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2 ISSN 1414-9184
eISSN 1984-669X
Jul-Dez/2024 Temas Livres
ISSN 1414-9184
eISSN 1984-669X
Temas Livres
v.34 n.2
Jul-Dez/2024
1
Foi-me sugerido desenvolver, nesta conferência1 , o tema
das relações entre cidadania e modernidade. Ora, uma das
características mais marcantes da modernidade — ou seja, da
época histórica que se inicia com o Renascimento e na qual,
apesar das apressadas afirmações em contrário dos chamados
A relevância e atualidade
“pós-modernos”, ainda estamos hoje inseridos — é precisamente das notas de Carlos Nelson
a afirmação e expansão de uma nova concepção e de novas Coutinho sobre a cidadania
práticas da cidadania. e a modernidade
Aponte sua câmera ou clique
Antes de mais nada, cabe lembrar que, sobretudo em sua acepção no QR Code para acessar o
propriamente moderna, ocorre uma profunda articulação entre texto de apresentação, por
cidadania e democracia. Embora, no decorrer dessa conferência, Gláucia Lelis Alves, especial
eu me proponha a apresentar algumas determinações do para o Conexão Praia Vermelha.
conceito de democracia, tomarei como ponto de partida uma
definição sumária e aproximativa: democracia é sinônimo de
soberania popular. Ou seja: podemos defini-la como a presença
efetiva das condições sociais e institucionais que possibilitam
ao conjunto dos cidadãos a participação ativa na formação do
governo e, em consequência, no controle da vida social.
R. Praia Vermelha
Há um importante conceito de Marx, hoje injustamente em
próxima página Rio de Janeiro
desfavor (como, aliás, anda injustamente em desfavor o próprio
v.34 n.2
marxismo), que é o conceito de alienação. Segundo Marx, os p. 509-529
referências e notas indivíduos constroem coletivamente todos os bens sociais, toda Jul-Dez/2024
a riqueza material e cultural e todas as instituições sociais e ISSN 1414-9184
políticas, mas não são capazes — dada a divisão da sociedade 509 eISSN 1984-669X
em classes antagônicas — de se reapropriarem efetivamente
desses bens por eles mesmos criados. A democracia pode v.34 n.2 [2024]
início
ser sumariamente definida como a mais exitosa tentativa
até hoje inventada de superar a alienação na esfera política.
página anterior Desde Rousseau, o mais radical representante do pensamento
democrático no mundo moderno, a democracia é concebida
como a construção coletiva do espaço público, como a plena
participação consciente de todos na gestação e no controle da
esfera política. É precisamente isso o que Rousseau entende por
“soberania popular”.
Um dos conceitos que melhor expressa essa reabsorção dos
bens sociais pelo conjunto dos cidadãos — que melhor expressa,
portanto, a democracia — é precisamente o conceito de
cidadania. Cidadania é a capacidade conquistada por alguns
indivíduos, ou (no caso de uma democracia efetiva) por todos
os indivíduos, de se apropriarem dos bens socialmente criados,
de atualizarem todas as potencialidades de realização humana
abertas pela vida social em cada contexto historicamente
determinado. Sublinho a expressão historicamente porque me
parece fundamental ressaltar o fato de que soberania popular,
democracia e cidadania (três expressões para, em última
instância, dizer a mesma coisa) devem sempre ser pensadas
como processos eminentemente históricos, como conceitos e
realidades aos quais a história atribui permanentemente novas e
mais ricas determinações. A cidadania não é dada aos indivíduos
de uma vez para sempre, não é algo que vem de cima para baixo,
mas é resultado de uma luta permanente, travada quase sempre
a partir de baixo, das classes subalternas, implicando um processo
histórico de longa duração.
