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Literatura e Direito: encontro e possibilidades

Gilda Carvalho*1

Sumário
1. Introdução: Literatura e Direito em diálogo. 2. Por que falar de Literatura e
Direito? 3. Para quê falar de Literatura e Direito? 4. O sentido de um sopro. Referências
bibliográficas.

Resumo
O propósito desse artigo inicial é apresentar as possibilidades da relação
interdisciplinar entre a Literatura e o Direito, explorando as contribuições possíveis
para os dois campos do conhecimento e para a sociedade brasileira.

Abstract
The purpose of this initial article is to presente the posibilities of the interdisciplinar
relationship between Literature and Law, exploring possible constributions to both fields
of knowledge and to Brasilian society.

Palavras-chave: Interdisciplinaridade. Antonio Candido. Direito e Literatura.


Ficção. Cidadania.

Keywords: Interdisciplinarity. Antonio Candido. Literature and Law. Ficcion.


Citizenship.

1. Introdução: Literatura e Direito em diálogo

“Os cientistas dizem que somos feitos de


átomos, mas um passarinho me contou que
somos feitos de histórias.”

Eduardo Galeano

* Mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio. Diretora do Instituto Interdisciplinar de Leitura da PUC-Rio.
Coordenadora da Cátedra Unesco de Leitura da PUC-Rio.

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Gilda Carvalho

Literatura e Direito são compostos da mesma matéria-prima: a pessoa humana.


Considerada em suas relações, conquistas, tragédias, potencialidades e perversidades,
é essa pessoa que está no centro das narrativas e dos tribunais.
A trama das histórias representa e produz a identificação de sujeitos,
humanizando-os. Em sua concepção mais primária, é também o processo de
humanização da pessoa que está na base dos códigos legais que regem a vida
de uma sociedade. Portanto, colocar em diálogo dois campos do conhecimento
aparentemente distintos revela uma distância que se apresenta maior entre as formas
e nem tanto quanto ao seu conteúdo. A mensagem e a narrativa com seus dilemas
são fundamentalmente os mesmos – por isso a facilidade de representação entre um
e outro e a facilidade do diálogo entre o texto literário e o jurídico.
Contudo, essa relação ultrapassa os limites da representação textual,
expandindo-se à Literatura como Direito, ou seja, aquele direito pelo qual se luta:
o direito de acesso ao livro e ao texto, o direito à uma cadeia de produção literária
justa e equânimes entre editores – autores – leitores e, o mais sublime, a conquista
da literatura como direito humano.
Este texto, que inaugura o Observatório Literário da Revista do Ministério Público
do Rio de Janeiro, dialoga com as duas perguntas que intitulam essa Introdução em
uma perspectiva de complementaridade: “Por que falar sobre Literatura e Direito”
quer remeter ao encontro entre os textos literário e jurídico, destacando questões
de leitura, interpretação e representação. De seu lado, “Para quê falar de Literatura e
Direito” pretende delinear caminhos para a consolidação daquele mesmo encontro,
porém, considerando aqui dois campos do conhecimento cujo diálogo está para além
do texto. Como dito, este é um artigo inaugural, que se coloca com a pretensão de
aperitivo para muitas outras possibilidades e reflexões que virão a ser aprofundadas por
pesquisadores associados à Cátedra Unesco de Leitura da PUC-Rio, como contribuição
para uma reflexão interdisciplinar autêntica e produtiva.

2. Por que falar de Literatura e Direito?


Era uma vez uma madrasta que se deixou tomar pela inveja ao ouvir de seu
espelho que não era a mais linda mulher, mas sim Branca de Neve, sua pura e bela
enteada. A partir daí, cria-se a trama: um ardil, um pretenso crime, a salvação de uma
e a perdição da outra.
Estão aí, num simples conto de fadas, contado e recontado por gerações, os
elementos básicos de uma boa história e de um complexa peça jurídica. Nas pontas
de um crime existe de um lado os sentimentos imorais motivadores e, de outro, o
desejo de justiça que o repara. O bem e o mal em constante tensão ou por assim
dizer, a própria alma humana.
De um modo simples, o Direito tem uma origem que remonta ao momento em
que os homens passam a viver em grupos organizados e percebem que precisam de
regras que regulem o convívio comum, as condutas, os limites do respeito ao outro

