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ARTIGO CRIAÇÃO E CRÍTICA

O artigo analisa como o amor, um tema central na literatura brasileira, é reinterpretado pela crítica literária feminista, que revela como o que é considerado amor pode, em muitos casos, representar a diminuição de personagens femininas em favor de seus pares masculinos. Essa nova perspectiva é influenciada por movimentos feministas e pela dinâmica entre escritoras, leitoras e críticas, permitindo uma ressignificação do amor em narrativas que promovem uma sociedade mais plural. O texto também discute como a literatura reflete e perpetua estereótipos de gênero, destacando a necessidade de uma análise crítica que questione essas representações.
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ARTIGO CRIAÇÃO E CRÍTICA

O artigo analisa como o amor, um tema central na literatura brasileira, é reinterpretado pela crítica literária feminista, que revela como o que é considerado amor pode, em muitos casos, representar a diminuição de personagens femininas em favor de seus pares masculinos. Essa nova perspectiva é influenciada por movimentos feministas e pela dinâmica entre escritoras, leitoras e críticas, permitindo uma ressignificação do amor em narrativas que promovem uma sociedade mais plural. O texto também discute como a literatura reflete e perpetua estereótipos de gênero, destacando a necessidade de uma análise crítica que questione essas representações.
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UMA LEITURA DO AMOR A PARTIR DA CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: UM EXERCÍCIO ÉTICO,

ESTÉTICO E POLÍTICO

Claudiana Gois dos Santos1

Resumo: O presente artigo busca evidenciar como o amor, por ser um dos temas mais
recorrentes na literatura brasileira, já foi lido de diversos modos em nossa literatura. Uma das
perspectivas que causou maiores mudanças foi a crítica literária feminista, que desvelou
situações em que o que era nomeado como amor, em determinadas narrativas, poderia ser
lido como a diminuição de uma personagem em detrimento do crescimento de outra no interior
daquele universo ficcional. Essa mudança de perspectiva que ocorre em relação ao amor
afeta e é afetada pelos movimentos feministas de diversas vertentes, e também pelas três
pontas que formam o sistema literário: quem escreve, quem lê e quem elabora as análises
críticas. Assim, nessa relação de retroalimentação entre escritoras, leitoras e críticas, vemos
que o amor pode, inclusive, ser ressignificado em projetos literários que estejam de algum
modo relacionados com a representação de uma sociedade mais diversa e plural, rompendo
com ideias que restringiam a presença feminina na literatura ao sentimentalismo simplificado
ou mesmo ao amor como único interesse da vida das personagens.
Palavras-chave: Crítica literária feminista; amor; literatura brasileira.

A READING OF LOVE FROM FEMINIST LITERARY CRITICISM: AN ETHICAL, AESTHETIC, AND


POLITICAL EXERCISE

Abstract: This article aims to show how love, being one of the most frequent themes in
Brazilian literature, has been read in many ways. One of the perspectives that caused the
greatest amount of change was feminist literary criticism, which revealed situations where what
was named as love, in many cases, could be understood as the weakening of one character
at the expense of the growth of another within that fictional universe. This change in
perspective that occurs in relation to love affects and is affected by feminist movements of

1Doutoranda pelo programa de Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa, pesquisa,


desde o Mestrado, a representação de personagens femininas na literatura (2018). Possui graduação
em Letras - Português e Inglês e Respectivas Literaturas, pela Universidade de Santo Amaro (2010),
com o trabalho de Conclusão de Curso voltado para a Literatura e Feminismo na obra de Clarice
Lispector. Possui experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Feminista, Gêneros e
Estudos Feministas. Atua na área da Educação como Professora Orientadora de Sala de Leitura
Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. [email protected]
156
various origins, as well as by the three points that form the literary system: the writer, the reader
and the critic. Thus, in this exchange relationship between female writers, readers, and critics,
we see that love can even be redefined in literary projects that are somehow related to the
representation of a more diverse and plural society, breaking with ideas that restricted female
presence in literature to simplified sentimentality or even to love as the sole interest in the
characters' lives.
Keywords: Feminist literary criticism; love; Brazilian literature.

O amor é um dos temas mais recorrentes na literatura brasileira. Estudos


quantitativos como “A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-
2004”, de Regina Dalcastagnè (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 38), ou qualitativos como
“Estímulos da Criação Literária”, de Antonio Candido (CANDIDO, 2011, p. 63–4),
reiteram, de certo modo, o fascínio que a vida sentimental de personagens desperta
nos leitores. Ao que parece, as histórias de amor com finais infelizes tendem, inclusive,
a chamar mais atenção. Essa é uma peculiaridade sugerida por estudos como o de
Antonio Candido, mencionado acima.
Para tentar compreender tal interesse, é possível recorrer a alguns elementos
fundantes da nossa cultura, como os ecos de religiões fundamentadas em ordens
patriarcais, por exemplo, o cristianismo. No livro Tudo sobre o amor: novas
perspectivas, bell hooks afirma que “Culturas de dominação cortejam a morte. Por isso
a fascinação constante pela violência [...] o culto à morte é um componente central do
pensamento patriarcal, seja ele expresso por homens ou mulheres.” (hooks, 2020,
p.221-223). Mesmo no caso de quem não professa tais crenças, a socialização do
indivíduo em culturas que valorizam a culpa, o sofrimento e o sacrifício, tende a
impactar sua compreensão de mundo. Transportando essa discussão para o campo
ficcional, podemos estimar o quanto o sofrimento tem sido base para as narrativas
sobre o amor na literatura brasileira.
Se compreendermos a literatura como

[...] um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes


de seu papel, um conjunto de receptores formando diferentes tipos de
público, sem os quais uma obra não vive e um mecanismo transmissor,
(de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns
aos outros [...] (CANDIDO, 2000, p. 23),

