ARTIGO CRIAÇÃO E CRÍTICA
ARTIGO CRIAÇÃO E CRÍTICA
ESTÉTICO E POLÍTICO
Resumo: O presente artigo busca evidenciar como o amor, por ser um dos temas mais
recorrentes na literatura brasileira, já foi lido de diversos modos em nossa literatura. Uma das
perspectivas que causou maiores mudanças foi a crítica literária feminista, que desvelou
situações em que o que era nomeado como amor, em determinadas narrativas, poderia ser
lido como a diminuição de uma personagem em detrimento do crescimento de outra no interior
daquele universo ficcional. Essa mudança de perspectiva que ocorre em relação ao amor
afeta e é afetada pelos movimentos feministas de diversas vertentes, e também pelas três
pontas que formam o sistema literário: quem escreve, quem lê e quem elabora as análises
críticas. Assim, nessa relação de retroalimentação entre escritoras, leitoras e críticas, vemos
que o amor pode, inclusive, ser ressignificado em projetos literários que estejam de algum
modo relacionados com a representação de uma sociedade mais diversa e plural, rompendo
com ideias que restringiam a presença feminina na literatura ao sentimentalismo simplificado
ou mesmo ao amor como único interesse da vida das personagens.
Palavras-chave: Crítica literária feminista; amor; literatura brasileira.
Abstract: This article aims to show how love, being one of the most frequent themes in
Brazilian literature, has been read in many ways. One of the perspectives that caused the
greatest amount of change was feminist literary criticism, which revealed situations where what
was named as love, in many cases, could be understood as the weakening of one character
at the expense of the growth of another within that fictional universe. This change in
perspective that occurs in relation to love affects and is affected by feminist movements of
157
podemos inferir que, esteja a pessoa em qualquer ponta deste sistema (autora, leitora
ou crítica), o enfoque que alguns fatos do texto receberão, consciente ou
inconscientemente, será tocado por esses elementos culturais. Assim, a valorização
do sofrimento poderia explicar, ainda que parcialmente, porque amores representados
na literatura com finais infelizes tendem a ser considerados mais intensos e
verdadeiros do que representações de relacionamentos entre personagens com
algum nível de ponderação em relação ao amor.
Outro fator a ser considerado é que mudanças sociais impactam os modos de
representação literária dos relacionamentos. O amor não é representado como algo
estático e imutável ao longo dos séculos. O que se compreende como amor, presente
na enunciação do discurso amoroso de uma personagem, ou ainda, nas ações feitas
em nome deste afeto, pode ser o avesso desse sentimento, sobretudo se observado
em contextos históricos diferentes, ou mesmo, se analisado por outras vertentes de
crítica literária.
Por vezes, o que é chamado de amor, se observado por outras perspectivas,
pode revelar traços de misoginia, controle ou dominação. Não raro, manifestações de
ciúme, insegurança e violência foram representadas na literatura sob o nome de amor.
Esse tipo de percepção molda o imaginário cultural de um povo e pode embasar
padrões de comportamento dentro e fora da ficção.
Além disso, o senso comum, sustentado por algumas percepções de amor
como algo indefinível ou incontrolável, parece viabilizar comportamentos de
dominação ou subjugação de uma personagem por outra. Assim, uma relação que se
inicia sem hierarquias, aos poucos, torna-se um espaço em que uma personagem
assume o papel de dominante e outra de dominada, dentro do jogo amoroso.
Um dos exemplos pioneiros desse fenômeno pode ser encontrado em Iracema,
de José de Alencar (1865). A personagem homônima do romance é descrita como
uma pessoa com autonomia, coragem e destreza, porém, a partir do encontro com
Martim e do amor que o narrador afirma que ambos sentiram, a protagonista é
reduzida de “filha das florestas” a “colibri”. Esta, entre outras metáforas, sugere sua
diminuição, ao passo que seu par amoroso se engrandece ao longo da narrativa
(DUARTE, 1990b, p. 194).
