, o desejo de ver e o evanescer da imagem. Paulino se torna também
nessa sua obra/jogo quem dá as cartas na cena da apresentação dos corpos
negros. Como Eustáquio Neves e seus retratos, ela afirma-se como agente
de suas imagens e não mais como objeto representado e sem fala própria. A
obra consegue ser ao mesmo tempo extremamente contemporânea e citar
passados mais ou menos próximos. Ela é um buraco no tempo, cria uma
metaespacialidade e outros cronotopoi. A fotografia é tratada como frag-
mento, escombro, sobrevivência de um naufrágio e é em torno de fotogra-
fias apropriadas, suas cópias, recortes e inversões, que boa parte da obra de
Paulino se constrói. Isso sem, no entanto, romancear alguma origem per-

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dida, ou estabelecer alguma ontologia identitária. Antes, a reprodução téc-


nica das fotografias desconstrói qualquer visada essencialista. Trata-se de
abrir espaço para se imaginar origens e narrativas alternativas às construí-
das pelos discursos coloniais.

Imagens 4 - Título: Bastidores - Artista: PAULINO


Rosana - Ano: 1997

10. Na sua série de 1997 de Bastidores, ela costura os olhos, a garganta, a


boca e a fronte de retratos fotográficos de mulheres negras colecionadas por
ela nos álbuns de sua família. Como em muitas obras de Rosangela Rennó,
essas fotografias são programaticamente precarizadas, para indicar apaga-
mentos, perdas, subtrações, mas também para indicar que essas mulheres
são ao mesmo tempo indivíduos singulares, o mesmo valendo para todas
aquelas que se identificam com elas. O ato da artista é sempre duplo: ao

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costurar a boca e o pescoço, ela se assume como agente da fala, descostu-


rando a sua boca e a de quem admira o seu trabalho. Ao costurar os olhos,
ela se institui como agente na construção das imagens e do imaginário
contracolonial, descosturando os seus olhos e os dos que veem sua obra. Ao
costurar a fronte, ela se assume como agente pensante e não como objeto
pensado, dissecado pela ciência e esmagado pelo trabalho servil, descostu-
rando o seu cérebro e do seu espectador. Em uma palavra, ela afirma: sou
dona do meu corpo, a mulher negra manda em seu corpo, isso em uma
sociedade ainda colonial, falocêntrica, racista que oprime tanto corpos
negros como femininos ou que não correspondam ao padrão cisgênero. Ao
denominar sua obra Bastidores, ela joga com o significado múltiplo do
termo: por um lado, ela explicita os bastidores dessa sociedade com seu
gesto de costurar nos rostos desses retratos. Mas bastidor remete aqui tam-
bém ao suporte da tecelagem que é onde essas fotografias foram impressas.
Ao invés de costurar “comportadamente” e fazer as suas tecelagens cum-
prindo o papel “feminino” que a sociedade impõe às mulheres, Paulino des-
loca o bastidor, rompe com seu papel de instrumento de controle de gênero
e transforma-o em dispositivo de sua arte eminentemente política. Esse
gesto, de resto, tem sido recorrente entre mulheres resistentes e revolu-
cionárias da história e da memória na América Latina, como as “Arpilleras”
do Chile.
11. Mais recentemente, a artista tem trabalhado com a costura de frag-
mentos de tecido, que chamarei de “retalhos” para enfatizar o seu elemento
de fragmentação e de precarização, nos quais se vê impressas algumas das
fotografias e gravuras mais icônicas realizadas por fotógrafos e artistas, na
sua maioria viajantes ou emigrados, feitas no Brasil no século XIX. Em
alguns desses “retalhos” estão impressas imagens de azulejos, representati-
vos da arquitetura e da cidade colonial portuguesa (como ocorrem também
em muitas obras de outra importante artista brasileira que tematiza a vio-
lência colonial, Adriana Varejão). A obra de Paulino Musa paradisíaca, de
2018, reproduz três vezes a mesma fotografia de Marc Ferrez (“o mais
importante dos fotógrafos atuantes no Brasil no século XIX”) (Lago, 2001;
14), conhecida como “Uma vendedora de banana” (Ermakoff, 2004; 116), ao
lado de reproduções de três representações “científicas” de temas da botâ-
nica, uma radiografia de uma bacia e um retalho branco com inscrições em