157
podemos inferir que, esteja a pessoa em qualquer ponta deste sistema (autora, leitora
ou crítica), o enfoque que alguns fatos do texto receberão, consciente ou
inconscientemente, será tocado por esses elementos culturais. Assim, a valorização
do sofrimento poderia explicar, ainda que parcialmente, porque amores representados
na literatura com finais infelizes tendem a ser considerados mais intensos e
verdadeiros do que representações de relacionamentos entre personagens com
algum nível de ponderação em relação ao amor.
Outro fator a ser considerado é que mudanças sociais impactam os modos de
representação literária dos relacionamentos. O amor não é representado como algo
estático e imutável ao longo dos séculos. O que se compreende como amor, presente
na enunciação do discurso amoroso de uma personagem, ou ainda, nas ações feitas
em nome deste afeto, pode ser o avesso desse sentimento, sobretudo se observado
em contextos históricos diferentes, ou mesmo, se analisado por outras vertentes de
crítica literária.
Por vezes, o que é chamado de amor, se observado por outras perspectivas,
pode revelar traços de misoginia, controle ou dominação. Não raro, manifestações de
ciúme, insegurança e violência foram representadas na literatura sob o nome de amor.
Esse tipo de percepção molda o imaginário cultural de um povo e pode embasar
padrões de comportamento dentro e fora da ficção.
Além disso, o senso comum, sustentado por algumas percepções de amor
como algo indefinível ou incontrolável, parece viabilizar comportamentos de
dominação ou subjugação de uma personagem por outra. Assim, uma relação que se
inicia sem hierarquias, aos poucos, torna-se um espaço em que uma personagem
assume o papel de dominante e outra de dominada, dentro do jogo amoroso.
Um dos exemplos pioneiros desse fenômeno pode ser encontrado em Iracema,
de José de Alencar (1865). A personagem homônima do romance é descrita como
uma pessoa com autonomia, coragem e destreza, porém, a partir do encontro com
Martim e do amor que o narrador afirma que ambos sentiram, a protagonista é
reduzida de “filha das florestas” a “colibri”. Esta, entre outras metáforas, sugere sua
diminuição, ao passo que seu par amoroso se engrandece ao longo da narrativa
(DUARTE, 1990b, p. 194).
A leitura de obras (canônicas ou não) a partir de perspectivas críticas centradas
no papel que o feminino desempenha é um dos motores da crítica literária feminista.
A emergência deste modelo de análise nas universidades brasileiras, a partir dos anos

158
de 19702, fomentou o surgimento de novos modos de compreender a literatura em
relação às autorias, à representação de personagens e às abordagens de temas
comuns. Esta ampliação de possibilidades de análises críticas nos fornece
ferramentas importantes para questionar estereótipos presentes na literatura, uma vez
que

uma leitura feminista pode elucidar não só problemas estéticos, mas


questionar também os cânones estabelecidos de hierarquias de
qualidade, obrigando o reexame dos princípios e os métodos que têm
contribuído para formar nossos juízos (DUARTE, 1990a, p. 76).

A crítica literária feminista questiona a posição de neutralidade ou universalidade, visto


que muitas vezes o sujeito está implicado diretamente no objeto analisado; além disso,
faz parte da crítica feminista o diálogo intenso (e nem sempre pacífico) entre o saber
acadêmico e as demandas dos movimentos sociais. É com este arcabouço que esse
modelo de crítica pretende combater, entre outros pontos, estereótipos atribuídos às
autorias e às personagens femininas de nossa literatura.
Alguns destes estereótipos ora foram considerados elementos de menor
importância para crítica, ora foram cristalizados como algo inerentemente feminino.
Um exemplo disso é a atribuição de sentimentalismo ao feminino ou a restrição das
personagens femininas à vivência apenas sentimental. A professora Constância Lima
Duarte, na ocasião do II Encontro Nacional da ANPOLL3, questionou a percepção da
crítica tradicional sobre o espaço feminino na literatura, como podemos ver no
seguinte trecho:

Com relação aos temas e gêneros literários [os críticos tradicionais]


são unânimes em apontar alguns que seriam mais adequados à

2 As décadas de 1960 e 1970 foram períodos importantes para emergência da Crítica Literária
Feminista nas universidades brasileiras devido à maior circulação nacional e internacional do
pensamento feminista de variadas vertentes, inclusive com a volta de mulheres que, exiladas pela
ditadura militar, tiveram contato com teorias que ainda não haviam chegado ao Brasil. “A ênfase do
enfoque sobre a mulher nas diversas áreas de estudo é resultado direto do movimento feminista das
décadas de 60 e 70, e pretendeu/pretende, principalmente, destruir os mitos da inferioridade natural,
resgatar a história das mulheres, reivindicar a condição de sujeito na investigação da própria história,
além de rever, criticamente, o que os homens até então tinha escrito a respeito” (BLAY, 2017, p. 65–
79; DUARTE, 1990a, p. 70).
3 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística.

159
mulher como os romances sentimentais e os de confissão psicológica,
tal a sensibilidade feminina (DUARTE, 1990a, p. 75).

O lugar da mulher na literatura como autora, leitora, personagem ou crítica é


um tema discutido por diversas estudiosas, como Virgínia Woolf, em vários ensaios4.
Nos textos de muitas destas pensadoras feministas, questiona-se os pesos e as
medidas que a crítica tradicional atribui ao amor diante de obras com autoria ou
personagens femininas, como vemos no excerto abaixo:

Como os árbitros das convenções são os homens, pois foram eles que
estabeleceram uma ordem de valores na vida, e já que é na vida que
em grande parte a ficção se baseia, também aqui, na ficção, em
extensa medida, esses valores prevalecem (WOOLF, 2019, p. 15).

ou ainda em:

Suponhamos, por exemplo, que os homens só fossem representados


na literatura como apaixonados pelas mulheres, e nunca fossem
amigos de homens, soldados, pensadores, sonhadores; que pequena
quantidade de papéis nas peças de Shakespeare lhes poderiam ser
atribuídos, como sofreria a literatura! Talvez pudéssemos ter a maior
parte de Otelo e uma boa parcela de Antônio, mas nenhum César,
nenhum Brutus, nenhum Hamlet, nenhum Lear, nenhum Jacques — a
literatura se empobreceria incrivelmente, como de fato a literatura é
empobrecida de modo incalculável pelas portas que foram fechadas
às mulheres. Casadas contra sua vontade, mantidas num só cômodo
e com uma só ocupação, como poderia um dramaturgo fornecer delas
uma avaliação integral, interessante ou verdadeira? O amor era o
único intérprete possível (WOOLF, 2014, p. 99).