A leitura de obras (canônicas ou não) a partir de perspectivas críticas centradas
no papel que o feminino desempenha é um dos motores da crítica literária feminista.
A emergência deste modelo de análise nas universidades brasileiras, a partir dos anos
158
de 19702, fomentou o surgimento de novos modos de compreender a literatura em
relação às autorias, à representação de personagens e às abordagens de temas
comuns. Esta ampliação de possibilidades de análises críticas nos fornece
ferramentas importantes para questionar estereótipos presentes na literatura, uma vez
que
2 As décadas de 1960 e 1970 foram períodos importantes para emergência da Crítica Literária
Feminista nas universidades brasileiras devido à maior circulação nacional e internacional do
pensamento feminista de variadas vertentes, inclusive com a volta de mulheres que, exiladas pela
ditadura militar, tiveram contato com teorias que ainda não haviam chegado ao Brasil. “A ênfase do
enfoque sobre a mulher nas diversas áreas de estudo é resultado direto do movimento feminista das
décadas de 60 e 70, e pretendeu/pretende, principalmente, destruir os mitos da inferioridade natural,
resgatar a história das mulheres, reivindicar a condição de sujeito na investigação da própria história,
além de rever, criticamente, o que os homens até então tinha escrito a respeito” (BLAY, 2017, p. 65–
79; DUARTE, 1990a, p. 70).
3 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística.
159
mulher como os romances sentimentais e os de confissão psicológica,
tal a sensibilidade feminina (DUARTE, 1990a, p. 75).
Como os árbitros das convenções são os homens, pois foram eles que
estabeleceram uma ordem de valores na vida, e já que é na vida que
em grande parte a ficção se baseia, também aqui, na ficção, em
extensa medida, esses valores prevalecem (WOOLF, 2019, p. 15).
ou ainda em:
4Muitos ensaios de Virgínia Woolf foram traduzidos ao português e organizados em coletâneas como
Mulheres e Ficção (2019), reunião de textos publicados na imprensa inglesa na década de 1920, e Um
Teto todo seu (2014), reunião de ensaios publicada originalmente em 1929.
160
Considerado, portanto, como o grande motivo da vida de personagens
femininas, ou ainda, como campo de maior habilidade para escritoras, curiosamente,
o amor é um assunto que, por muito tempo, predominou o discurso masculino (seja
ele enunciado por autores, personagens ou teóricos de diversas áreas). Essa
aparente contradição5 entre serem os homens os que mais falam sobre amor, ainda
que atribuam os sentimentos à “essência feminina”, pode ser explicada por diversos
fatores: desde a nomeação, como amor, de uma série de comportamentos de
dominação, violência, preconceito de gênero, raça, classe e orientação sexual,
passando pelas condições materiais de produção literária negadas e/ou dificultadas
às mulheres, em muitos contextos históricos e sociais, até uma certa capacidade
pedagógica e formativa que algumas histórias de amor têm, no sentido de ditar
comportamentos para, com isso, manter algumas hierarquias de gênero.
Com a predominância dos discursos masculinos (de autores e/ou personagens)
sobre o que e como seria o amor, estabeleceu-se certo padrão no qual as
personagens femininas possuíam pouco espaço senão o da obediência à lógica
patriarcal, revestida sob o nome de amor. Aquelas que não se submetiam e/ou
ousavam alguma transgressão a essa ordem muitas vezes foram “punidas” ao longo
da narrativa com a dor, a culpa, o sofrimento, a infâmia, o adoecimento e a morte.
Se por um lado podemos inferir que foi a partir da poesia de amor cortês que o
discurso sobre o amor na literatura, feito por autoras ou personagens femininas,
passou a ser “apropriado, imitado e deturpado pelo saber do homem, servindo-lhe
para consolidar através da tradição escrita uma certa visão estratificada da mulher”
(CARVALHO, 1990, p. 35), por outro, sabemos que foi ao longo do Romantismo que
algumas divisões de papéis de gênero e certa lógica hierárquica, que favorecia o
masculino, intensificaram-se.