A noção de cidadania não nasceu no mundo moderno, embora
tivesse encontrado nele a sua máxima expressão, tanto teórica
quanto prática. Na verdade, as primeiras teorias sobre a cidadania,
sobre o que significa ser cidadão, surgiram na Grécia clássica, nos
séculos V-IV antes da era cristã, correspondendo ao fato de que os
gregos conheceram na prática as primeiras formas de democracia, R. Praia Vermelha
próxima página nas quais um número relativamente amplo de pessoas interferia Rio de Janeiro
direito à propriedade, que incluiria não só os bens materiais dos v.34 n.2
p. 509-529
indivíduos, mas também sua vida e sua liberdade.
referências e notas Jul-Dez/2024
Notas sobre Cidadania e Modernidade Esse conceito de “direito natural” — de direitos que pertencem ISSN 1414-9184
Carlos Nelson Coutinho aos indivíduos independentemente do status que ocupam 511 eISSN 1984-669X
na sociedade em que vivem — teve um importante papel
revolucionário em dado momento da história, na medida em que v.34 n.2 [2024]
início
afirmava a liberdade individual contra as pretensões despóticas
do absolutismo e em que negava a desigualdade de direitos
página anterior sancionada pela organização hierárquica e estamental própria
do feudalismo. Contudo, nessa versão liberal, o jusnaturalismo
terminou por se constituir na ideologia da classe burguesa,
sobretudo porque Locke e seus seguidores consideravam como
direito natural básico o direito de propriedade (que implicava
também o direito do proprietário aos bens produzidos pelo
trabalhador assalariado), o que terminou por recriar uma nova
forma de desigualdade entre os homens.
Para além dessa limitação classista, a própria ideia de que
existem direitos naturais é uma ideia equivocada. Os indivíduos
não nascem com direitos (uma noção, aliás, reafirmada em 1948
na Declaração dos Direitos da ONU). Os direitos são fenômenos
sociais, são resultado da história. Hegel tem plena razão quando
diz que só há direitos efetivos, ou liberdades concretas, no quadro
da vida social, do Estado. As demandas sociais, que prefiguram
os direitos, só são satisfeitas quando assumidas nas e pelas
instituições que asseguram uma legalidade positiva. Por outro
lado, aquilo que hoje quase todos consideram como direitos
indiscutíveis (por exemplo, os chamados direitos sociais, como
o direito ao trabalho, à saúde, à educação, etc.) não figuravam
de modo algum na lista dos direitos naturais defendidos pelos
jusnaturalistas liberais.
Mas há uma verdade parcial no pensamento dos jusnaturalistas,
ou seja, a afirmação de que o direito é, de certo modo, algo que
antecede — e é mais amplo — do que o direito positivo, ou seja,
do que o direito estatuído nas Constituições, nos códigos, etc.
Os direitos têm sempre sua primeira expressão sob a forma de
expectativas de direito, ou seja, de demandas que são formuladas,
em dado momento histórico determinado, por classes ou grupos
sociais.
R. Praia Vermelha
próxima página
Vou dar um exemplo simples. Na consciência dos trabalhadores
Rio de Janeiro
(e na sua atividade prático-política), tornou-se um indiscutível v.34 n.2
direito, a partir do início do século XIX, a necessidade de fixar p. 509-529
referências e notas limites legais para a jornada de trabalho. Quem conhece história, Jul-Dez/2024
Notas sobre Cidadania e Modernidade sabe que os operários trabalhavam 14 horas por dia ou mais na ISSN 1414-9184
Carlos Nelson Coutinho época da revolução industrial, isto é, pelo menos até meados 512 eISSN 1984-669X
do século XIX. Os trabalhadores, então, lutaram para que fosse
fixado um limite legal para a jornada de trabalho, algo que ia de v.34 n.2 [2024]
início
encontro às já então famosas “leis do mercado”. Isso significa
que a demanda dos trabalhadores por uma jornada de trabalho
página anterior reduzida colocou-se historicamente como uma postulação, como
um direito, já antes que a promulgação de uma lei tornasse esse
direito algo positivo, o que só ocorreu, na Inglaterra, na segunda
metade do século XIX.
Outro exemplo: as mulheres foram até meados do século XX
excluídas do direito ao voto, a votarem e ser votadas, não só no
Brasil, mas na maioria esmagadora dos países do hoje chamado
Primeiro Mundo. (Nisso, até, o Brasil não foi dos mais retardatários:
as mulheres votaram aqui em 1933, enquanto só vieram a fazê-
lo na Itália, por exemplo, em 1946). Importantes movimentos
femininos demandaram e lutaram pelo que consideravam um
direito indiscutível. E terminaram por inscrever nas leis positivas
de todos os países (parece-me que a Suíça foi o último país a
fazer isso) esse direito que já ninguém hoje contesta, pelo menos
publicamente.