4Muitos ensaios de Virgínia Woolf foram traduzidos ao português e organizados em coletâneas como
Mulheres e Ficção (2019), reunião de textos publicados na imprensa inglesa na década de 1920, e Um
Teto todo seu (2014), reunião de ensaios publicada originalmente em 1929.
160
Considerado, portanto, como o grande motivo da vida de personagens
femininas, ou ainda, como campo de maior habilidade para escritoras, curiosamente,
o amor é um assunto que, por muito tempo, predominou o discurso masculino (seja
ele enunciado por autores, personagens ou teóricos de diversas áreas). Essa
aparente contradição5 entre serem os homens os que mais falam sobre amor, ainda
que atribuam os sentimentos à “essência feminina”, pode ser explicada por diversos
fatores: desde a nomeação, como amor, de uma série de comportamentos de
dominação, violência, preconceito de gênero, raça, classe e orientação sexual,
passando pelas condições materiais de produção literária negadas e/ou dificultadas
às mulheres, em muitos contextos históricos e sociais, até uma certa capacidade
pedagógica e formativa que algumas histórias de amor têm, no sentido de ditar
comportamentos para, com isso, manter algumas hierarquias de gênero.
Com a predominância dos discursos masculinos (de autores e/ou personagens)
sobre o que e como seria o amor, estabeleceu-se certo padrão no qual as
personagens femininas possuíam pouco espaço senão o da obediência à lógica
patriarcal, revestida sob o nome de amor. Aquelas que não se submetiam e/ou
ousavam alguma transgressão a essa ordem muitas vezes foram “punidas” ao longo
da narrativa com a dor, a culpa, o sofrimento, a infâmia, o adoecimento e a morte.
Se por um lado podemos inferir que foi a partir da poesia de amor cortês que o
discurso sobre o amor na literatura, feito por autoras ou personagens femininas,
passou a ser “apropriado, imitado e deturpado pelo saber do homem, servindo-lhe
para consolidar através da tradição escrita uma certa visão estratificada da mulher”
(CARVALHO, 1990, p. 35), por outro, sabemos que foi ao longo do Romantismo que
algumas divisões de papéis de gênero e certa lógica hierárquica, que favorecia o
masculino, intensificaram-se.
No livro O amor romântico e outros temas, Dante Moreira Leite (1979) explica,
por meio de análises da obra Lucíola, de José de Alencar(1862), como o amor
romântico traça uma divisão rígida de papéis de gênero, na qual

5 Esta contradição não parece restrita ao universo literário nem tampouco à realidade brasileira; ela é
alvo de discussões no livro Tudo Sobre o amor: novas perspectivas (2020), da crítica de cultura bell
hooks. Nele a escritora estadunidense afirma que “Se fosse verdadeira a ideia de que homens e
mulheres são completamente opostos, habitando universos emocionais totalmente diferentes, os
homens jamais teriam se tornado autoridades máximas no amor, levando em conta os estereótipos de
gênero que atribuem às mulheres o papel dos sentimentos e da emotividade e aos homens, o da razão
e da não emoção “homens de verdade” teriam aversão a qualquer conversa a respeito do amor.”
(hooks, 2020, p. 40).
161
A posição do homem no esquema afetivo do romantismo é peculiar e
apresenta algumas das contradições inevitáveis na vida social do
período. Paulo, o herói do romance de Alencar, parece inteiramente
isento de qualquer culpa, não respondendo pelos pecados de que
participa. O duplo padrão de moralidade talvez nunca tenha sido tão
nítido. O que para uma mulher constitui um pecado inominável, para o
homem seria uma experiência aceita e valorizada (LEITE, 1979, p. 58).

É importante salientar que, embora a estética do Romantismo tenha valorizado


este modelo, ele não se inicia, tampouco se esgota ao fim do Romantismo. Pelo
contrário, vemos ecos mais ou menos acentuados deste padrão em muitas produções
literárias contemporâneas6.
Todavia, convém ressaltar a possibilidade de um viés essencialista que pode,
eventualmente, colocar-se no decorrer dessa linha de raciocínio. Não é,
necessariamente, porque um escritor escreve sobre personagens femininas e seus
sentimentos que haveria a repetição de um padrão hierárquico de amor. Do mesmo
modo, não basta ser uma mulher a escrever para que sejam questionados lugares-
comuns sobre as personagens femininas e o amor na literatura. Assim, basear-se
nessa linha de raciocínio essencialista seria apostar em respostas fáceis e rasas para
um problema complexo e profundo.
Talvez por isso, um dos pontos mais fortes da crítica literária feminista brasileira
seja justamente a “participação consciente e preocupada em encaminhar sua
argumentação na defesa dos interesses da mulher” (DUARTE, 1990a, p. 16). E entre
os diversos interesses possíveis está sua vida afetiva. Vemos aqui que talvez o
problema não esteja, apenas, em vincular a imagem de escritoras ou personagens
femininas ao amor, o problema é restringi-las a um modelo de amor que as confina
em posições sociais hierarquicamente inferiores aos homens.