No livro O amor romântico e outros temas, Dante Moreira Leite (1979) explica,
por meio de análises da obra Lucíola, de José de Alencar(1862), como o amor
romântico traça uma divisão rígida de papéis de gênero, na qual
5 Esta contradição não parece restrita ao universo literário nem tampouco à realidade brasileira; ela é
alvo de discussões no livro Tudo Sobre o amor: novas perspectivas (2020), da crítica de cultura bell
hooks. Nele a escritora estadunidense afirma que “Se fosse verdadeira a ideia de que homens e
mulheres são completamente opostos, habitando universos emocionais totalmente diferentes, os
homens jamais teriam se tornado autoridades máximas no amor, levando em conta os estereótipos de
gênero que atribuem às mulheres o papel dos sentimentos e da emotividade e aos homens, o da razão
e da não emoção “homens de verdade” teriam aversão a qualquer conversa a respeito do amor.”
(hooks, 2020, p. 40).
161
A posição do homem no esquema afetivo do romantismo é peculiar e
apresenta algumas das contradições inevitáveis na vida social do
período. Paulo, o herói do romance de Alencar, parece inteiramente
isento de qualquer culpa, não respondendo pelos pecados de que
participa. O duplo padrão de moralidade talvez nunca tenha sido tão
nítido. O que para uma mulher constitui um pecado inominável, para o
homem seria uma experiência aceita e valorizada (LEITE, 1979, p. 58).
6 No romance Um copo vazio, de Natalia Timerman (2021), por exemplo, a protagonista jovem,
estabilizada financeiramente, com profissão, círculo de amigos, família, etc, vê-se obcecada pelo
homem que a abandonou. Neste romance, o personagem masculino desaparece sem explicação e
sobre a protagonista paira o sofrimento, a culpa e vários sentimentos de inadequação que a colocam
num espaço de espera da validação masculina. A ele coube desaparecer, sem aparente julgamento ou
culpa por isso, a ela cabe a espera, a solidão, a vulnerabilidade. A hierarquia entre quem abandona e
quem é abandonado se constrói aqui pela repetição do padrão de mulheres postas à espera incerta da
volta do personagem masculino que amam. Além disso, o padrão dos amores infelizes é retomado,
como vemos no trecho: “Já passou o que é possível passar, porque tem coisas, entendi ao longo do
tempo, que não passam nunca. Os restos. O amor envernizado pelo nunca” (TIMERMAN, 2021, p. 85).
162
Quando a crítica de cultura estadunidense bell hooks discute o amor na cultura
norte-americana, de uma maneira abrangente, para além do campo literário, um dos
pontos mais contundentes é a relação dos movimentos feministas e a experiência da
vida afetiva. Segundo ela, no livro O feminismo é para todo mundo: políticas
arrebatadoras (2018), devido a muitos fatores culturais e pela alta prevalência de
relações pautadas por dominação e subordinação, o amor era encarado por muitos
grupos feministas dos anos de 1970 e 1980 como um produto apresentado às
mulheres pela lógica patriarcal, e, portanto, algo negativo (hooks, 2018, p. 145).
Quando a autora menciona a lógica patriarcal e não só os relacionamentos
heterossexuais, é porque aquela estrutura inclui relações entre mulheres, visto que
algumas delas também reproduziam a exploração, as hierarquias e a dominação
patriarcal com suas parceiras7.
Porém, a visão reducionista do amor como algo restrito à lógica patriarcal
trouxe mais desconforto, do que, de fato, sugeriu caminhos para vivências mais
saudáveis no campo afetivo. Nesse ponto, importantes contribuições foram dadas aos
movimentos feministas por teóricas e críticas de cultura negras e/ou lésbicas. Ao
detalhar os elementos nocivos do patriarcado e demonstrar outras maneiras de
experimentar uma vivência amorosa, as formulações propostas por teóricas como
Adrienne Rich, em Heterossexualidade Compulsória & outros Ensaios (2019), e por
Audre Lorde, em “A poesia não é um luxo” (2019) e “Usos do erótico: o erótico como
poder” (2019)8 demonstraram como o amor pode ser, ao invés de um aprisionamento,
uma potência.