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M. SELIGMANN-SILVA, «Rosana Paulino: a arte como resistência…»

letras maiúsculas em vermelho, de diferentes tamanhos, citando a conhe-


cida marchinha de carnaval “YES, NÓS TEMOS BANANA”. Aqui vemos um
traço irônico na obra de Paulino, irônico, mas sarcástico também, com rela-
ção aos clichês que constituem a “brasilidade”. Ao costurar esses “retalhos”,
cacos da história montados pela artista, novamente ela descostura as estru-
turas do imaginário colonial realizando o que eu gostaria de chamar de um
anarquivamento do arquivo colonial (Seligmann-Silva, 2014; 35-58). As
fotografias e imagens coloniais dos negros os enquadram em um imaginário
que busca reproduzir a opressão. Essas imagens são imagens encobridoras,
Deckerinnerungen, nos termos de Freud, do mesmo modo que os monu-
mentos aos Bandeirantes e outros adeptos da violência colonial. Essas ima-
gens e monumentos precisam ser abalados via anarquivamento. Essa mul-
her anônima fotografada por Marc Ferrez em torno de 1885 também foi
enquadrada por ele em uma moldura dupla, ao lado de outra negra vestida
como “baiana”. Estamos, portanto, da baiana à “mulata do samba”, em
pleno nascedouro de uma poderosa construção da imagem da mulher brasi-
leira negra, de seu corpo e de seu comportamento. Esse clichê (fotográfico e
de papel social) vai aos ares com a montagem costurada por Paulino.

Imagens 5 - Título: A ciência é luz da verdade


3 - Artista: PAULINO Rosana - Ano: 2016

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12. Outra obra com recursos semelhantes é A ciência é luz da verdade 3?,
de 2016. Ela é composta por três “retalhos” costurados um ao lado do outro.
Os dois da ponta reproduzem com as mesmas letras vermelhas da obra
anteriormente comentada a frase que dá título a esta obra: A ciência é luz
da verdade? No centro vemos uma fotomontagem que sobrepõe a uma ima-
gem de azulejo duas caveiras, uma acima da outra. O tema da ciência é
recorrente na obra de Paulino e remete em grande parte às doutrinas euge-
nistas (defendidas por um Nina Rodrigues, assim como por alguns dos fotó-
grafos e artistas que circularam no Brasil no século XIX). Assim, sua obra
Atlântico vermelho, de 2017, monta 11 pedaços de tecido, sendo que no do
canto superior esquerdo temos uma das famosas fotografias antropométri-
cas realizadas por August Stahl.
13. Stahl foi um fotógrafo de origem alemã que chegou a Recife em 1853,
tendo se instalado a partir de 1870 no Rio de Janeiro. Em 1865 chegou ao
Brasil a Expedição Thayer, financiada pelo milionário norte-americano
Nathaniel Thayer, que tinha por função fazer fotografia de negros, indíge-
nas e asiáticos, tendo em vista alimentar as pesquisas do professor suíço
naturalizado norte-americano Louis Agassiz (2000). Posteriormente, Agas-
siz fará referência a esse trabalho fotográfico de Stahl em seu livro, onde
apresenta a sua visão antropométrica das raças humanas e que deveria
revelar como falsa a teoria de Darwin sobre a origem das espécies, mas sem
imprimir no livro as fotografias feitas por Stahl. Esse livro, redigido junto
com a sua esposa, se chamava Permanence of Characteristics in Different
Human Species. Segundo nos conta Sérgio Burgi em sua apresentação das
fotografias de Stahl, como Agassiz havia solicitado as fotos a Stahl no ano
da abolição da escravidão nos Estados Unidos, essas imagens depois não
puderam ser aproveitas, pois após a Guerra Civil Americana “não permiti-
ram mais especulações antropométricas que tivessem um caráter discri-
cionário, como mostram as imagens comparativas encontradas nos álbuns
[com as fotografias de Stahl], provavelmente inseridas por Agassiz, compa-
rando a estatuária greco-romana clássica com os retratos produzidos por
Stahl, para fins de comparações de raças” (Lago, 2001; 11). D. Pedro II, o
imperador do Brasil então, apoiou com entusiasmo essa expedição de Agas-
siz (Roquette-Pinto, 2000; 288).

