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A AURA DE VERACIDADE: ÉTICA E METAFÍSICA NO FOTOJORNALISMO

John Mraz 

Tradução: Enric Llangostera.

Introdução

Este artigo faz parte de uma polêmica que se gerou em torno da 6ª Bienal
de Fotojornalismo, no México, em 2005. As Bienais de Fotojornalismo no México
costumeiramente produzem discussões, mas desta vez estas foram
particularmente ferozes, e vários fotojornalistas retiraram suas obras em protesto
à decisão dos jurados de premiar um ensaio fotográfico que continha imagens,
de acordo com eles, posadas e até plagiadas. Para os fotojornalistas dissidentes,
não é ético dirigir uma cena ou mostrar as influências de outras fotografias. Neste
artigo argumenta-se que o problema não é tanto uma questão de ética, mas sim
de metafísica. São examinadas as crenças que temos sobre a fotografia
documental e analisa-se o espaço existente nos diferentes gêneros do
fotojornalismo para a direção de cenas. A análise está baseada na observação
de fotografias clássicas como a do "Miliciano no momento de sua morte" por
Robert Capa e as realizadas por Ruth Orkin e Nacho López dos homens que
dizem cantadas às mulheres na rua. Ademais, o argumento constrói-se com
base nas idéias de fotojornalistas como Henri Cartier-Bresson e de pensadores
como Roland Barthes e Edmundo Desnoes.

As polêmicas provocadas no México, em decorrência da 6ª Bienal de


Fotojornalismo (2005), abrem uma janela para a visão das crenças - "a
metafísica" - que formam parte da base de nossa maneira de pensar a fotografia
documental. No "Fórum de debate" que se criou para proporcionar um espaço
de discussão, alguns fotojornalistas expressaram opiniões inquestionáveis sobre
o que constitui a ética de sua profissão. Argumentam que o compromisso dos e
das fotojornalistas é captar a realidade, da qual são meras testemunhas, para


Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades
Universidad Autónoma de Puebla
informar com honestidade, transparência e veracidade. Já que as imagens
capturadas são fatos irrefutáveis e duráveis, a primeira versão da história, o
único que devem criar são documentos. Assim, não se permitem postas em cena
ou poses, armações de cena e simulações, porque fazê-lo seria mentir e
enganar. Além disso, mas relacionado com o compromisso de captar
espontaneamente o desconhecido, que ocorre no instante mesmo, tampouco é
aceitável plagiar ou inspirar-se em obras anteriores ("Fórum de debate").

O primeiro problema que enfrentamos é o de determinar o que é o


fotojornalismo. Para defini-lo de maneira mais simples, poderíamos dizer que
são imagens feitas para publicações jornalísticas. Entretanto, ainda assim nos
encontramos com situações de aperto. Como podemos comparar o trabalho de
um diarista de Ovaciones, por exemplo, que tem que cobrir cinco pautas por dia,
com o de Sebastião Salgado, que pode dedicar-se a projetos documentais
durante seis anos (ainda que publique seleções de suas fotos em veículos como
o New York Times durante esse período)? O campo do fotojornalismo é amplo e
variado, mas uma consideração básica é o veículo para o qual está destinado
(Mraz, 1999). Um fotojornalista que tira fotografias para a imprensa diária está
atado à necessidade de proporcionar informação encapsulada em uma só
imagem. Um fotojornalista que publica em revistas está mais afastado das
notícias de acontecimentos ao vivo; suas fotos muitas vezes fazem parte de
reportagens ou ensaios de maior profundidade e com múltiplas imagens. Um
integrante dos Hermanos Mayo - o grupo mais prolífico na história da América
Latina -, Cándido Mayo, descreve a diferença entre ser diarista e revisteiro há
mais de cinqüenta anos: "O repórter pode e deve, ao mesmo tempo, ser artista,
se trabalha em revistas. Entretanto, se for um fotógrafo dos diários, às vezes a
urgência, os acontecimentos rápidos, obrigam-no a deixar de lado a
preocupação com as luzes, as sombras e os ângulos" (Mraz e Vélez, 24).