O amor visto como potência não é exclusividade do pensamento feminista.
Outros autores já discutiram o amor por esta perspectiva que o distancia do
sofrimento, da dor e da culpa, e que o aproxima do crescimento humano. Em Ética,
de Espinosa, livro publicado postumamente em 1677, temos uma abrangente
discussão a respeito dos afetos, entre os quais está o amor.
Afeto, para Espinosa, seria algo pelo que “a potência do próprio corpo seria
aumentada ou diminuída” (ESPINOSA, 2021, p. 237). Desse modo, o afeto é
considerado algo sobre o qual podemos agir; se do contrário, nosso agir é limitado, se
sofremos o afeto, para Espinosa, isso limitaria nossa potência de vida. Nessa
perspectiva, o amor, por estar relacionado à alegria, seria algo vinculado ao
crescimento da potência do ser humano.
7 Um interessante relato sobre relacionamento abusivo entre personagens femininas pode ser visto no
livro de Na casa dos sonhos, de Carmem Maria Machado (2021).
8 Ensaios e comunicações reunidos em tradução ao português no livro Irmã Outsider: ensaios e
9 A série A mulher na Literatura que organizou e publicou os três volumes com trabalhos apresentados
nos três Encontros Nacionais da ANPOLL ocorridos em 1987, 1988 e 1989, por exemplo, traz um
importante panorama a respeito destes trabalhos de análise crítica feminista.
10
Ver mais em “Relação entre os Relacionamentos Tóxicos e o Ciúme Patológico” (SANTOS, 2019).
164
partir da entrada de um grande número de mulheres no mercado de trabalho.
Obviamente, esta perspectiva exclui mulheres de camadas empobrecidas da
população que há muito ocupavam postos no mercado formal ou informal de trabalho.
No entanto, quando se trata das trocas simbólicas entre a percepção da realidade e a
representação de um ideal de personagem na literatura, se faz necessário
compreender certa distância temporal entre esse simbólico e a percepção do real.
A observação desses aspectos da transformação social e da cultural brasileira
nos possibilita traçar um diálogo entre pontos da crítica cultural sobre o amor feita por
bell hooks (2018, 2020) e a crítica deste tema, no cenário nacional, feita pela
professora e ativista pelos direitos humanos de negros e mulheres, Beatriz
Nascimento. No artigo “A mulher negra e o amor” (2019), Nascimento discorre sobre
as implicações econômicas e sociais que as relações amorosas têm na vida das
mulheres negras. Segundo ela, caberia à mulher negra
Assim, o amor, segundo Beatriz Nascimento, não seria algo que restringiria a
mulher negra ao lar, à vida doméstica e à dedicação exclusiva à vida afetiva. Pelo
contrário, o amor dinamizaria sua vida, dando abertura ao engajamento com diversas
possibilidades de interesses. E, considerando estes pontos, parece possível
extrapolar esta perspectiva no sentido de aplicá-la a personagens negras e não
negras.
Se considerarmos possível a troca entre cultura e sociedade na construção de
imaginários, podemos observar que, se por um lado ainda há, em nossa literatura,
ecos do modelo de amor apregoado pelo Romantismo, por outro lado, vemos surgir,
nas últimas décadas, projetos literários comprometidos com novas representações
literárias das relações amorosas, sobretudo feitos por escritoras conscientes de seu
papel na literatura e cujos projetos literários são comprometidos com novos modos de
representar personagens femininas e o amor.