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M. SELIGMANN-SILVA, «Rosana Paulino: a arte como resistência…»

14. Nessa linha de desconstrução crítica das engrenagens da máquina


colonial é digno de menção o trabalho da artista de origem jamaicana Sasha
Huber que, vinculada a um projeto mais amplo “Demounting Agassiz”, fez
uma obra chamada “Agassiz down under” e uma série de mostras ao redor
do mundo como parte também de uma campanha para se “desomenagear”
esse eugenista suíço-americano famoso, que nomeia pelo mundo afora
dezenas de pontos geográficos, inclusive as Furnas de Agassiz, na Tijuca,
Rio de Janeiro, sobre a qual o naturalista escreveu em seu mencionado livro
de viagens1.

Imagens 6 - Título: Atlântico vermelho - Artista:


PAULINO Rosana - Ano: 2017

1 Remeto os interessados no projeto de Sasha Huber ao seu site:


http://www.sashahuber.com/?cat=27&lang=fi&mstr=4, que contém a fotografia de uma
performance que ela fez na Tijuca em 2010.

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15. Voltando ao Atlântico vermelho de Paulino, além da mencionada foto


de Stahl para Agassiz, com um negro de perfil nu, vemos nessa obra tam-
bém uma fotografia de João Gaston (um fotógrafo da Bahia), “Negra
posando em estúdio”, de 1870 (Ermakoff, 2004; 158), que apresenta uma
negra com um barril na cabeça, e ainda temos três azulejos impressos em
tecido, um deles com o título da obra inscrito em vermelho, temos um
“retalho” com a imagem de um fêmur humano, dois com imagens de
embarcações que lembram caravelas, e um último com escravizados trabal-
hando no canavial. Uma fotografia de Gaston é revelada de modo padrão,
positivo, outra com a luminosidade de um negativo, invertendo os preto e
branco, o mesmo ocorrendo com as imagens das “caravelas”. Os rostos de
uma das fotos da negra com um barril na cabeça e a da mulher na imagem
na plantação de cana de açúcar estão vazados.

Imagens 7 - Título: “As gentes”, do livro-obra ¿História


natural? - Artista: PAULINO Rosana - Ano: 2016

16. Esse procedimento de retirar aos rostos das imagens apropriadas


acontece em outros de seus trabalhos, a partir do relativamente vasto
acervo da fotografia de escravizados e “negros libertos” do século XIX. Isso

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acontece com a fotografia, também de August Stahl, “Mina Ondo”, de 1885