Em termos mais gerais, parece-me que existem duas considerações-


chave para ajudar-nos a entender as diferenças entre os diversos tipos de
fotógrafo que trabalham em publicações de meios de massa. A primeira é a
questão do controle autoral, que se manifesta de diferentes maneiras nas três
etapas da produção: a "concepção", a "realização" e a "edição". Em outras
palavras: Até que ponto é o fotógrafo fonte da concepção original do artigo

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ilustrado? Que controle tem sobre o ato fotográfico? Que poder tem a respeito
da edição da imagem?

Relacionado com a questão do controle autoral está o grau de direção


assumido pelo fotógrafo durante o ato fotográfico. Um exemplo de direção
mínima seria a de um acontecimento ao qual o fotógrafo compareceu
simplesmente para "cobrir" as notícias e sobre o qual parece ter a mínima
influência. O outro extremo seria constituído pelos "ensaios fotográficos" para os
quais o fotógrafo mesmo pôs em cena um "acontecimento". Encontramos
inesgotáveis exemplos de variantes da fotografia "dirigida", desde imagens que,
por espontâneas que sejam, mostram o efeito da presença do fotógrafo, até
aquelas nas quais os personagens colaboram posando abertamente (Mraz 2002,
2004).

Podemos construir uma hierarquia heurística para delinear as diferenças


entre os vários grupos, levando em conta que estamos descrevendo funções e
não pessoas , porque os fotógrafos mesmos mudam de papel segundo as
situações concretas em que se encontram. Tal hierarquia estaria ordenada, de
menor a maior controle, assim: fotógrafo de imprensa, fotojornalista, foto-
ensaísta, documentarista. Para exemplificar, os Hermanos Mayo funcionavam
como fotógrafos de imprensa quando trabalharam para jornais diários, como
fotojornalistas quando compuseram suas reportagens para revistas, como foto-
ensaístas nas poucas oportunidades que tiveram nas revistas para trabalhar
sobre os temas que lhes interessavam e como documentaristas quando tiravam
fotografias na rua enquanto iam e vinham de cobrir pautas. Vale a pena ressaltar
que não é uma questão valorativa, simplesmente tenta descrever as diversas
maneiras em que funcionam os fotojornalistas em relação aos meios.

Segundo esse esquema, um fotógrafo de imprensa trabalharia quase


sempre em um meio diário e não teria como influir na concepção de uma história,
porque o mais provável é que tenha sido designado para cobrir um
acontecimento. Sua autoria na realização da reportagem está determinada pelo
próprio evento, pelo material fílmico que tem disponível, pelas outras pautas que
tem que cobrir no dia e pelos parâmetros relativos às possibilidades de
publicação estabelecidos na sua fonte de trabalho, que já internalizou na forma

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de auto-censura. Sobre a edição de suas fotos, não teria nada a dizer ou influir.
A grande maioria dos fotógrafos nos meios de massa trabalha como repórter
gráfico, fotógrafo de imprensa.

Os fotojornalistas distinguem-se dos repórteres gráficos em grande parte


porque trabalham em revistas, nas quais o trabalho é de maior profundidade e
requer mais imagens. Phillip Jones Griffiths, membro da agência Magnum, disse
que essas categorias começaram a tomar forma nos anos trinta porque "Alguém
que estava trabalhando para a revista Picture Post e que ia para a África durante
três meses para realizar uma história sobre as mudanças de vento ali estava
bastante preocupado em que não o confundissem com os fotógrafos de
imprensa que, se supunha, tinham um vocabulário muito limitado, grandes
orelhas e um chapéu estranho no qual levavam um cartão escrito ‘Imprensa'.
Ansiosos em se autodenominar de outra maneira, chamaram-se de
fotojornalistas ( photojournalists )" (Fulton, 188).