Ao relembrar esses exemplos, pretendo apenas insistir no caráter
histórico dos direitos (dei exemplos de direitos sociais e políticos,
mas poderia me valer de exemplos de novos direitos civis, como
o relativo à liberdade de orientação sexual) e, por conseguinte, no
caráter fundamentalmente histórico da própria cidadania.
Nesse sentido, penso que o sociólogo britânico T. H. Marshall deu
uma importante contribuição para a compreensão da dimensão
histórica da cidadania quando — no seu famoso ensaio sobre
“Cidadania e Classe Social”2 — definiu três níveis de direitos de
cidadania e, baseando-se na história da Grã-Bretanha, traçou uma
ordem cronológica para o surgimento desses direitos no mundo
moderno, descrevendo um processo que se inicia com a obtenção
dos direitos civis, passa pelos direitos políticos e chega finalmente
aos direitos sociais. É indiscutível que essa ordem cronológica, do
modo “clássico” como Marshall a descreve, não se reproduziu do
R. Praia Vermelha
próxima página
mesmo modo em um grande número de países, entre os quais o
Rio de Janeiro
Brasil3 . Mas também me parece indiscutível que Marshall — apesar v.34 n.2
deste e de outros limites — tem o mérito não só de delimitar p. 509-529
referências e notas essas três determinações “modernas” da cidadania (civil, política e Jul-Dez/2024
Notas sobre Cidadania e Modernidade social), mas também de insistir na dimensão histórica, processual, ISSN 1414-9184
Carlos Nelson Coutinho do conceito e da prática da cidadania na modernidade. 513 eISSN 1984-669X
2
O que são “direitos civis” e como surgiram historicamente?
Para Marshall, esses direitos surgiram na Inglaterra no século v.34 n.2 [2024]
início
XVIII, tornando-se direitos efetivamente positivos depois que
a chamada Gloriosa Revolução, de 1688, consolidou nesse país
página anterior a monarquia constitucional. Se observarmos bem, veremos
que os direitos civis elencados por Marshall em seu estudo são
precisamente os direitos que Locke (que, não casualmente, foi
o principal teórico da Gloriosa Revolução) chamou de direitos
naturais inalienáveis. Trata-se, essencialmente, do direito à vida,
à liberdade de pensamento e de movimento (de ir e vir) e, não
em último lugar, à propriedade. Sabemos hoje que eles não são
direitos naturais, mas sim direitos históricos; surgiram como
demandas da burguesia em ascensão (no momento em que e a
ela e representava todos os que não eram nem aristocratas nem
membros do clero, ou seja, todos os que constituíam o que os
franceses chamavam de “terceiro estado”) em sua luta contra o
Estado absolutista, Estado que, naquele momento da história,
defendia essencialmente os interesses dos outros dois “estados”,
ou seja, da aristocracia feudal e do alto clero.
Tratava-se então de criar um novo tipo de Estado, fundado no
consenso dos súditos (ou seja, num contrato firmado entre eles
e com os governantes), cuja legitimidade se assentaria no fato
de respeitar plenamente esses direitos “naturais” que todos os
indivíduos possuiriam. A afirmação dos direitos civis, portanto,
implicava uma limitação do poder do Estado. São direitos dos
indivíduo contra o Estado, ou seja, são direitos que os homens
devem usufruir em sua vida privada, que deve ser protegida
contra a intervenção abusiva do governo. Já aqui podemos
observar uma significativa diferença em relação ao conceito
grego de cidadania, para o qual, como vimos, ser cidadão não é
algo que se refira à vida privada, mas precisamente à vida pública,
à qual os gregos claramente subordinam a esfera privada.
Foi precisamente a natureza individual e privada desses direitos
civis modernos que induziu Marx, em sua obra juvenil sobre A
questão judaica4 , a caracterizá-los como meios de consolidação R. Praia Vermelha
próxima página da sociedade burguesa, da sociedade capitalista. Não hesito Rio de Janeiro
em dizer que, num determinado e decisivo sentido, Marx estava v.34 n.2
p. 509-529
certo. Tomemos, por exemplo, o modo pelo qual Locke (e as
referências e notas Jul-Dez/2024
várias Constituições que nele se inspiraram) tratou a questão da
Notas sobre Cidadania e Modernidade ISSN 1414-9184
Carlos Nelson Coutinho
propriedade, apresentada como o direito natural fundamental,
514 eISSN 1984-669X
cuja garantia é a razão essencial pela e para a qual o Estado
existe. Locke começa definindo o direito de propriedade como v.34 n.2 [2024]
início
o direito aos frutos do nosso trabalho; mas, logo em seguida,
diz que — com a invenção do dinheiro, que permite acumular
página anterior o trabalho passado — tornou-se legítimo comprar a força de
trabalho de outros, sobre cujos frutos teríamos também direito
de propriedade5 . Vemos aí um claro exemplo de como um direito
universal (todos temos direito aos frutos do nosso trabalho) torna-
se um direito burguês, particularista e excludente, restrito aos
proprietários dos meios de produção.