(Ermakoff, 2004; 240) parte central da prancha “As gentes”, do livro-obra
¿História natural?, 2016. Nessa mesma prancha, Paulino reproduz, flan-
queando a Mina Ondo, a imagem famosa do indígena Muxuruna do volume
de 1823, Reise in Brasilien, de Johann Spix e Carl Friedrich Philipp von
Martius (Spix e Martius, 2017; 48). Assim como Agassiz, que fora assistente
na publicação da obra resultante da expedição ao Brasil de Martius e Spix,
esses dois últimos em seus diários de viagem não deixam dúvidas quanto ao
papel dos viajantes como formadores da ideologia colonial com seu núcleo
racista. Cito apenas uma passagem da obra desses autores sobre suas
impressões do Brasil: “Língua, costumes, arquitetura e afluxo dos produtos
da indústria de todas as partes do mundo dão à praça do Rio de Janeiro
aspecto europeu. O que, entretanto, logo lembra ao viajante que ele se acha
num estranho continente do mundo, é sobretudo a turba variegada de
negros e mulatos, a classe operária com que ele topa por toda parte, assim
que põe o pé em terra. Esse aspecto foi-nos mais de surpresa do que de
agrado. A natureza inferior, bruta, desses homens importunos, seminus,
fere a sensibilidade do europeu que acaba de deixar os costumes delicados e
as fórmulas obsequiosas da sua pátria” (Spix e Martius, 2017; 48).
17. Em “As gentes”, portanto, o indígena também está sem rosto. O
mesmo acontece na série Paraíso tropical, de 2017 com fotografias de Marc
Ferrez, a mesma vendedora de bananas que vimos acima, ocorrendo ainda
com uma foto de Albert Henschel, de 1870 de uma “negra posando em ate-
liê” (Ermakoff, 2004; 117) e com outra de August Stahl de “Mina Bari”, de
1865, de uma mãe com o filho às costas (Ermakoff, 2004; 233), entre
outras. Em Paraíso tropical, essas imagens são associadas a caveiras e ima-
gens de tipo representação botânica “científica” dos viajantes. Esses rostos
ausentes podem ser lidos tanto, como o faz Juliana Ribeiro da Silva Bevila-
qua no catálogo da exposição na Pinacoteca de 2018, uma metáfora do
vazio, como também podem remeter ao processo de desumanização pelo
qual essas pessoas fotografadas passaram, do qual fez parte e foi cúmplice o
próprio dispositivo fotográfico. Esse dispositivo estava aliado aos dispositi-
vos colonial e ao estético. A fotografia sempre esteve, como qualquer apa-
relho técnico, eivada de ambiguidades, serviu à arte, à memória, mas tam-
bém aos órgãos de polícia, aos projetos de eugenia e de genocídio, como na
Alemanha nazista, no Camboja de Pol Pot e nos cárceres das ditaduras lati-
no-americanas, como nas conhecidas fotografias da ESMA, em Buenos

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Aires. Paulino explora essa ambiguidade da fotografia, como por exemplo


Harun Farocki o fez em muitas de suas obras, apontando a cumplicidade
entre fotografia e guerra, destruição –como no filme Imagens do mundo e
epitáfios de guerra, de 1988. Assim, como lemos no catálogo sobre as foto-
grafias antropométricas de Stahl, essas imagens foram colocadas pelo cien-
tista Agassiz em um álbum ao lado de representações da beleza clássica. Os
rostos deveriam ser confrontados, para provar a suposta superioridade de
uma raça sobre as demais. Estamos em plena cena ontotipológica não só de
eugenia, mas de genocídio, como o deixou claro Abdias Nascimento.
18. Essa ausência de rosto significa também o tornar-se anônimo dessas
pessoas objetificadas e outrificadas por um trabalho que as matava e por
uma fotografia que as reduzia a peças de um teatro macabro da ciência.
Como escreveu Aimé Césaire no seu Discurso sobre o colonialismo: “É
minha vez de apresentar uma equação: colonização = coisificação”
(Césaire, 2020; 24). O rosto, para o filósofo Lévinas, vale lembrar, é a nossa
parte mais exposta e mais frágil e também a portadora do nosso ser para o
outro. “A epifania do rosto é ética”, ele escreveu (Lévinas, 1988; 178). E
ainda:
O rosto onde se apresenta o Outro –absolutamente outro– não nega o
Mesmo, não o violenta […]. Fica à medida de quem o acolhe, mantém-se ter-
restre. Essa apresentação é a não-violência por excelência, porque em vez de
ferir a minha liberdade, chama-a à responsabilidade e implanta-a (Lévinas,
1988; 181).