Um fotojornalista teria mais controle que um fotógrafo de imprensa sobre


um projeto e até seria, talvez, o criador da idéia. Na etapa de realização também
teria mais controle, pois supõe-se que o material não estaria limitado e que as
questões sobre as quais poderia publicar já teriam sido discutidas antes de
maneira explícita e nesse processo o fotojornalista teria alguma participação. Na
"edição", raramente o fotojornalista teria influência, mas contaria com mais
possibilidades que o fotógrafo de imprensa.

Distinguir entre uma reportagem e um ensaio é fundamental para


diferenciar o fotojornalista do foto-ensaísta. Parece-me que uma reportagem
necessariamente significa o fato de cobrir um evento que é notícia ou, pelo
menos, um acontecimento "ao vivo". Assim, em termos gerais, poderíamos dizer
que uma reportagem tem sua origem no mundo, na realidade. Um ensaio, ao
contrário, tende a nascer da mente do fotógrafo, que pretende explorar algum
pensamento formulado previamente sobre o ato fotográfico. Um ensaio pode ser
algo "ao vivo", mas distingue-se da reportagem pelo grau em que a expressão
de idéias do fotógrafo tem proeminência sobre a comunicação de informações a
respeito de um acontecimento. Portanto, é o foto-ensaísta quem, de todas as
funções dentro da imprensa de massa, tem maior controle autoral sobre o

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produto. A concepção de um ensaio se origina muitas vezes da imaginação do
próprio ensaísta. Por pretender, em grande medida, ilustrar os seus conceitos,
pode incluir formas como elaboração de cenas ou a direção dos personagens
nas suas poses e, assim, alcançar muito controle diretivo durante o ato
fotográfico. Finalmente, poderia ter alguma influência na edição do artigo, ainda
que isso ocorra sempre em casos excepcionais.

São os documentaristas os que gozam de mais liberdade de expressão.


Aqui, é importante assinalar que, ainda que todo fotojornalismo seja documental,
o conceito "documentarista" refere-se a uma categoria particular e dentro da qual
há uma variedade de possibilidades. Uma seria a dos fotógrafos que trabalham
para instituições: no México, por exemplo, no Instituto Nacional Indigenista (INI),
onde trabalhava Nacho López anos depois de deixar as revistas ilustradas; nos
Estados Unidos, o melhor exemplo seria a Farm Security Administration, com
seus fotógrafos como Walker Evans, Dorothea Lange ou Arthur Rothstein. Outra
possibilidade é de vincular-se a uma agência como a Magnum que proporciona
a oportunidade de trabalhar em projetos individuais. Uma terceira possibilidade
é a de trabalhar free lance, vivendo de bicos, venda de livros ou comissões de
um governo de Estado ou de bancos. Finalmente, há de se considerar as
imagens que os fotojornalistas realizam por sua própria conta, seja enquanto
trabalham ou em seu tempo livre.

As imagens inscritas pelos fotojornalistas nas últimas Bienais dão a


impressão de que freqüentemente foram feitas enquanto trabalhavam como
documentaristas. Daí a predominância de temas relacionados com a vida
cotidiana. Em tempo, a representação da vida cotidiana é um gênero
fundamental dentro do fotojornalismo, além de ser o que oferece maior liberdade
aos fotógrafos para desenvolver seu trabalho. No entanto, temo que o problema
venha precisamente de sua facilidade. O grande fotojornalismo se faz ao evitar-
se o fácil e procurar o difícil: afiar o olhar para descobrir e ter a técnica para
concretizar a imagem.

O fotojornalismo oferece a oportunidade de fazer coincidir os dois pólos


da fotografia: a informação e a expressividade. Na medida em que esta relação
se aproxima do lado informativo, a imagem fica em seu aspecto documental, que

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é o que acontece no fotojornalismo tradicional. Na medida em que pende para o
lado expressivo, converte-se em símbolo, em uma arte descontextualizada. O
melhor fotojornalismo faz coincidir o expressivo e o informativo para criar uma
metáfora, uma imagem que contém informação sobre um acontecimento que, ao
mesmo tempo, está encarnado com uma força estética para transformá-lo em
uma representação de uma referência mais ampla.