6 No romance Um copo vazio, de Natalia Timerman (2021), por exemplo, a protagonista jovem,
estabilizada financeiramente, com profissão, círculo de amigos, família, etc, vê-se obcecada pelo
homem que a abandonou. Neste romance, o personagem masculino desaparece sem explicação e
sobre a protagonista paira o sofrimento, a culpa e vários sentimentos de inadequação que a colocam
num espaço de espera da validação masculina. A ele coube desaparecer, sem aparente julgamento ou
culpa por isso, a ela cabe a espera, a solidão, a vulnerabilidade. A hierarquia entre quem abandona e
quem é abandonado se constrói aqui pela repetição do padrão de mulheres postas à espera incerta da
volta do personagem masculino que amam. Além disso, o padrão dos amores infelizes é retomado,
como vemos no trecho: “Já passou o que é possível passar, porque tem coisas, entendi ao longo do
tempo, que não passam nunca. Os restos. O amor envernizado pelo nunca” (TIMERMAN, 2021, p. 85).
162
Quando a crítica de cultura estadunidense bell hooks discute o amor na cultura
norte-americana, de uma maneira abrangente, para além do campo literário, um dos
pontos mais contundentes é a relação dos movimentos feministas e a experiência da
vida afetiva. Segundo ela, no livro O feminismo é para todo mundo: políticas
arrebatadoras (2018), devido a muitos fatores culturais e pela alta prevalência de
relações pautadas por dominação e subordinação, o amor era encarado por muitos
grupos feministas dos anos de 1970 e 1980 como um produto apresentado às
mulheres pela lógica patriarcal, e, portanto, algo negativo (hooks, 2018, p. 145).
Quando a autora menciona a lógica patriarcal e não só os relacionamentos
heterossexuais, é porque aquela estrutura inclui relações entre mulheres, visto que
algumas delas também reproduziam a exploração, as hierarquias e a dominação
patriarcal com suas parceiras7.
Porém, a visão reducionista do amor como algo restrito à lógica patriarcal
trouxe mais desconforto, do que, de fato, sugeriu caminhos para vivências mais
saudáveis no campo afetivo. Nesse ponto, importantes contribuições foram dadas aos
movimentos feministas por teóricas e críticas de cultura negras e/ou lésbicas. Ao
detalhar os elementos nocivos do patriarcado e demonstrar outras maneiras de
experimentar uma vivência amorosa, as formulações propostas por teóricas como
Adrienne Rich, em Heterossexualidade Compulsória & outros Ensaios (2019), e por
Audre Lorde, em “A poesia não é um luxo” (2019) e “Usos do erótico: o erótico como
poder” (2019)8 demonstraram como o amor pode ser, ao invés de um aprisionamento,
uma potência.
O amor visto como potência não é exclusividade do pensamento feminista.
Outros autores já discutiram o amor por esta perspectiva que o distancia do
sofrimento, da dor e da culpa, e que o aproxima do crescimento humano. Em Ética,
de Espinosa, livro publicado postumamente em 1677, temos uma abrangente
discussão a respeito dos afetos, entre os quais está o amor.
Afeto, para Espinosa, seria algo pelo que “a potência do próprio corpo seria
aumentada ou diminuída” (ESPINOSA, 2021, p. 237). Desse modo, o afeto é
considerado algo sobre o qual podemos agir; se do contrário, nosso agir é limitado, se
sofremos o afeto, para Espinosa, isso limitaria nossa potência de vida. Nessa
perspectiva, o amor, por estar relacionado à alegria, seria algo vinculado ao
crescimento da potência do ser humano.

7 Um interessante relato sobre relacionamento abusivo entre personagens femininas pode ser visto no
livro de Na casa dos sonhos, de Carmem Maria Machado (2021).
8 Ensaios e comunicações reunidos em tradução ao português no livro Irmã Outsider: ensaios e

conferências (LORDE, 2019).


163
Por mais que no campo literário o discurso que relaciona o amor ao sofrimento
seja bastante difundido, sobretudo em relação às personagens femininas restritas à
esfera sentimental, podemos ver que a relação entre amor e sofrimento já foi e tem
sido questionada em muitas frentes. Segmentos da crítica feminista da segunda
metade do século XX, por exemplo, propunham a valorização do amor-próprio e da
autonomia emocional e financeira das mulheres. Essa nova postura chegou ao campo
ficcional por meio de projetos literários de escritoras que retratavam personagens
femininas mais próximas à diversidade encontrada fora das páginas da literatura. Do
mesmo modo, uma parte da crítica literária passou a considerar em suas análises
obras cujas personagens demandavam um olhar mais complexificado, com mais
camadas de interpretação.
Seja pelas reivindicações das teorias do feminismo negro, seja pelos
questionamentos das feministas lésbicas, a crítica literária feminista passou a
observar de que modo os conceitos de raça, classe, gênero e orientação sexual
impactavam na forma de representar relações de amor na literatura, além disso,
passou-se a observar como essas representações refletem costumes da sociedade e,
de modo semelhante, podem interferir nas relações na vida real com a criação de
novos imaginários.
O lema “o pessoal é político”, comum entre muitas vertentes do feminismo dos
anos de 1970, norteou muitas análises nas quais as relações amorosas de
personagens eram investigadas pela representação literária de violências que muitas
vezes aconteciam na vida real. Essas e outras representações começaram a
demandar leituras teóricas diversas àquelas centradas nos casais heterossexuais,
brancos e de classe média, predominantes na literatura brasileira9.
Para iniciar essa mudança de perspectiva, porém, foi necessário rever algumas
formas de compreensão do amor em diversos segmentos da sociedade. Um passo
importante nessa direção foi a celebração pela ONU do Ano Internacional da Mulher,
em 1975. Entre as importantes ações resultadas desse evento, ocorreram muitos
debates públicos que questionavam a violência doméstica e desmistificavam a noção
de crime passional10. A desvinculação jurídica da violência e do ciúme em relação ao
amor foi um ponto decisivo para o avanço dessas pautas.
Além disso, socialmente, a compreensão do amor como uma das esferas da
vida da mulher, e não mais como o grande objetivo de sua vida, era intensificada a