165
Por isso, ao pensarmos na emergência de obras com histórias de amor entre
personagens que representem, de fato, nossa sociedade em sua diversidade humana,
é preciso levar em conta - a partir das três partes que formam o sistema literário para
Antonio Candido (conjunto de produtores, produto e conjunto de leitores
especializados ou não) (2000, p.23) - uma visão que pode ser atualizada para: quem
escreve a obra literária, quem forma o público leitor e quem elabora as críticas
(mercadológicas ou não)11, em que direção devemos seguir, sem desconsiderar os
esforços já empreendidos nesse diálogo entre teoria, literatura e sociedade.
Fomentar a emergência de personagens e histórias de amor mais diversas, não
é um fenômeno que se basta na mera inserção de personagens minorizadas em obras
literárias. Essa questão vai além da substituição de gênero e orientação sexual das
personagens dentro de enredos convencionais, de histórias de amor pautadas em
sofrimento. Para começar a mudar uma tradição de dor na literatura nacional, faz-se
necessário, entre outros aspetos, a formulação de outros universos ficcionais, com
personagens, espaços e enredos que, devido às lógicas patriarcais, misóginas,
racistas e classistas, ainda são excluídos de nossa sociedade e de nossas artes.
Alguns exemplos de textos literários nos quais o amor seja vivenciado por
personagens femininas de forma mais leve e nos quais não se repitam as fórmulas
pautadas em dominação ou exclusão social, conflitos familiares e violência, têm
surgido nos últimos anos. Muitos enredos presentes nestas obras dialogam com as
reivindicações da crítica literária feminista dos anos 1970, atualizando-as com
questões vividas por personagens que habitam as primeiras décadas do século XXI.
Podemos mencionar, a título de exemplo, o livro Amora, de Natalia Borges
Polesso (2016). Vencedor do Prêmio Jabuti de 2016, Amora tem sido considerado
pela crítica como uma reivindicação que desterritorializa “o amor de uma concepção
masculina que atravessa os séculos sob a égide da universalidade ocidental” ou ainda
como “uma certa rebeldia contra um sentimentalismo explorado pela cultura masculina
ao representar relacionamentos envolvendo mulheres” (BRITTO, 2022, p. 249).
Em Amora, Natalia Borges Polesso traz uma diversidade de personagens
femininas que amam outras mulheres. Essa multiplicidade expande as concepções
da crítica a respeito de personagens lésbicas e/ou bissexuais e suas vivências
afetivas. Cabe salientar que a autora também atua como pesquisadora e tradutora.
Essa relação íntima com a literatura – ao mesmo tempo exercendo o papel de quem
Por isso, é importante afirmar que, na mesma medida em que o projeto literário
se faz político, no sentido de seguir o ideal social em que a autora se pauta, ele
também se realiza no plano estético, visto que se trata de “um trabalho cuidadoso de
elaboração escrita, de cuidado com as perspectivas, de criação de narradores e
pontos de vista, de variedade de personagens” (POLESSO, 2022, p. 13). Esse
cuidado é um dos pontos que tem levado Amora a ser considerado pela crítica, desde
as primeiras resenhas, como uma obra que atinge o “ponto mais alto da realização
estética: a transcendência do tema, em função da qualidade do projeto estético”
(AZEVEDO, 2022, p. 245).
É possível vislumbrar, a partir dos contos de Amora, algumas soluções
possíveis que, social e culturalmente, foram desenvolvidas ao longo do tempo para as
questões sobre o amor, questões estas que vêm sendo pensadas pelos movimentos
feministas e pela crítica literária feminista há décadas.
Nos contos sobre o amor presentes em Amora, vemos mulheres tão diversas
quanto complexas. Podemos observar a sutileza de outras formas de falar de amor e
de relacionamentos. Os relacionamentos representados no livro de Polesso contêm
desencontros e descobertas que, ao mesmo tempo, podem ser vividos sem a ideia de
restringir-se a único interesse da vida de alguém, sem a necessidade de dominação
do outro, sem hierarquias e principalmente, sob uma ótica outra que não meça a
intensidade das relações pelo sofrimento infligido ou sentido.