Foi nesse sentido que Marx criticou os chamados “direitos do
homem”, no sentido de que — entendidos como direitos únicos
e exclusivos — eles se transformam na prática em prerrogativas
apenas de um tipo de homem, o homem proprietário da classe
burguesa. Penso que Claude Lefort, o brilhante filósofo liberal
francês, não tem razão quando diz que, para Marx, nesse seu
texto juvenil, os direitos civis seriam em si direitos burgueses e,
como tal, elimináveis no socialismo6 . O sentido da crítica de Marx
é outro: os direitos civis — os direitos do indivíduo privado — não
são suficientes para realizar a cidadania plena, que ele chamava
de “emancipação humana”, mas são certamente necessários. O
próprio direito de propriedade não é negado por Marx e pelos
marxistas, mas sim requalificado: para que esse direito se torne
efetivamente universal, assegurando a todos a apropriação dos
frutos do próprio trabalho, a propriedade não pode ser privilégio
de uns poucos, devendo ao contrário ser socializada e, desse
modo, universalizada7. Portanto, a cidadania plena — que, como
mostrarei adiante, parece-me incompatível com o capitalismo —
certamente incorpora os direitos civis (e não só os afirmados por
Locke, mas também os gerados mais recentemente), mas não se
limita a eles.
Por exemplo: não há cidadania plena (ou, o que é o mesmo,
não há democracia), sem o que Marshall chamou de “direitos
políticos”, isto é, sem a retomada daquela dimensão da cidadania
que era própria dos gregos. Ora, se é verdade que os regimes R. Praia Vermelha
próxima página liberais, que consolidaram a dominação burguesa, asseguraram Rio de Janeiro
(ainda que nem sempre e nem todos) os direitos civis, é também v.34 n.2
p. 509-529
verdade que não fizeram o mesmo em relação aos direitos
referências e notas Jul-Dez/2024
políticos. E quais são esses direitos? Além do direito de votar e
Notas sobre Cidadania e Modernidade ISSN 1414-9184
Carlos Nelson Coutinho
de ser votado, que é um dos principais meios de assegurar a
515 eISSN 1984-669X
participação na tomada das decisões que envolvem o conjunto
da sociedade, temos ainda — precisamente como condição para v.34 n.2 [2024]
início
que essa participação se torne efetiva — o direito de associação
e de organização. Esses direitos, pelo menos até o final do século
página anterior XIX, foram negados à grande maioria da população, mesmo nos
regimes liberais.
O direito universal ao sufrágio, que se tornou corriqueiro nas
democracias contemporâneas, foi uma árdua e difícil conquista.
Com diferentes alegações, os pensadores e as Constituições
liberais restringiram o direito ao sufrágio, concedendo-o apenas
aos proprietários, considerados como os únicos verdadeiros
interessados no bem-estar da nação. Um pensador tão
importante como Kant — certamente um liberal, ainda que
moderado — não hesitou em justificar teoricamente essa
limitação do sufrágio. Segundo ele, só deveriam votar os
indivíduos que, por serem independentes, teriam a possibilidade
de um juízo livre e autônomo; e essa independência tinha para ele
uma base econômica, classista, já que o filósofo alemão excluía
do direito ao voto tanto as mulheres (que dependiam de seus pais
e maridos) quanto os trabalhadores assalariados (que dependiam
dos seus patrões), com o que atribuía tal direito apenas aos
proprietários e aos produtores autônomos ou artesãos8 .