9 A série A mulher na Literatura que organizou e publicou os três volumes com trabalhos apresentados
nos três Encontros Nacionais da ANPOLL ocorridos em 1987, 1988 e 1989, por exemplo, traz um
importante panorama a respeito destes trabalhos de análise crítica feminista.
10
Ver mais em “Relação entre os Relacionamentos Tóxicos e o Ciúme Patológico” (SANTOS, 2019).
164
partir da entrada de um grande número de mulheres no mercado de trabalho.
Obviamente, esta perspectiva exclui mulheres de camadas empobrecidas da
população que há muito ocupavam postos no mercado formal ou informal de trabalho.
No entanto, quando se trata das trocas simbólicas entre a percepção da realidade e a
representação de um ideal de personagem na literatura, se faz necessário
compreender certa distância temporal entre esse simbólico e a percepção do real.
A observação desses aspectos da transformação social e da cultural brasileira
nos possibilita traçar um diálogo entre pontos da crítica cultural sobre o amor feita por
bell hooks (2018, 2020) e a crítica deste tema, no cenário nacional, feita pela
professora e ativista pelos direitos humanos de negros e mulheres, Beatriz
Nascimento. No artigo “A mulher negra e o amor” (2019), Nascimento discorre sobre
as implicações econômicas e sociais que as relações amorosas têm na vida das
mulheres negras. Segundo ela, caberia à mulher negra

[...] a desmistificação do conceito de amor, transformando este em


dinamizador cultural e social (com o envolvimento na política, por
exemplo), buscando mais a paridade entre os sexos do que a
“igualdade iluminista”. Ao rejeitar a fantasia da submissão amorosa,
pode surgir uma mulher preta participante, que não reproduz o
comportamento masculino autoritário[...](NASCIMENTO, 2019, p.
267–8).

Assim, o amor, segundo Beatriz Nascimento, não seria algo que restringiria a
mulher negra ao lar, à vida doméstica e à dedicação exclusiva à vida afetiva. Pelo
contrário, o amor dinamizaria sua vida, dando abertura ao engajamento com diversas
possibilidades de interesses. E, considerando estes pontos, parece possível
extrapolar esta perspectiva no sentido de aplicá-la a personagens negras e não
negras.
Se considerarmos possível a troca entre cultura e sociedade na construção de
imaginários, podemos observar que, se por um lado ainda há, em nossa literatura,
ecos do modelo de amor apregoado pelo Romantismo, por outro lado, vemos surgir,
nas últimas décadas, projetos literários comprometidos com novas representações
literárias das relações amorosas, sobretudo feitos por escritoras conscientes de seu
papel na literatura e cujos projetos literários são comprometidos com novos modos de
representar personagens femininas e o amor.

165
Por isso, ao pensarmos na emergência de obras com histórias de amor entre
personagens que representem, de fato, nossa sociedade em sua diversidade humana,
é preciso levar em conta - a partir das três partes que formam o sistema literário para
Antonio Candido (conjunto de produtores, produto e conjunto de leitores
especializados ou não) (2000, p.23) - uma visão que pode ser atualizada para: quem
escreve a obra literária, quem forma o público leitor e quem elabora as críticas
(mercadológicas ou não)11, em que direção devemos seguir, sem desconsiderar os
esforços já empreendidos nesse diálogo entre teoria, literatura e sociedade.
Fomentar a emergência de personagens e histórias de amor mais diversas, não
é um fenômeno que se basta na mera inserção de personagens minorizadas em obras
literárias. Essa questão vai além da substituição de gênero e orientação sexual das
personagens dentro de enredos convencionais, de histórias de amor pautadas em
sofrimento. Para começar a mudar uma tradição de dor na literatura nacional, faz-se
necessário, entre outros aspetos, a formulação de outros universos ficcionais, com
personagens, espaços e enredos que, devido às lógicas patriarcais, misóginas,
racistas e classistas, ainda são excluídos de nossa sociedade e de nossas artes.
Alguns exemplos de textos literários nos quais o amor seja vivenciado por
personagens femininas de forma mais leve e nos quais não se repitam as fórmulas
pautadas em dominação ou exclusão social, conflitos familiares e violência, têm
surgido nos últimos anos. Muitos enredos presentes nestas obras dialogam com as
reivindicações da crítica literária feminista dos anos 1970, atualizando-as com
questões vividas por personagens que habitam as primeiras décadas do século XXI.
Podemos mencionar, a título de exemplo, o livro Amora, de Natalia Borges
Polesso (2016). Vencedor do Prêmio Jabuti de 2016, Amora tem sido considerado
pela crítica como uma reivindicação que desterritorializa “o amor de uma concepção
masculina que atravessa os séculos sob a égide da universalidade ocidental” ou ainda
como “uma certa rebeldia contra um sentimentalismo explorado pela cultura masculina
ao representar relacionamentos envolvendo mulheres” (BRITTO, 2022, p. 249).
Em Amora, Natalia Borges Polesso traz uma diversidade de personagens
femininas que amam outras mulheres. Essa multiplicidade expande as concepções
da crítica a respeito de personagens lésbicas e/ou bissexuais e suas vivências
afetivas. Cabe salientar que a autora também atua como pesquisadora e tradutora.
Essa relação íntima com a literatura – ao mesmo tempo exercendo o papel de quem

11 Sobretudo se considerarmos o papel de divulgação de obras promovido tanto no meio acadêmico


pelas críticas e resenhas, como espaço de divulgação institucional, como em âmbito mais informal e
talvez, mais popular, por meio de booktubers e outros perfis em redes sociais que promovem vídeos
com resenhas e comentários sobre livros (VIZIBELI, 2016).
166
escreve e de quem pesquisa- parece propiciar uma maior consciência sobre seu
projeto literário. A própria escritora afirma, no artigo “Geografias lésbicas: literatura e
gênero”, que:

Amora foi idealizado no interior de uma escolha que é política, porque


se faz fundamental para mim como autora e leitora e que cumpre a
função de expor representações mais plurais. A escolha também se
faz estética, pela mesma motivação: revisitar estereótipos para
repensar o estar-no-mundo dessas personagens (POLESSO, 2018, p.
5).