Podemos encontrar espaços de alegria, de autonomia e de personagens em
relacionamentos livres de hierarquia em muitos contos de Amora. Aqui decidimos
destacar três (“Não desmaia, Eduarda”, “Minha prima está na cidade” e “As tias”) que
dialogam de modo mais explícito com as análises sobre o amor que têm sido feitas
pela crítica literária feminista e que foram discutidos anteriormente neste artigo.
167
O conto “Não desmaia, Eduarda” narra o desencontro amoroso a partir do
rompimento de Laura e Eduarda, estudantes de Direito. O fim de um relacionamento,
como afirma a protagonista, é “uma daquelas coisas que acontecem”, assim como o
ciúme:
12 Movimentos de pequenas editoras e autores, por vezes, tentam valorizar a lesbianidade na literatura
por meio de obras com finais felizes. Uma dessas iniciativas, as Edições GLS, bastante atuante no
início dos anos 2000, tinha como propósito explícito, na página de divulgação da editora, o recorte
preferencial para finais felizes. Esse incentivo às imagens positivas das personagens promovem a ideia
de orgulho, mas ao mesmo tempo, causam certa restrição de enredo. Fonte: Grupo editorial SUMMUS.
Disponível em: Disponível em: https://www.grupos ummus.com.br/edgls/edgls_nossa.php . Acesso em:
09 mai. 2023.
168
fez luto, parece que finge até hoje que nada aconteceu. Nenhuma das
minhas tias é casada. [...] Meu vô e meu pai morreram no mesmo
acidente de carro. Minha mãe também nunca fala nada. Eu nunca
perguntei nada. E assim somos, sem muitas perguntas. (POLESSO,
2016, p. 29)
169
No segundo conto selecionado, “Minha Prima está na cidade”, temos uma
perspectiva de amor diversa da que vimos no primeiro exemplo. Vemos aqui um jovem
casal consolidado, com um relacionamento estável e as demandas que uma vida de
casal implica em muitos relacionamentos, inclusive em um casal do meio “lésbico artsy
pseudocult, pseudointelectual” (POLESSO, 2016, p. 77). Bruna e sua esposa,
protagonista-narradora não nomeada, moram juntas e o conto nos revela como se deu
a compreensão da protagonista de que elas formavam uma família, com suas
peculiaridades individuais e acordos conjuntos. É justamente a cumplicidade entre
ambas que dá o mote para o conflito do conto. Bruna trabalha como designer e, para
a protagonista narradora,
no meio em que ela circula é mais fácil aceitar. Eu vou jantar com os
amigos da Bruna, amigos do trabalho. Eles sabem que a gente é um
casal, porque a Bruna não tem problemas com isso. Eu tenho. [...] Por
exemplo, as minhas colegas do trabalho não precisam saber, nem a
minha família (POLESSO, 2016, p. 75).
13No Projeto de Lei do Estatuto da Família do século XXI, 3369/15, ainda em tramitação, de autoria do
então deputado Orlando Silva (PCdoB – SP), família seria “a união entre duas ou mais pessoas que se
baseie no amor, na socioafetividade, independentemente de consanguinidade, gênero, orientação
sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou pessoas que assim sejam consideradas”.
170
O apagamento histórico de relacionamentos entre mulheres e a propaganda de
família composta por núcleos heterossexuais cria em nossa cultura padrões rígidos
de percepção, mesmo para as personagens envolvidas em vivências homoafetivas.