A primeira Constituição que emerge da Revolução Francesa,
a de 1791, que expressa a hegemonia dos liberais, consagrou
legalmente essa distinção entre “cidadão ativo” e “cidadão
passivo”, o primeiro dos quais com direito a votar e ser votado
(e, portanto, a ser governo), enquanto o segundo teria apenas
direitos civis. Na Constituição de 1793, que expressa a hegemonia
democrática dos jacobinos, essa distinção desaparece, mas
para ser retomada nas Constituições francesas posteriores, pelo
menos até 1848. A mesma limitação da franquia (do direito ao
voto) com base na propriedade está presente na totalidade das
Constituições liberais do século XIX, inclusive a brasileira.
A transformação do direito universal ao sufrágio em um direito
R. Praia Vermelha
próxima página
positivo só se completou na Europa no século XX. (E, no Brasil, só
Rio de Janeiro
em 1988, quando a Constituição em vigor suprimiu a proibição v.34 n.2
de voto aos analfabetos.) Em muitos países europeus, os p. 509-529
referências e notas trabalhadores tiveram de promover amplos movimentos sociais, Jul-Dez/2024
Notas sobre Cidadania e Modernidade como greves gerais, para conquistarem esse direito. Isso já indica ISSN 1414-9184
Carlos Nelson Coutinho um fato fundamental: a generalização dos direitos políticos, até 516 eISSN 1984-669X
mesmo nesse nível do sufrágio, é resultado da luta da classe
trabalhadora. Não me parece casual que o primeiro movimento v.34 n.2 [2024]
início
operário de massa, o cartismo inglês, que atuou na primeira
metade do século XIX, tivesse fixado como sua principal bandeira
página anterior de luta — ao lado da redução legal da jornada de trabalho —
precisamente o sufrágio universal. Foi assim em luta contra o
liberalismo burguês, contra suas teorias e suas práticas, que os
trabalhadores (e as mulheres) transformaram em direitos positivos
da cidadania moderna os chamados direitos políticos.
E isso não se refere apenas ao sufrágio, mas também ao direito de
organização. Com efeito, durante muitos anos, os governos liberais
proibiram os sindicatos, sob a alegação de que eles violavam as
famosas leis do mercado: com sua organização, os trabalhadores
obtinham um preço para a força de trabalho diferente daquele
que resultaria do “livre” movimento do mercado. Na França,
por exemplo, somente nos anos 70 do século XIX é que
os trabalhadores conseguiram revogar a Lei Le Chapellier,
promulgada em 1791, em plena Revolução Francesa, que proibia
a associação dos trabalhadores e as greves. Também uma outra
forma básica de organização na democracia moderna, o partido
político de massa, é uma invenção da classe trabalhadora: o
primeiro partido desse tipo, que supera claramente o velho
modelo liberal do partido meramente parlamentar ou de
“notáveis”, é o Partido Social-Democrata Alemão, que se tornou
o paradigma dos vários partidos operários de massa que se
alastraram na Europa no último terço do século XIX, conquistando
finalmente a legalidade após décadas de proibição e repressão.
Por tudo isso, já podemos ver que é um grosseiro equívoco, tanto
teórico quanto histórico, falar em “democracia burguesa”. Pode-
se certamente caracterizar o liberalismo como uma teoria e um
regime político burgueses: desde sua origem, o liberalismo se
liga claramente à classe burguesa, à sua luta pela construção de
uma ordem capitalista, o que não quer dizer que não existam
no liberalismo — e é preciso sempre insistir nisso — muitos
elementos que transcendem esse vínculo com a burguesia R. Praia Vermelha
próxima página e adquirem valor universal. Já as conquistas da democracia Rio de Janeiro
Portanto, é como se Marx dissesse: tudo o que limita o mercado v.34 n.2
p. 509-529
em nome de um direito social universal (ou, se preferirmos, da
referências e notas Jul-Dez/2024
justiça social) é uma vitória da economia política do trabalho, isto
Notas sobre Cidadania e Modernidade ISSN 1414-9184
Carlos Nelson Coutinho
é, de uma outra lógica de regulação social.
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Essa formulação marxiana me parece ter uma significação
bastante ampla: com ela, Marx fundamentou a legitimidade v.34 n.2 [2024]
início
e a possibilidade concreta de obter transformações sociais
substantivas através de reformas. Se uma reforma tópica, a fixação
página anterior da jornada de trabalho, é uma vitória da economia política da
classe operária, o mesmo pode ser dito — e ainda com mais razão
— do conjunto de direitos sociais que terminaram por se consolidar,
na segunda metade do século XX, no chamado Welfare State.