Por isso, é importante afirmar que, na mesma medida em que o projeto literário
se faz político, no sentido de seguir o ideal social em que a autora se pauta, ele
também se realiza no plano estético, visto que se trata de “um trabalho cuidadoso de
elaboração escrita, de cuidado com as perspectivas, de criação de narradores e
pontos de vista, de variedade de personagens” (POLESSO, 2022, p. 13). Esse
cuidado é um dos pontos que tem levado Amora a ser considerado pela crítica, desde
as primeiras resenhas, como uma obra que atinge o “ponto mais alto da realização
estética: a transcendência do tema, em função da qualidade do projeto estético”
(AZEVEDO, 2022, p. 245).
É possível vislumbrar, a partir dos contos de Amora, algumas soluções
possíveis que, social e culturalmente, foram desenvolvidas ao longo do tempo para as
questões sobre o amor, questões estas que vêm sendo pensadas pelos movimentos
feministas e pela crítica literária feminista há décadas.
Nos contos sobre o amor presentes em Amora, vemos mulheres tão diversas
quanto complexas. Podemos observar a sutileza de outras formas de falar de amor e
de relacionamentos. Os relacionamentos representados no livro de Polesso contêm
desencontros e descobertas que, ao mesmo tempo, podem ser vividos sem a ideia de
restringir-se a único interesse da vida de alguém, sem a necessidade de dominação
do outro, sem hierarquias e principalmente, sob uma ótica outra que não meça a
intensidade das relações pelo sofrimento infligido ou sentido.
Podemos encontrar espaços de alegria, de autonomia e de personagens em
relacionamentos livres de hierarquia em muitos contos de Amora. Aqui decidimos
destacar três (“Não desmaia, Eduarda”, “Minha prima está na cidade” e “As tias”) que
dialogam de modo mais explícito com as análises sobre o amor que têm sido feitas
pela crítica literária feminista e que foram discutidos anteriormente neste artigo.

167
O conto “Não desmaia, Eduarda” narra o desencontro amoroso a partir do
rompimento de Laura e Eduarda, estudantes de Direito. O fim de um relacionamento,
como afirma a protagonista, é “uma daquelas coisas que acontecem”, assim como o
ciúme:

A Laura passando a mão no braço do Mauro e ele rindo. [...] Desci as


escadas xingando a Laura mentalmente, porque ela era biscate
mesmo. Tinha terminado comigo na semana passada e agora já
estava de conversinha com o Mauro, professor de direito penal
(POLESSO, 2016, p. 23).

O fato de ser um conto sobre um relacionamento que terminou e sobre o ciúme


que ficou na protagonista, não o exclui da categoria dos finais felizes12. É importante
mencionar que mesmo nos contos em que o amor não é correspondido como a
protagonista parece desejar, não vemos violência entre as personagens. Pelo
contrário, há a consciência da liberdade do desejo do indivíduo e também de outros
laços de afetos que não substituem a relação amorosa, mas conferem um
pertencimento dessa personagem feminina a outras esferas da existência.
Eduarda se sente pertencente ao mundo do trabalho, à universidade, à sua
família, com seus prós e contras de cada grupo. A família da protagonista, por
exemplo, em algum nível retrata o que Adrienne Rich chamou de continuum lésbico.
Ainda que a avó, a mãe e as tias não se relacionem sexualmente com mulheres (ou
não digam que se relacionam, como é o caso de Eduarda), o amor, o cuidado e o
convívio são direcionados para outras mulheres.

De repente, você percebe que não há homens na mesa, não há


homens na casa, não há homens num raio de cinco quilômetros. [...]
Minha mãe tem três irmãs, a Marga, a Rose e a Deise, que é adotada
e é mais nova que eu. Quando meu avô faleceu, minha vó adotou a
tia Deise de um casal que não podia cuidar da filha. Minha vó nunca

12 Movimentos de pequenas editoras e autores, por vezes, tentam valorizar a lesbianidade na literatura
por meio de obras com finais felizes. Uma dessas iniciativas, as Edições GLS, bastante atuante no
início dos anos 2000, tinha como propósito explícito, na página de divulgação da editora, o recorte
preferencial para finais felizes. Esse incentivo às imagens positivas das personagens promovem a ideia
de orgulho, mas ao mesmo tempo, causam certa restrição de enredo. Fonte: Grupo editorial SUMMUS.
Disponível em: Disponível em: https://www.grupos ummus.com.br/edgls/edgls_nossa.php . Acesso em:
09 mai. 2023.
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fez luto, parece que finge até hoje que nada aconteceu. Nenhuma das
minhas tias é casada. [...] Meu vô e meu pai morreram no mesmo
acidente de carro. Minha mãe também nunca fala nada. Eu nunca
perguntei nada. E assim somos, sem muitas perguntas. (POLESSO,
2016, p. 29)

As personagens deste trecho do conto reafirmam uma linhagem de mulheres


que nega o estereótipo de dependência de figuras masculinas. Elas bebem,
trabalham, respeitam, convivem com personagens femininas. Desde há muito, na
crítica literária feminista, questiona-se o autocentramento do amor na vida de
personagens, principalmente do amor devotado às figuras masculinas. É como se
toda dedicação da vida da personagem devesse estar voltada para homens.
Essa discussão é amplificada no livro Heterossexualidade compulsória e outros
ensaios, de Adrienne Rich, a partir da sistematização de pontos a partir dos quais a
cultura masculina pretenderia dominar a existência feminina. Entre eles estão a
coerção da própria sexualidade a partir da criação de estereótipos de lésbicas como
fetiche, convenientes à lógica heterossexual, à destruição e ao apagamento de
registros da existência lésbica (real ou ficcional), “a idealização do amor heterossexual
na arte, literatura, meios de comunicação, publicidade”, “a restrição da realização
pessoal das mulheres ao casamento e à maternidade”, entre outros (RICH, 2019, p.
40–47).
Desse modo, ainda que a protagonista do conto esteja em crise em seu
relacionamento amoroso, por não ter sua existência direcionada apenas para este
ponto, há outras possibilidades de socialização, de pertencimento, de riso. São as
outras mulheres com quem Eduarda convive que, em diálogo, chamam sua atenção
para a distração e para seu silêncio, uma vez que, segundo sua avó: “seria até bom
se falasse um pouco, não ficava com tudo preso aí dentro, essas ideias aí tudo
misturada, coisa que a gente vê e coisa que a gente cria, não dá” (POLESSO, 2016,
p. 31).
Esse diálogo é uma espécie de fagulha que ilumina a confusão de sentimentos
da protagonista. Mesmo sem grandes confissões, apesar de ter a consciência de que
apenas ela é a responsável por lidar com seu ciúme em relação à Laura, Eduarda é
conduzida a ver os problemas amorosos por outras perspectivas possíveis, e isso
apenas se dá por sua abertura, escuta e reflexão, além de sua convivência com outros
núcleos de personagens, não apenas ao redor de sua ex-namorada.