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Literatura e Direito: encontro e possibilidades

e as relações de troca. De lá para cá, tornou-se complexo, elaborou uma linguagem


própria, enveredou por caminhos traçados pela humanidade em seu processo de
desenvolvimento social e tecnológico, porém, sem nunca perder o poder humanizador
e regulador que lhe é conferido desde sempre.
Por sua vez, a Literatura, que surge do registro das histórias contadas ao redor
do fogo, assume, com o correr do tempo, o papel organizador de sentidos, desde os
mais primários guardados no interior do sujeito, até aqueles que determinam relações
em uma comunidade. Antonio Candido, em seu célebre artigo “Direito à Literatura”,
fala sobre esse papel organizador do texto literário:

Mas as palavras organizadas são mais do que a presença de um


código: elas comunicam sempre alguma coisa, que nos toca porque
obedece a certa ordem. Quando recebemos o impacto de uma
produção literária, oral ou escrita, ele é devido à fusão inextricável
da mensagem com sua organização. Quando digo que o texto
me impressiona, quero dizer que ele impressiona porque a sua
possibilidade de impressionar foi determinada pela ordenação
recebida de quem o produziu. [...] Toda obra literária pressupõe
essa superação do caos, determinada por um arranjo especial das
palavras e fazendo uma proposta de sentido. (Candido, 2014)

Decorrente disto, embora o Direito e a Literatura tratem de questões e


objetos muito próximos, cada um assume uma linguagem própria. Decodificar
tais linguagens é o pretendido por quem a lê que, para tanto, necessita dominar
um código específico. Falando sobre a importância da interpretação e da leitura, a
professora Eliana Yunes ensina:

O arranjo das sociedades passa necessariamente por acordos que


viabilizam deveres e direitos assentados em discursos em que vão dos
jurídicos aos científicos. E, com frequência, por mais emblemáticos
e representativos que sejam enquanto simbólicos, abrem-se aos
ficcionais, entre eles o literário. E aí nascem os problemas com as
narrativas, desde Platão. (Yunes, 2020)

Narrativas são, em si, o corpus literário ou jurídico. De certa forma, aos olhos
daqueles não familiarizados com o código linguístico do Direito pode parecer que
o texto literário seja mais “fácil” ou “agradável, prazeroso” de ser lido. Esta é, porém,
uma percepção fragmentada, pequena talvez, pois a Literatura pode ser bastante
complexa para aquele que não domina a sua própria língua. Retomando Antonio
Candido, explica-se o poder da forma literária:

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Gilda Carvalho

Dou sempre como exemplo os provérbios: “água mole em pedra


dura tanto bate até que fura”. Isso é uma formulação rigorosamente
formal. São dois setissílabos com acentuação e que justamente
porque são setissílabos se gravam no meu espírito e me fazem ver
a importância daquela mensagem. Se eu disser, por exemplo, “a
pessoa com uma certa tenacidade sempre consegue o que quer”,
isso tem muito menos efeito do que se eu disser “água mole em
pedra dura...”, porque eu criei uma imagem, entrei no domínio da
metáfora e a metáfora se tornou uma experiência. Essa é a grande
força social e educativa da Literatura. (Candido, 2013)

Ora, se Literatura e Direito se debruçam sobre as narrativas humanas e tem,


ambos, a possibilidade de organizar e regular as relações sociais. A primeira, contudo,
pode servir ao outro como o instrumento de aproximação de um texto dito difícil
para a maioria das pessoas que não domina o discurso jurídico, mas que consegue
compreender através do jogo ficcional como aquele funciona. É assim que entra
em cena o poder da representação, na perspectiva da encenação de um texto que
absorve elemento de ambos os campos para aproximá-lo do leitor ou espectador.
Roland Barthes ajuda a compreender esse movimento:

(...) Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopédica, a literatura


faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes
dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso. Por um lado, ela
permite designar saberes possíveis – insuspeitos, irrealizados: a
literatura trabalha nos interstícios da ciência: está sempre atrasada
ou adiantada com relação a esta, [...]. A ciência é grosseira, a vida
é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa.
(Barthes, 2013)

É essa potência da ficção que pode explicar os incontáveis textos – escritos,


falados, filmados – que têm como trama questões que tocam o Direito. Vilões,
assassinos, traidores, corruptos e outros tipos são personagens que recheiam narrativas
onde a busca pela justiça se atualiza desde os tempos em que a humanidade começou
a contar histórias. Cenas de tribunais se somam àquelas em que a própria trama discute
questões de garantia ou conquistas de direitos. Definitivamente, a ficção esclarece
e configura o pensamento de massa e, se o faz menos pelo livro, potencializa-se na
produção e adaptação para TV, cinema, teatro e – porque não? – internet. Arte a
serviço do Direito, regulando a sociedade, educando pessoas, estabelecendo novas
relações e ordenamento social.