Não é assim casual que o neoliberalismo — a ideologia hoje
assumida pela burguesia, seja no Primeiro, no Terceiro ou no
ex-Segundo Mundos — propugne enfaticamente o fim dos
direitos sociais, o desmonte do Welfare State11 . Se esse objetivo
assumiu formas extremas nos emblemáticos governos de Ronald
Reagan e de Margareth Thatcher, não cabe esquecer que ele está
igualmente presente — ainda que por vezes sob formas menos
radicais — na maioria esmagadora dos governos capitalistas
contemporâneos. Pressionados pela queda da taxa de lucro
provocada pela dura recessão que abala hoje o capitalismo, os
atuais governantes burgueses buscam pôr fim ao Estado do
Bem-Estar, ao conjunto dos direitos sociais conquistados pelos
trabalhadores, propondo devolver ao mercado a regulação de
questões como a educação, a saúde, a habitação, a previdência, os
transportes, etc. Essa é uma clara prova de que os direitos sociais
não interessam à burguesia: em algumas conjunturas, ela pode até
tolerá-los e tentar usá-los a seu favor, mas se empenha em limitá-
los e suprimi-los sempre que, nos momentos de recessão (que
são inevitáveis no capitalismo), tais direitos se revelam contrários à
lógica capitalista da ampliação máxima da taxa de lucro.
Por tudo isso, não hesitaria em dizer que a ampliação da
cidadania — esse processo progressivo e permanente de
construção dos direitos democráticos que caracteriza a
modernidade — termina por se chocar com a lógica do capital.
Mas o que esse processo de ampliação também nos demonstra
é que não se deve conceber esse choque, essa contradição entre
cidadania (ou democracia) e capitalismo, como algo explosivo, R. Praia Vermelha
próxima página concentrado num único ponto ou momento. Trata-se de uma Rio de Janeiro
3
Como disse antes, citando Hegel, só existem direitos no Estado.
Seria então interessante recordar rapidamente de que modo o
processo de ampliação da cidadania, que tentei esboçar há pouco,
influiu na evolução do Estado moderno. Irei adotar, para discutir a R. Praia Vermelha
próxima página questão do Estado, o paradigma marxista; ele não é certamente Rio de Janeiro
4
Portanto, para concluir, eu diria que uma das principais
características da modernidade é a presença nela de um processo
dinâmico e contraditório, mas de certo modo constante, de
aprofundamento e universalização da cidadania, ou, em outras
palavras, de crescente democratização das relações sociais. Esse
processo é contraditório, sujeito a avanços e recuos, porque no
limite, como vimos, há um antagonismo estrutural entre essa
universalização da cidadania e a lógica de funcionamento do
modo de produção capitalista, cuja implantação, consolidação
e expansão foi, decerto, outra das características marcantes da
modernidade.
Mas seria unilateral identificar pura e simplesmente a
modernidade com o capitalismo, como o fazem todos aqueles
que parecem supor que uma sociedade se toma “moderna”
quando está plenamente integrada na lógica da atual
globalização capitalista. Contra essa visão, que continua a
empolgar nossos governantes e muitos de nossos intelectuais,
é preciso conceber a modernidade também pelo ângulo da
ampliação e da universalização da cidadania, ou seja, concebê-
la como uma época histórica marcada pela promessa da plena
emancipação do homem de todas as opressões e alienações
de que tem sido vítima, a maioria das quais produzidas e
reproduzidas precisamente pelo capitalismo. Nesse sentido, R. Praia Vermelha
próxima página podemos dizer que as possibilidades que a modernidade abriu Rio de Janeiro
Notas
1 Transcrição (revista para esta publicação) de conferência
pronunciada na Embratel, com transmissão em rede nacional de
televisão executiva, em 20 de maio de 1994, num ciclo de debates
sobre “Modernidade”. ↑
2 Incluído em T.H. Marshall, Cidadania, classe social e status.
Rio de Janeiro, Zahar, 1967, p.57-114. ↑
3 Cf., sobre isso, a interessante reconstituição histórica de José
Murilo de Carvalho, Desenvolvimiento de la ciudadanéa en Brasil.