Quaisquer que sejam as diferenças entre as diversas formas do


fotojornalismo, há um pano de fundo fundamental: a crença de que o ou a
fotógrafa não teve nenhuma inferência no ato fotográfico. A credibilidade
documental baseia-se nesta crença e sua linguagem estrutura-se dentro de
"códigos de objetividade" que ocultam o efeito causado pela presença do
fotojornalista (Schwartz 1992). Até as encenações baseiam-se nesta
credibilidade e aproveitam-se de forma igual do novo e original status da
fotografia como um índice autêntico do mundo fenomênico.

Esta é a "metafísica" da fotografia moderna e suspeito que o que mais


problematiza o fotojornalismo não é tanto a questão da ética, mas a da
metafísica. Encontramo-nos frente a crenças tão profundas em torno da
fotografia documental e o fotojornalismo que parecem ser verdades eternas mas
são, na realidade, relativamente recentes. De acordo com a historiadora de arte
Gretchen Garner, o paradigma da fotografia como "testemunha espontânea"
construiu-se a partir da década de 1930 e durou até pouco tempo atrás; nele, a
fotografia foi cultivada pela maioria dos profissionais como um ato aberto, à
mercê do azar e quase nunca com a intenção de dirigir a cena. A invenção da
pequena e portátil câmera de 35mm levou à criação de uma estética na qual o
mais importante era prestar atenção ao que acontecia no entorno, ser receptivo
às contingências e comprometer-se com a revelação; isso dava como resultado
uma "autenticidade sem intervenção" fundada na crença de que a falsificação
não era aceitável dentro dessa convenção.

O pressuposto de que o descobrimento e a não-interferência dão impulso


ao ato fotográfico é particularmente relevante no fotojornalismo, em que a
veracidade fotográfica aparentemente transparente combina-se com a suposta
objetividade do jornalismo. Em um manual de estilo produzido pela Associated

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Press, " The News Photographer's Bible " (A Bíblia do fotojornalista), Ed Reinke
faz uma formulação taxativa sobre a maneira ideal em que os fotojornalistas
devem trabalhar: "No que se refere ao fotojornalismo, eu enfatizo a palavra
jornalismo; tiramos fotografias nas circunstâncias que nos surgem e não
tentamos modificar essas circunstâncias" (Horton, 51). No entanto, existe uma
clara diferença entre o que é permitido nas notícias ( hard news ) e nas
fotorreportagens ou foto-ensaios ( features ). Quase todas as imagens dirigidas
entram nessa última categoria, ainda que sua credibilidade seja produto de um
certo "filtro" de confiança gerado pelo conjunto das imagens das notícias.
Costuma-se tolerar a encenação nos foto-ensaios, mas, quando se trata de
notícias, nem o público nem os editores dos meios de massa – que sabem que
suas vendas dependerão da credibilidade das histórias que publicarem – vêem
com bons olhos a direção de cenas.

Apesar de muitas das melhores imagens do fotojornalismo terem sido


dirigidas, esse gênero fotográfico mantém uma relação peculiar com a
"realidade". Não existe espaço suficiente neste ensaio para discutir sobre o que
consiste a "realidade", mas basta dizer que existem universos que não
dependem de nossa percepção dos mesmos. Ainda que nossa maneira de ver
esteja condicionada por construções a priori – "Verei quando crer" -, nunca
estamos mais conscientes dessa realidade do que no momento em que
tropeçamos com ela; o estudioso Fredric Jameson gostava de dizer que "A
história dói". O fotojornalismo deve enfrentar a realidade em dois sentidos (pelo
menos). Por um lado, é obrigatória a interação com o mundo social; segundo
Julio Mayo: "Os fotógrafos somos a infantaria do jornalismo, porque sempre
temos de marchar na primeira fileira. Temos de estar lá, não podem nos contar".
Por outro lado, as imagens fotojornalísticas não são apenas ícones, também são
índices e, como tais, oferecem uma evidência de presença, como resume
precisamente Roland Barthes: "Isto foi" (Barthes, 80). Enquanto índices, as
fotografias são rastros deixados pelo mundo visível que foram depositados na
película ou no computador graças ao trabalho conjunto da mente, do olho e da
câmera. Se trata-se de uma arte, é uma arte que – pelo menos segundo o ideal
clássico – tenta encontrar, mais que criar, a justaposição entre o social e o
formalmente significativo.