Por isso, destaca-se a delicadeza do conto na abordagem do que pode ser
compreendido como família, com seus pequenos hábitos e costumes, reitera
demandas da crítica feminista no sentido de que, não basta apenas mudar as
personagens nos relacionamentos presentes na literatura,
[...] Eu amo a Bruna e nunca quis magoá-la e nunca vou querer. Temos
essa combinação de evitar dizer coisas das quais possivelmente nos
arrependeremos mais tarde, e nunca, nunca ameaçamos uma a outra
Este projeto responde ao Estatuto da Família que prevê a entidade familiar como “a união estável entre
o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família”. Fonte: https://www.camara.leg.br/noticias/538382-projeto-
reconhece-como-familia-uniao-entre-duas-ou-mais-pessoas-independentemente-de-genero/ e
https://www.camara.leg.br/noticias/538382-projeto-reconhece-como-familia-uniao-entre-duas-ou-mais-
pessoas-independentemente-de-genero/. Acesso em 17 maio 2023.
171
com um término de relação a menos que isso seja mesmo uma
possibilidade, aliás, mais que isso, que seja uma vontade legítima para
além daquele momento (POLESSO, 2016, p. 76).
172
É a partir deste incidente que a sobrinha narradora se aproxima das tias. Com
uma convivência mais frequente, ela começa a perceber “uma mão que procurava a
da outra, enquanto assistiam televisão, abraços, e, uma vez, peguei um beijo furtivo
de bom dia na cozinha” (2016, p. 193). Ainda assim, o casal mantém a discrição típica
de quem conheceu uma vivência lésbica anterior a muitas conquistas sociais que os
movimentos LGBTQIA+ e os feminismos têm hoje.
Aqui, o conto poderia manter o foco nas dificuldades que Leci tinha em ser
reconhecida como esposa de Alvina perante a sociedade e perante a família dela, ou
ainda, o conto poderia evidenciar a tristeza diante do adoecimento e da velhice do
casal, talvez por alguma perda de autonomia de Alvina, após o AVC, mas, nesse
sentido, de forma semelhante ao que afirma Lucia Helena, no texto Perfis de mulher
na ficção brasileira dos anos 80, o conto deixa de lado “a lamúria sobre a condição
desvalida da mulher na sociedade dos homens”(HELENA, 1990, p. 92) presente em
enredos no início dos anos de 1970 nos quais as personagens se apresentavam
estagnadas diante da misoginia e nos traz um desfecho mais condizente com o tom
geral do livro.
Valendo-se da confiança que agora tinham na sobrinha, as tias ligaram pedindo
para que a narradora dormisse na casa delas, pois Leci estava muito doente, porém
Referências
AZEVEDO, Luiz Maurício. As rugas do fantasma. In: Amora. 2.a ed. Porto Alegre:
Dublinense, 2022. p. 244–45.
BRITTO, Milena. Amora: um livro para falar de amor. In: Amora. 2.a ed. Porto Alegre:
Dublinense, 2022. p. 246–253. DOI: 9786555530773.
DUARTE, Constância Lima. Literatura Feminina e Crítica Literária. In: GAZOLLA, Ana
Lúcia Almeida (org. .. (org.). A mulher na Literatura v.I. Belo Horizonte: Imprensa da
Universidade Federal de MInas Gerais, 1990. a. p. 224p.
ESPINOSA. Ética. 2.a reimpr ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2021.
HELENA, Lucia. Perfis de mulher na ficção brasileira dos anos 80. In: A mulher na
Literatura v.I. Belo Horizonte: Imprensa da Universidade Federal de MInas Gerais,
1990. p. 86–96.
HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 1. a ed. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
HOOKS, Bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2020.
LEITE, Dante Moreira. O amor romântico e outros temas. 2.a edição ed. São Paulo:
175
Editora da Universidade de São Paulo, 1979.
POLESSO, Natalia Borges. Aos Amores e às amoras. In: Amora. 2.a ed. [s.l.] :
Dublinense, 2022. p. 11–33.
POLESSO, Natalia Borges. Geografias lésbicas: literatura e gênero. Criação & Crítica,
[S. l.], v. 20, n. 2014, p. 3–19, 2018.
WOOLF, Virginia. Um Teto todo Seu - Virginia Woolf. São Paulo: Tordesilhas, 2014.
176
WOOLF, Virginia. Mulheres e Ficção. 1.a ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia
das Letras, 2019.
177