169
No segundo conto selecionado, “Minha Prima está na cidade”, temos uma
perspectiva de amor diversa da que vimos no primeiro exemplo. Vemos aqui um jovem
casal consolidado, com um relacionamento estável e as demandas que uma vida de
casal implica em muitos relacionamentos, inclusive em um casal do meio “lésbico artsy
pseudocult, pseudointelectual” (POLESSO, 2016, p. 77). Bruna e sua esposa,
protagonista-narradora não nomeada, moram juntas e o conto nos revela como se deu
a compreensão da protagonista de que elas formavam uma família, com suas
peculiaridades individuais e acordos conjuntos. É justamente a cumplicidade entre
ambas que dá o mote para o conflito do conto. Bruna trabalha como designer e, para
a protagonista narradora,

no meio em que ela circula é mais fácil aceitar. Eu vou jantar com os
amigos da Bruna, amigos do trabalho. Eles sabem que a gente é um
casal, porque a Bruna não tem problemas com isso. Eu tenho. [...] Por
exemplo, as minhas colegas do trabalho não precisam saber, nem a
minha família (POLESSO, 2016, p. 75).

Porém, numa ocasião em que Bruna estava viajando, a protagonista convida


as colegas de trabalho para um jantar em sua casa. Ao chegar em casa, o grupo se
depara com Bruna, que voltara da viagem antes do previsto. A situação de apresentar
a esposa como tal e assumir-se lésbica para as colegas de trabalho - o que poderia
(ou não) alterar sua convivência no âmbito profissional - ou apresentar Bruna de outro
modo, criando uma mentira para evitar possíveis questionamentos, é um problema
para a protagonista, que opta pela segunda alternativa. Diante disso, Bruna
compreende com cumplicidade a dificuldade genuína de sua esposa de revelar-se
lésbica, ainda que acredite que “a verdade teria sido indolor” (POLESSO, 2016).
Podemos ver neste conto pelo menos duas questões diretamente relacionadas
à representação literária da vivência afetiva de casais homossexuais. Em primeiro
plano, a percepção do casal como família. Em uma sociedade em que se faz
necessária a tramitação de um projeto de lei no qual o Estado reconheça formalmente
e garanta todos os direitos a todas as formas de família13, não soa inverossímil o fato
da narradora ter dificuldade de compreender como família a união que ela vive.

13No Projeto de Lei do Estatuto da Família do século XXI, 3369/15, ainda em tramitação, de autoria do
então deputado Orlando Silva (PCdoB – SP), família seria “a união entre duas ou mais pessoas que se
baseie no amor, na socioafetividade, independentemente de consanguinidade, gênero, orientação
sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou pessoas que assim sejam consideradas”.
170
O apagamento histórico de relacionamentos entre mulheres e a propaganda de
família composta por núcleos heterossexuais cria em nossa cultura padrões rígidos
de percepção, mesmo para as personagens envolvidas em vivências homoafetivas.
Por isso, destaca-se a delicadeza do conto na abordagem do que pode ser
compreendido como família, com seus pequenos hábitos e costumes, reitera
demandas da crítica feminista no sentido de que, não basta apenas mudar as
personagens nos relacionamentos presentes na literatura,

O ato essencial para a mulher escritora consiste em encontrar uma


nova linguagem e novas imagens que possam expressar
autenticamente uma nova visão de mundo que começa a se formar
(FUNCK, 1990, p. 17).

Assim, contrariando o estereótipo de representar as crises dentro de um casal


de personagens em que uma se sente mais confortável com sua sexualidade e a outra
ainda tenta se resolver consigo e com o mundo, antes de se colocar publicamente
como lésbica, o conto traz um espaço de compreensão e apoio de uma em relação
ao tempo da outra. Essa mudança rompe uma tradição de casais infelizes com a
pressão do mundo exterior sobre o posicionamento público do indivíduo e do
relacionamento homoafetivo.
Outro ponto importante do conto é a forma de lidar com os conflitos que o casal
de personagens foi descobrindo, aos poucos, dentro da relação. Ao invés de vermos
cenas de ciúme, dominação ou descontroles emocionais, temos aqui a representação
de um casal em que cada uma tenta, a seu modo, e as duas tentam juntas, organizar
suas emoções de forma que nenhuma venha a ferir a outra.

[...] Eu amo a Bruna e nunca quis magoá-la e nunca vou querer. Temos
essa combinação de evitar dizer coisas das quais possivelmente nos
arrependeremos mais tarde, e nunca, nunca ameaçamos uma a outra

Este projeto responde ao Estatuto da Família que prevê a entidade familiar como “a união estável entre
o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família”. Fonte: https://www.camara.leg.br/noticias/538382-projeto-
reconhece-como-familia-uniao-entre-duas-ou-mais-pessoas-independentemente-de-genero/ e
https://www.camara.leg.br/noticias/538382-projeto-reconhece-como-familia-uniao-entre-duas-ou-mais-
pessoas-independentemente-de-genero/. Acesso em 17 maio 2023.
171
com um término de relação a menos que isso seja mesmo uma
possibilidade, aliás, mais que isso, que seja uma vontade legítima para
além daquele momento (POLESSO, 2016, p. 76).