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Henri Cartier-Bresson é o fotojornalista que melhor encarna o enfoque
moderno através de seu conceito de "momento decisivo": "Para mim, a fotografia
é o reconhecimento simultâneo, em uma fração de segundo, da relevância de
um acontecimento e da organização precisa das formas que expressam
adequadamente esse fato" (Cartier-Bresson 1999, 42). Basicamente, o
"momento decisivo" é uma alusão à busca de uma confluência entre conteúdo e
forma que o fotógrafo deve descobrir e capturar em um instante: "Dediquei-me a
percorrer as ruas durante todo o dia com um sentimento de júbilo e de disposição
para a caça, com a determinação de ‘enjaular' a vida – conservar a vida no ato
mesmo de viver. Desejava abarcar dentro dos confins de uma só fotografia toda
a essência de uma situação que estava começando a desenvolver-se perante
meus olhos" (Cartier-Bresson 1999, 22). Cartier-Bresson criticou de maneira
explícita a fotografia dirigida: "A fotografia fabricada, ou posta em cena, não me
interessa... Há quem faz fotografias compostas de antemão e que vai ao
descobrimento da imagem e a capturam" (Cartier-Bresson 1991, 48). Insistia em
que "tirava" suas fotografias ao invés de "fazê-las" e acreditava que sua renúncia
a intervir no curso dos eventos permitia-lhe surpreender as "coisas-tal-como-
elas-são" e capturar a realidade que, para ele, é muito mais rica que a
imaginação.

Agora, o que dizem os fotojornalistas e o que


fazem não são sempre a mesma coisa. Assim que,
ainda que poucas, podem-se encontrar fotos de
Cartier-Bresson que deixam a impressão de sua
intervenção na cena, como a do garoto que carrega
garrafas de vinho. Por outro lado, para Walker
Evans o termo "documental" tinha uma conotação
muito específica que não admitia nenhum tipo de
interferência. Qualquer alteração ou manipulação
dos fatos era para ele "uma violação direta de
nossos princípios. Pois é nisso que se baseia a
palavra ‘documental': não tocar em absolutamente Cartier-Bresson

nada"(Stott, 269). O argumento encarna de maneira articulada a noção clássica


da fotografia documental. Desafortunadamente, Walker Evans ficou como

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portador da tocha do registro não-manipulado da
realidade. O historiador James Curtis comparou as
imagens de Evans com as detalhadas descrições
de James Agee, co-autor de seu livro Let Us Now
Praise Famous Men (Honremos agora homens
famosos), e descobriu que Evans fez modificações
nas casas das famílias de arrendatários enquanto
estes trabalhavam nos campos, para construir
cenas harmoniosas que mostrassem uma pobreza
digna. As naturezas mortas modificadas por Evans
Walker Evans
criavam um mundo que não era o dos pobres
arrendatários; Evans fotografou uma ordem pitoresca em vez do caos em ruínas
no qual realmente viviam.