19. O trabalho escravo, a violência de ser reduzido a corpo-instrumento,


corpo carregador de fardos, corpo torturado, corpo fotografado, destitui o
indivíduo dessa outridade que institui a ética a partir da outridade absoluta
do rosto. Ao retirar o rosto dessas mulheres ou do indígena, Paulino apaga
o rosto para mostrar que esses grupos de pessoas tiveram seus rostos anula-
dos. Ao invés do infinito que todo rosto guarda, eles eram reduzidos a
fachadas de seres sem humanidade e sem ipseidade. Paulino nos chama
novamente à responsabilidade diante dos rostos, na medida em que ela os
apaga para os restituir.

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20. Recordo aqui que esse gesto de apagar (para restituir) de imagens de
pessoas que foram vítimas de máquinas genocidas também aparece na
impressionante obra de Leila Danziger “Cadernos do povo brasileiro”, que é
composta por 51 imagens de pessoas que foram assassinadas e algumas
delas também desaparecidas. Seus rostos estão cobertos por fac-símiles de
páginas de dedicatórias, índices, introduções e de outros textos, todos reti-
rados de livros que também fazem parte da obra e são apresentados em sua
fisicalidade nua como livros perfurados por enormes pregos de cobre. Como
os corpos dos assassinados/desaparecidos, esses livros recolecionados por
Leila e expostos nessa forma “crucificada” foram também vítima de violên-
cia: censurados e/ou simplesmente perseguidos durante o período da dita-
dura de 1964-1985 pelo aparato de segurança e controle, foram escondidos,
enterrados, queimados ou serviram de “prova” para inculpar aqueles que se
opuseram ao regime ditatorial.

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Imagens 8 - Título: Autorretrato com máscara para
comedores de terra - Artista: PAULINO Rosana - Ano:
1997
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21. A cena retratada em Atlântico vermelho é uma poderosa síntese das


narrativas da arte afrodescendente contemporânea brasileira. Dessa obra
pendem ainda fios vermelhos, que extravasam os “azulejos” e escorrem pela
parede como sangue. Esses corpos sem rosto mas que sangram remetem
também à obra anterior de Paulino, em nanquim sobre papel, Autorretrato
com máscara para comedores de terra, de 1997. Aí uma mulher “posa”
como as escravas fotografadas no século XIX, portando essa máscara tão
emblemática da violência colonial. Debret, entre outros artistas que passa-
ram pelo Brasil naquele século, registrou imagens do emprego dessas más-
caras. Comer terra era um meio de se suicidar, buscando a liberdade da
escravidão na morte. O acima mencionado artista mineiro Paulo Nazareth,
na sua série Para venda, realizou um autorretrato de perfil portando uma
caveira bovina que faz às vezes de uma máscara para comedor de
terra (2011). Nessa performance de Paulo Nazareth, ele coloca a máscara
para que consigamos finalmente ver aquilo que parece estar para além do
visível e nos cega diante da violência que essas imagens friamente descriti-
vas de Debret apresentam.

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Imagens 9 - Título: Assentamento - Artista: PAULINO


Rosana - Ano: 2013

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22. A série Assentamento, de 2013, de Paulino retoma um dos grupos de