Um trecho como o citado acima pode, eventualmente, parecer anticlimático, se


comparado aos arroubos apaixonados dos amores ditos como incontroláveis,
presentes em nossa literatura, no entanto, é importante observar como a literatura em
seu potencial criativo reflete e propõe reflexões a respeito de modos possíveis de se
relacionar. Quando o amor não é a única razão da existência de uma personagem,
podemos ver inclusive que o sentimentalismo, no caso do conto “Minha prima está na
cidade”, é substituído por ponderação, pensamento e respeito consigo e com a outra.
E, por fim, nesse breve conjunto de exemplos, passamos por um namoro
desfeito, um casamento recente e chegamos ao terceiro conto selecionado: “As Tias”.
Neste conto, temos um casamento longo, com personagens que vivem sua
lesbianidade há décadas e são consideradas, ao menos pela narradora, como “o
melhor e mais bem-sucedido casamento da família” (POLESSO, 2016, p. 192).
No conto “As Tias”, Leci e Alvina formam um casal com sessenta anos de
convivência. As duas se conheceram ainda adolescentes no convento e “desde lá,
não se desgrudavam” (POLESSO, 2016, p. 192). É assim que o conto é iniciado pela
narradora que é sobrinha de Tia Alvina. A descrição da vida das tias segue uma breve
ordem cronológica que é sublinhada pelos conflitos familiares. As duas morando
juntas, a reprovação de parte da família, a presença de alguns familiares menos
preconceituosos nas visitas à casa delas. Entretanto, o conflito familiar não é o foco
principal, ainda que faça parte do conflito do conto.
A vivência afetuosa do modesto casal de senhoras, que tinha por única
extravagância suas viagens internacionais, é posta em destaque, bem como o
respeito na convivência de ambas. Até o ponto de virada: o AVC de tia Alvina:

A Leci quase morreu de tristeza. Toda a parentada lá se oferecendo


para ficar no hospital e pernoitar. É familiar? Dizia a moça da recepção
e todos assentiam: primas, irmãs, sobrinhas. [...] Mas a Leci não era
parente e toda vez que chegava para ficar, a moça da recepção lhe
dizia que já havia parente no quarto e que para pernoites parentes
tinham a preferência (POLESSO, 2016, p. 190).

172
É a partir deste incidente que a sobrinha narradora se aproxima das tias. Com
uma convivência mais frequente, ela começa a perceber “uma mão que procurava a
da outra, enquanto assistiam televisão, abraços, e, uma vez, peguei um beijo furtivo
de bom dia na cozinha” (2016, p. 193). Ainda assim, o casal mantém a discrição típica
de quem conheceu uma vivência lésbica anterior a muitas conquistas sociais que os
movimentos LGBTQIA+ e os feminismos têm hoje.
Aqui, o conto poderia manter o foco nas dificuldades que Leci tinha em ser
reconhecida como esposa de Alvina perante a sociedade e perante a família dela, ou
ainda, o conto poderia evidenciar a tristeza diante do adoecimento e da velhice do
casal, talvez por alguma perda de autonomia de Alvina, após o AVC, mas, nesse
sentido, de forma semelhante ao que afirma Lucia Helena, no texto Perfis de mulher
na ficção brasileira dos anos 80, o conto deixa de lado “a lamúria sobre a condição
desvalida da mulher na sociedade dos homens”(HELENA, 1990, p. 92) presente em
enredos no início dos anos de 1970 nos quais as personagens se apresentavam
estagnadas diante da misoginia e nos traz um desfecho mais condizente com o tom
geral do livro.
Valendo-se da confiança que agora tinham na sobrinha, as tias ligaram pedindo
para que a narradora dormisse na casa delas, pois Leci estava muito doente, porém

Quando cheguei as duas dançavam na sala. [...] Eu perguntei o que


era e logo me disseram sem embromar: queremos casar. Eu achei
aquilo tão bonito e inusitado que chorei um pouco. A Leci continuou a
me explicar. Tu sabes, tudo que temos é nosso, é junto, mas nada pela
lei funciona assim, se algo acontece com a Alvina, deus que me
perdoe, eu fico com uma mão na frente e outra atrás [...] nossa
pergunta, filha, é se tu pode ser nossa testemunha. Não é bem
casamento, é uma união estável (POLESSO, 2016, p. 191).

Esta virada na narrativa demonstra, no campo ficcional, o resultado de muitas


lutas de movimentos sociais para que pessoas homossexuais tivessem seus direitos
garantidos. Com a legitimação da união estável de Leci e Alvina, ambas estavam
protegidas por lei da espoliação de seus bens, caso alguma delas falecesse. Não
obstante, ambas poderiam legitimamente ser vistas como esposa uma da outra. Por
mais que muita violência venha justamente deste Estado burocrático legislador, o que
o conto “As tias” nos traz é uma história de amor, com final feliz e lua de mel, que
rompe com padrões etaristas, de gênero, de orientação sexual.
173
Assim, ao longo deste artigo, podemos observar, a partir destes três contos
com personagens e histórias de amor diversas, que um projeto literário consciente,
como é o caso do livro Amora, pode trazer representações de amor bastante diversas
do que a nossa tradição literária nos trouxe por muito tempo. A presença dessas
personagens em novas representações literárias, expande as possibilidades nos três
pontos do sistema literário. Para quem escreve, no sentido de observar possibilidades
outras e projetar-se para ainda mais além, para quem lê e pode refletir a respeito da
diversidade de personagens, de amores e modos de se relacionar presentes no livro,
e para a crítica literária, que pode ver, diante de si, a ruptura de padrões de sofrimento
e dor diante de diversas histórias de amor possíveis para personagens femininas. Ou
ainda, para finalizar com as palavras da autora de Amora:

Isso é inscrever, criar, reivindicar novos espaços estéticos, críticos, de


procura, de existências. Isso é renovar o repertório tão desgastado de
metáforas, isso é deslocar a crítica, muitas vezes preguiçosa, para um
lugar de desconforto, um lugar que obriga a outros olhares. Sobretudo,
essas geografias dizem respeito à possibilidade de encontrar,
ressignificar, reivindicar, criar e recriar espaços onde o trânsito das
mulheres lésbicas, cis ou trans, bissexuais e/ou mulheres queer seja
possível (POLESSO, 2020, p. 9).

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Recebido em: 13/06/2023 Aceito em: 01/08/2023

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