A complexidade do
fotojornalismo dirigido pode ser
demonstrada pela foto de guerra
sobre a qual se derramaram mais
opiniões, a de Robert Capa "O
miliciano em seu momento de morte".
Em um primeiro momento, pensei que
o soldado fingia que tinha sido
Robert Capa
atingido e que participava de uma
encenação útil para o fotojornalista. Cheguei a essa conclusão baseando-me na
predominância de cenas montadas na fotografia da Guerra Civil Espanhola e,
além disso, pela existência de imagens feitas por Capa, nos mesmos tempos e
lugar, que claramente não são de combate. Investigações recentes do biógrafo
de Capa, Richard Whelan, estabeleceram que a foto é "autêntica": trata-se de
um miliciano republicano capturado no momento de sua morte. No entanto, ainda
que a imagem não seja dirigida, ela poderia ser, até certo ponto, o resultado
irônico da interferência do fotógrafo na situação.

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Em seu ensaio mais recente sobre o tema, "Proving that Robert Capa's
‘Falling Soldier' is Authentic" (Provando que ‘O miliciano em seu momento de
morte' de Robert Capa é autêntica), Whelan oferece nova evidência. Uma pista
crucial foi proporcionada por um especialista forense, que assinalou que o
soldado não estava atacando nesse momento, mas que "estava bem parado
quando foi atingido". Para entender a importância dessa observação, é
necessário combiná-la com os testemunhos de dois colegas de Capa: o
renomado editor de fotojornalismo, John G. Morris, e Hansel Mieth, uma
fotojornalista alemã que trabalhava para Life. Mieth afirmava que Capa havia dito
que ele e os milicianos estavam "brincando" quando os fascistas infiltraram-se
nas linhas de frente e de repente começaram a atirar contra eles. Capa também
comentou que estava "atormentado" pelo episódio. A lembrança de Mieth sobre
o mal-estar de Capa quanto a essa imagem foi corroborada por Morris, que
afirmou que "Um homem morreu e isso perturbou Bob pelo resto de sua vida"
(Morris-Mraz).

Agora o mistério parece estar resolvido. Os milicianos republicanos


estavam fingindo estar em combate para a câmera do fotojornalista, quando uma
metralhadora fascista matou este soldado justamente enquanto posava. É a
coincidência de que Capa fotografava a este indivíduo precisamente na fração
de segundo em que foi atingido que faz com que esta foto de guerra seja mais
transcendente. No entanto, o envolvimento de Capa fez com que ele sentisse
que havia sido, de alguma maneira, responsável por sua morte. Daí sua
reticência em falar dessa foto e, ademais, uma certa confusão ao contar os
eventos em torno de sua produção, decisões que vemos de uma maneira muito
diferente se assumimos que o fotojornalista dirigia a imagem. O que este caso
estabelece é que nossa interpretação de uma foto baseia-se nas presunções
que temos quando a vemos, mas que a investigação e a razão podem nos ajudar
a percebê-la de uma maneira diferente.

Outro exemplo que demonstra as complicações tanto da foto dirigida


como da questão do plágio é a imagem mais conhecida de Nacho López, "A
mulher bela". A fotojornalista, Ruth Orkin, antecipou-se a López na tentativa de
provocar uma reação "real" ao colocar uma mulher bonita para passear pela rua
na frente de alguns homens. Tanto Orkin como López utilizaram as mulheres

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como "catalisadores" para produzir a famosa cantada, um fenômeno comum nas
culturas latinas. Orkin tirou sua fotografia " An American Girl in Italy " durante
uma estadia em Roma, Itália, em 1951. Trabalhou em conjunto com sua amiga,
Jinx Allen, para recriar os problemas que enfrentavam as mulheres ao viajar
sozinhas, entre eles, o tratar com jovens impulsivos. Orkin tinha a intenção de
fazer essa fotografia desde o momento em que chegou à idade em que se pode
prestar a fazer experiências desse tipo, mas se deu conta de que o melhor seria
fazê-lo com gente, iluminação, fundo, ângulo e (sobretudo) a modelo apropriada
para recriar a situação (Orkin). A fotojornalista descreve Allen como uma "atriz
muito natural" que participou na cena caminhando em frente a um grupo de
homens ociosos na esquina da Piazza Della Repubblica, enquanto Orkin corria
para o cruzamento para fazer a foto. De acordo com a fotógrafa, ela apenas falou
com dois dos homens que estavam no veículo motorizado para pedir-lhes que
avisassem os outros para não olharem para a câmera. Orkin fotografou Allen
enquanto caminhava em frente aos homens e, logo depois, pediu a sua amiga
que repetisse a cena para que tirasse uma segunda fotografia. Eventualmente,
a imagem seria publicada junto com o artigo "Don't Be Afraid to Travel Alone"
(Não tenha medo de viajar sozinha) que apareceu no número de Setembro de
1952 da revista Cosmopolitan, depois de ser rechaçada por várias revistas.