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3. Para quê falar de Literatura e Direito?


Estabelecida a possibilidade de diálogo entre textos de dois campos do
conhecimento distintos, há que se pensar em outras formas de contribuição que
se originam desse encontro. Se a Literatura oferece ao Direito a sua “popularização”
mediante o seu poder de ficcionalização e representação, este lhe abre as portas para
discussões mais profundas, que tocam tanto a cadeia produtiva do livro quanto o
direito ao acesso daquela como Arte e Educação.
Regular as ações comerciais que se relacionam com a produção e a
comercialização da Literatura se circunscreve a campos específicos do Direito, voltados
para a garantia de uma relação harmônica e justa entre editoras, autores e livreiros
comerciantes. Esse conjunto de leis, contudo, é apenas uma das faces de uma imbricada
relação em cujo horizonte está o acesso à Literatura enquanto expressão artística e
cultural de um povo.
É o mesmo mestre Antonio Candido, já citado, que lança a base dessa discussão
no seu texto O direito à Literatura, reproduzido com a devida autorização do autor, na
coletânea homônima organizada por Aldo de Lima publicada pela Editora Universitária
da UFPE, em 2014. Na epígrafe que introduz a Apresentação do livro, diz Candido:

A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser


satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de
dar forma aos sentimentos e à visão de mundo ela nos organiza,
nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da
literatura é mutilar nossa humanidade. (Candido, 2014)

Para que a Literatura seja um bem de livre acesso a toda sociedade, deixando
de ser privilégio de um determinado grupo, é preciso pensá-la para além da sua
forma textual – escrita ou não. Há que se estabelecer primeiramente a garantia de
uma Educação transformadora, que considere a Alfabetização enquanto domínio
do código linguístico e a Leitura como força motriz da construção de cidadania, que
possibilitará ao indivíduo o pleno cumprimento de direitos e deveres. Em segundo
plano, tendo em vista as desigualdades sociais brasileiras, há que se garantir a plena
circulação de livros, mediante custos de produção justos, que, por sua vez, impactarão
em preços acessíveis, sem abandonar o estabelecimento e cumprimento de políticas
públicas que deem condições de acesso ao livro e à leitura.
Essa reflexão amplia a relação entre o Direito e a Literatura, aproximando-a
daquilo que preconiza o artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

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Gilda Carvalho

1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida


cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso
científico e de seus benefícios.
2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e
materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou
artística da qual seja autor.1

Se a Literatura nos possibilita sonhar o sonho de quem pensou um mundo


diferente daquele que conhecemos; o Direito nos ajuda a construí-lo. Assim, pensar
em para quês? amplia a reflexão e a lança rumo a um futuro diferente para a sociedade
brasileira, que há de ser melhor, mais humano e igualitário.

4. Conclusão: o sentido de um sopro


“Literatura para quê?” é o título de um pequeno livro publicado pela Editora
da UFMG e que traz a Aula Inaugural do professor Antoine Compagnon, no Collège
de France, em 2006. Nela, o conferencista faz menção a Roland Barthes, citando-o:
“[A] literatura não permite andar, mas permite respirar”. (Barthes apud Compagnon,
2009, p. 41)
Possivelmente, a Literatura sozinha não fará o mundo andar em direção a um
sentido melhor, mas, sem dúvida, o texto literário forma e transforma. Seu encontro
com outros campos do conhecimento tem, portanto, o papel de sopro: aquele que
regenera, que refresca, que clareia o olhar e produz novos sentidos. Essa conversa já
existe há algum tempo, mas aqui está apenas começando.

Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio
de França, pronunciada dia 7 de novembro de 1977. Tradução e posfácio de Leila
Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2013.
COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Trad. Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte:
Editora UFMG. 2009.
LIMA, Aldo (Org.). Antonio Candido – O observador literário. Recife: Editora Universitária
UFPE, 2013.
______ (Org.). O direito à Literatura. 2ª edição. Recife: Editora Universitária UFPE. 2014.
YUNES, Eliana. Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. Curitiba: Aymará. 2009.

1
Declaração Universal dos Direitos Humanos, em https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-
dos-direitos-humanos, acessado em 02/09/2023, às 16h10.

330 | Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nº 89, jul./set. 2023
Literatura e Direito: encontro e possibilidades

______. Leitura Políticas Públicas e... Literatura, Direito do Público. In Miscelânea,


Revista da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Federal Paulista, São
Paulo: Editora UNESP, 2020, p. 27-36.

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