fotografias de Stahl de 1865 para o projeto de Agassiz que se encontra hoje
no Peabody Museum of Archeology and Ethnology de Harvard (em um
bairro de Cambridge, aliás, que se chama Agassiz) (Ermakoff, 2004; 252).
As três fotografias, em tamanho natural, recuperando a sua dimensão
humana, foram recortadas cada uma em cinco tiras e recosturadas de modo
irregular. Na fotografia frontal da mulher nua, Paulino insere um coração
pintado, como um órgão externo, do qual escorrem, novamente, fios ver-
melhos “de sangue”. Na fotografia de perfil, ela introduz uma gravura de
um nenê no útero, mas, novamente, como algo externo, transparente. Na
fotografia da mesma personagem, sempre nua, de costas, a artista não
remenda a parte de baixo da fotografia, correspondente ao final da perna e
aos pés e em seu lugar costura um tecido que possui uma costura de veios
que lembram raízes que se ramificam, como se a retratada estivesse criando
raízes. Essas três fotografias constituem uma instalação da qual fazem parte
também pedaços de lenha empilhadas, como se preparadas para uma
fogueira. Ao chão, do lado das duas “fogueiras”, dois pequenos monitores
apresentam ondas em um oceano se quebrando na praia. É importante lem-
brar aqui também o duplo sentido do título da obra: assentamento, entre
outras coisas, é o ato de se assentar azulejos ou ladrilhos, ato de construção,
portanto, que remete ao corpo dos que constroem no Brasil desde o século
XVI, que assentaram, entre outros, os azulejos aos quais algumas das obras
de Paulino se referem. Por outro lado, assentamento pode ser também um
local que recebe os sem-terra, categoria de muitos negros expelidos da força
de trabalho no Brasil, herdeiros do fardo da “libertação” dos escravizados
de 1888. No candomblé, por fim, assentamento é um conjunto de objetos
colocados em um lugar específico para homenagear um Orixá. Nesse local
assenta-se a força do Orixá. Podemos pensar como em Assentamento circu-
lam esses significados. Essa obra, de modo explícito, trata dos traumas, das
feridas abertas pela escravidão. Feridas que não se fecham. Trauma vem do
grego e significa ferida. Não existe suturação possível para quatro séculos
de regime escravocrata ou para a violência do tráfico de pessoas escraviza-
das. Paulino nos fala dessa violência, no entanto, não reproduzindo as
famosas imagens de Rugendas e Debret que retrataram os gestos de tortura
dos colonizadores e de seus algozes sobre os corpos negros, que povoam os

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livros didáticos no Brasil (produzindo uma associação que naturaliza a rela-


ção entre “corpo negro” e “corpo violentado”). Antes, ela opta pela costura
inexata, por mostrar a fragilidade desse corpo de pessoas que foram objeti-
ficadas pela escravidão, pela fotografia, pela ciência e pelo voyeurismo.
23. É importante confrontar essa obra de Paulino com a obra impactante
da artista norte-americana Carrie Mae Weems, From Here I Saw What
Happened and I Cried, 1995-6, que também é feita a partir da apropriação
de fotografias de negros do século XIX/XX, submetidos por dispositivos
científicos, fotográficos, sexistas, ao exército, corpos tratados como ama de
leite etc. Esse encontro, assim como o acima mencionado com Sasha Huber,
mostra como as histórias afro-atlânticas se repetem para além das frontei-
ras nacionais. O sistema colonial era e é global. A diáspora negra forjou o
Atlântico Negro e suas ramificações.
24. As imagens dos “corpos escravizados” no século XIX colocam-nos ape-
nas nesses dois lugares: do trabalho ou do sofrimento. Rosana Paulino opta
por fazer um assentamento, um ritual de homenagem, de religamento,
impossível, mas necessário, com o passado que não passa. Coração, útero e
raízes não restituem a vida ou curam as feridas, mas servem para deslocar
nosso modo de nos aproximar dessas imagens fantasmáticas do passado,
permite iniciar um diálogo com os mortos, abre uma varanda sobre o
Oceano, contextualizando a escravidão no mundo afro-atlântico. Reimagi-
nar raízes junto com os que foram cortados delas, dar-lhes descendência e
vida, mesmo que uma sobre-vida, é um trabalho delicado ao qual a arte de
Paulino tem se dedicado de modo original e poderoso.

Obras citadas

AGASSIZ Elizabeth e Louis, Viagem ao Brasil: 1865 –1866, Tradução de


Edgar Süssekind de Mendonça, Brasília, Senado Federal, 2000.

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