Nacho López Ruth Orkin

Em 1953, Nacho López fez uma fotografia muito parecida à de Ruth Orkin
para ilustrar o foto-ensaio "Quando uma mulher bonita anda por Madero". López
era conhecido por seu ímpeto como diretor e minhas investigações me deixaram
com a impressão de que metade de suas fotos publicadas foram dirigidas. No
entanto, aqui seu afã em controlar o ato fotográfico foi mais além de suas

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estratégias presentes em outros foto-ensaios, que consistiam em fazer que as
pessoas posassem ou em construí-los a partir de fotografias de arquivo. Para
este artigo, López fez com que Matty Huitrón, uma atriz menor com cintura fina,
que já tinha posado para revistas masculinas, andasse pela rua em frente a um
grupo de homens para produzir a esperada cantada. Huitrón tinha ensaiado seu
papel, mas as reações dos homens eram verídicas: um efeito causado pela
"mulher como catalisador".

Também os cineastas documentaristas empregaram a tática de provocar


reações, com o argumento de que estas produzem acontecimentos mais reais
do que se pode conseguir com uma fotografia espontânea ou com o cinema
cândido. Para suas encenações, tanto Orkin quanto López fizeram-se valer de
uma forma de instigação muito parecida a que mais tarde seria empregada pelo
cineasta documentarista Jean Rouch em Chronique d'un été ( Crônica de um
verão, 1961). Nesse filme, Rouch queria provocar em seus sujeitos "momentos
de revelação" mediante a pergunta "Você é feliz?" e através da presença da
câmera. O cineasta estava convencido de que ambas constituíam "estimulantes
psicoanalíticos" que fariam com que as pessoas atuassem de formas que
fossem, de alguma maneira, mais reais que uma realidade não interferida (Levin,
137). Rouch chamou de cinéma verité esta estratégia que consistia em precipitar
crises em vez de esperar que acontecessem sozinhas. Da mesma maneira, a
essência da estética documental de Michael Moore, o documentarista em maior
evidência hoje em dia, reside em provocar reações, sobretudo em seu primeiro
filme, Roger & Me (1989), que consiste em uma odisséia infrutífera por uma
entrevista com Roger Smith, diretor da General Motors.

É difícil saber se Nacho López tinha visto a imagem de Ruth Orkin quando
fez a sua. Não creio que as possibilidades sejam grandes de López ter visto uma
foto publicada na Cosmopolitan, uma revista para mulheres que contém
conselhos de beleza e moda. No entanto, a foto de Orkin foi republicada em
muitas ocasiões, ainda que seja questionável que tenha sido republicada tão
rápido a ponto de ter influenciado a Nacho López. Daniel Mendoza, um grande
amigo de López, afirma que quando encontrou a foto de Orkin, em 1985 ou 1986,
levou-a para "beliscar" seu professor (Mraz 1999, 151). López mostrou muita
surpresa e consternação. Disse que nunca tinha visto a imagem e perguntou

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quando ela foi feita, para poder comparar as datas das duas fotos. Obviamente,
a questão gira em torno do período no qual a foto de Orkin começou a circular
maciçamente e eu suspeito que tenha sido durante os anos oitenta, momento
em que muitas fotos documentais foram ressuscitadas, como "O beijo" de Robert
Doisneau. Ademais, aqueles que conheciam López duvidam que ele tenha
plagiado a imagem.