México. El Colégio de México — Fondo de Cultura Económica,
1995. ↑
4 Karl Marx, A questão judaica. Rio de Janeiro, Laemmert, 1972. ↑
5 John Locke, Segundo tratado sobre o governo civil
e outros escritos. Petrópolis, Vozes, 1994, p.97 e ss. ↑
6 Claude Lefort, A invenção democrática. Os limites
do totalitarismo. São Paulo, Brasiliense, 1983, p.43 e ss. ↑
7 “Horrorizai-vos [os burgueses] porque queremos abolir a
propriedade privada. Mas, na vossa sociedade, a propriedade
privada está abolida para nove décimos de seus membros. E é
precisamente porque não existe para esses nove décimos que
ela existe para vós. [...l O comunismo não retira de ninguém o
poder de apropriar-se de sua parte dos produtos sociais; apenas
suprime o poder de escravizar o trabalho de outrem por meio
dessa apropriação” (K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido
Comunista, in Id., Obras escolhidas. Rio de Janeiro, Vitória, vol. 1, R. Praia Vermelha
próxima página Rio de Janeiro
1956, p. 38). Também nesse sentido, cf. o sugestivo ensaio de C.B.
v.34 n.2
Macpherson, “Os direitos humanos como direitos de propriedade”,
p. 509-529
in Id., Ascensão e queda da justiça econômica e outros ensaios.
Jul-Dez/2024
Notas sobre Cidadania e Modernidade
São Paulo, Paz e Terra, 1991, p.103-113. ↑ ISSN 1414-9184
Carlos Nelson Coutinho 528 eISSN 1984-669X
8 lmmanuel Kant, La metafísica de las costumbres. Madri,
Tecnos, 1989, p.144-145. ↑ v.34 n.2 [2024]
início
9 Pietro Ingrao, As massas e o poder. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1980, passim. ↑
página anterior
10 Karl Marx, “Manifesto de lançamento da Associação
internacional dos Trabalhadores”, in Marx e Engels, Obras
escolhidas, cit., p.354. ↑
11 Para um eficiente balanço crítico do neoliberalismo, cf.
os textos incluídos em Emir Sader e Pablo Gentili (orgs.), Pós-
neoliberalismo. As políticas sociais e o Estado democrático. Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1995. ↑
12 P. Anderson, “Balanço do neoliberalismo”, in Sader e Gentili
(orgs.), Pós-neoliberalismo, cit., p. 16. ↑
13 Para um mais amplo desenvolvimento dos temas indicados
neste item, bem como para maiores referências bibliográficas,
cf. C.N. Coutinho, Marxismo e política. A dualidade de poderes e
outros ensaios. São Paulo, Cortez, 1996, p.13-69. ↑
14 Nicos Poulantzas, O Estado, o poder, o socialismo.
Rio de Janeiro, Graal, 1980, p. 147. ↑
15 K. Marx e F. Engels, Manifesto, cit., p.43. ↑
Nota dos editores
Texto original conforme publicado em 1997 pela Revista Praia
Vermelha, salvo atualizações: a) de revisão pelo Novo Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa; b) de estilo de grifo —
adotando-se o itálico em vez do negrito — e de capitalização;
e c) da descrição do autor, que constava: “Professor titular do
Departamento de Política Social da ESS/UFRJ. Autor de vários
livros e ensaios, publicou recentemente Marxismo e política. A
dualidade de poderes e outros ensaios (São Paulo, Cortez, 2ª
ed., 1996) e Crítica e utopia em Rousseau (Lua Nova. Revista
de cultura e política, São Paulo, CEDEC, nº38, 1996, pp. 5-30).”. R. Praia Vermelha
Digitalização e preparação do original por Fábio Marinho, Editor Rio de Janeiro
Técnico da Revista Praia Vermelha. v.34 n.2
p. 509-529
Jul-Dez/2024
Notas sobre Cidadania e Modernidade ISSN 1414-9184
Carlos Nelson Coutinho 529 eISSN 1984-669X
Este número da Revista Praia Vermelha
foi diagramado entre janeiro e fevereiro
de 2025 pelo Setor de Publicações e
Coleta de Dados da Escola de Serviço
Social da UFRJ, para difusão online via
Portal de Revistas da UFRJ. Foi utilizada
a fonte Montserrat (Medium 13/17,6pt)
em página de 1366x768pt (1:1,77).