Parece que Ruth Orkin utilizou esse procedimento somente para a


imagem feita em Roma. Nacho López fotografou a "mulher bela" em distintas
situações. Ademais, voltou a utilizar a mesma técnica em um foto-ensaio
posterior, "A Vênus foi-se de folga aos bairros baixos", no qual fez com que um
empregado de uma pequena fábrica de manequins carregasse um manequim nu
pela rua e posasse com ele em uma cantina. López dizia que "A mulher nua e a
seriedade solene do empregado produziam na rua uma sensação estranha e
incongruente. Ele ia muito despreocupado, enquanto aconteciam incidentes
muito simpáticos: surpresa, repúdio, admiração, pudor, recato, estranheza etc. e
até um fato assaz impublicável. Creio que esta reportagem pode servir de
exemplo como resultado de uma ‘pré-visualização' organizada antecipando-se
às reações humanas provocadas por objetos, gestos ou sensações" (López).

Nacho López

Ainda que não esteja certo de que as polêmicas provocadas em relação


à direção e ao plágio no fotojornalismo sejam uma questão de ética, isto surge
quando falamos da crítica. Pelo menos no caso do crítico de fotografia José

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Antonio Rodriguez, que entrou na polêmica em torno da Bienal para chamar os
fotógrafos dissidentes de "medíocres e atrasados, descerebrados com raquítica
cultura, que cometem barbaridades e tontices públicas, além de exibir uma série
de ignorâncias, por sua falta de bagagem intelectual" (Rodríguez). A dura porém
honesta crítica de arte do México, Raquel Tibol, manifestou-se faz anos contra o
que ela chamou de "terrorismo verbal" desse indivíduo, mas não adiantou de
nada. Ter o privilégio de publicar em meios de massa acarreta uma certa
responsabilidade. Assim, um crítico que na sua vida não criou nada de original
dedica-se a atacar aos que, sim, se arriscam a criar algo. E esse mesmo, que
até a presente data não realizou uma verdadeira investigação, arremete contra
aqueles que passaram anos em arquivos e hemerotecas. Essa falta de ética
envenenou o clima em torno da fotografia e do fotojornalismo no México.

A Bienal de Fotojornalismo no México parece estar sempre cambaleando,


como areias movediças. Isso ocorre porque se encontra baseada precisamente
sobre as contradições que constituem as falhas do fotojornalismo: a que existe
entre documentar a informação e expressar-se fotograficamente, a que se
encontra entre os interesses dos meios e os dos fotojornalistas. Como disse o
escritor cubano Edmundo Desnoes, há quase quarenta anos:

"Se nas fotos de revistas e jornais se permitisse ao criador desenvolver


sua personalidade, seu ponto de vista, todos descobririam que a fotografia não
é a verdade objetiva. Cada fotógrafo teria um estilo, como os pintores, por
exemplo, e se veria facilmente o sentido, a linguagem. E, naturalmente, uma vez
descoberto o segredo, ninguém acreditaria na veracidade informativa de uma
foto. Daí a divisão de que sofrem os fotógrafos que têm que ganhar seu pão e
querem ao mesmo tempo criar e expressar-se" (Desnoes, 81).

Resumindo, o fotojornalismo é um mundo diverso e complexo que requer


estudo, reflexão e maturidade, tanto para praticar quanto para criticar. Penso que
as controvérsias devem-se, em grande parte, ao fato de que as regras que todos
pensamos conhecer estão em um nível muito implícito, em uma metafísica que
não questionamos o suficiente. Conhecer a história do fotojornalismo, tanto no
México como em outras partes, nos impulsionaria a fazer novas e melhores
imagens e críticas do entorno no qual nos encontramos.

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Referências Bibliográficas

Agee, James and Walker Evans. 1941. Let Us Now Praise Famous Men.
Publicado en varias versiones.

Barthes, Roland. Cámara lúcida. Barcelona: Paidos, 1990.

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