Consuelo
Lins e Cludia Mesquita
Filmar o real
Sobre o documentrio
brasileiro contemporneo
Sumrio
Em busca do real
Anos 90: o documentrio ganha visibilidade
Tendncias do documentrio contemporneo
Contrapontos com o documentrio moderno
Presena da entrevista
A observao e o tempo
Documentrio e autorrepresentao
Documentrio e mdia: confrontos, dilogos
Documentrio subjetivo e ensaio flmico
Dispositivos documentais, dispositivos artsticos
Dispositivos e novas formas audiovisuais
Imagem e crena
Anexo:
Filmes documentais brasileiros lanados
no cinema (de 1996 a 2007)
Notas
Referncias bibliogrficas
Crditos iconogrficos
Agradecimentos
Em busca do real
Por que o documentrio tem atrado um interesse crescente de realizadores,
crticos e pesquisadores de cinema e conquistado uma parcela pequena mas
considervel do pblico que frequenta as salas de exibio no Brasil?
Formulada de diferentes maneiras, esta questo paira no ar. Ela ecoa um
interesse revigorado pela prtica documental, que pode ser constatado pelo
aumento de filmes produzidos na ltima dcada, a criao de festivais
especialmente dedicados a essa modalidade de cinema, a ampliao de editais
pblicos e outras formas de fomento realizao de filmes documentais e a
presena crescente mesmo que ainda insatisfatria de documentrios
independentes na televiso brasileira. Tambm so indicativos desse interesse
os cursos que se espalham pelo pas inteiro, o aumento de publicaes, os
debates sobre documentrios em encontros e seminrios e a discusso em
torno de novos meios de exibio e distribuio.
Esse estado de coisas no se restringe ao Brasil. Os sinais da fora do
documentrio contemporneo so at mais consistentes em pases da Europa
na Frana, particularmente , nos Estados Unidos, Canad, Japo, Israel, entre
outros. importante notar ainda que o interesse por imagens reais tampouco
se limita ao campo do documentrio: parece corresponder a uma atrao cada
vez maior pelo real em diversas formas de expresso artsticas e miditicas.
Parte significativa das fices cinematogrficas e mesmo televisivas tem
investido em uma esttica de teor documental, e so expressivas as adaptaes
de relatos literrios cuja matria so situaes reais. Os telejornais e
programas de variedades no se limitam mais s imagens estveis e bem
enquadradas, utilizando em muitas coberturas planos-sequncias tremidos e
imagens de baixa qualidade registradas por microcmeras, cmeras de
vigilncia, amadoras e de telefones celulares, buscando imprimir ainda que
de maneira limitada e domesticada um efeito de realidade assepsia
esttica que imperava no telejornalismo at o incio dos anos 90. Os reality
shows suscitam questes que atingem a prtica documental, indagando direta
ou indiretamente suas fronteiras, possibilidades e limites. tambm cada vez
mais comum expor imagens documentais em galerias e museus na forma de
videoinstalaes.
Em suma, as produes audiovisuais que circulam na televiso, no cinema,
na internet, nos espaos de arte contempornea, em dispositivos mveis como
telefones celulares, so atravessadas por imagens reais de diferentes tipos
(violentas, banais, protagonizadas por celebridades ou annimos), capturadas
por cmeras de formatos diversos. Desgaste das formas audiovisuais
estabelecidas? Tentativas de revitalizar um espectador entediado a quem
preciso oferecer uma dose maior de realidade para quebrar a indiferena?
Maneiras de satisfazer o desejo voyeur do pblico de ver sempre mais? Eis
questes que nos estimulam a refletir sobre a situao do documentrio no
Brasil e com as quais, querendo ou no, o cinema documental tem hoje que se
defrontar.
O contexto e o quadro ampliado do audiovisual brasileiro so complexos e,
embora se faam presentes, no sero objeto direto de nossa anlise. Este
ensaio se atm produo independente de filmes e vdeos documentais no
Brasil a partir de meados dos anos 90, mas faz breves recuos s dcadas
anteriores para melhor distinguir rupturas e continuidades em relao ao
documentrio realizado no pas desde os anos 60. Nosso esforo aqui foi o de
retomar questes presentes na produo e na crtica ao longo dos ltimos anos
e abordar outras que nos parecem importantes para debater essa forma de
cinema.1 Esse procedimento implicou escolhas de filmes e autores, e nos fez
deixar de fora um nmero considervel de obras recentes. Embora haja
excees, privilegiamos filmes j exibidos em salas ou na televiso, em
funo de sua circulao e maior presena no debate pblico. Mais do que a
julgamentos de valor, nossas escolhas de obras correspondem tentativa de
identificar recorrncias, caminhos representativos e traos novos nesta
produo.
Anos 90:
o documentrio ganha visibilidade
O final da dcada de 90 especialmente marcante para o documentrio
brasileiro: a produo de filmes est em franco crescimento, alguns ttulos
chegam tela grande, a ateno do pblico e da crtica cada vez maior. Trs
filmes se destacam em 1999: Ns que aqui estamos por vs esperamos, de
Marcelo Masago, que atinge um pblico de quase 59 mil espectadores; Santo
forte, de Eduardo Coutinho, que chega a quase 19 mil; e Notcias de uma
guerra particular, de Joo Salles e Ktia Lund, exibido em vrios festivais e
no canal de televiso a cabo GNT/Globosat, com grande repercusso. So
filmes esteticamente distintos que expem maneiras diversas de abordar temas
e personagens. Cada um deles evidencia, de modo particular e emblemtico,
questes que perpassam toda a produo documental. O quadro sem dvida
rico e promissor. O que o ter preparado?
Diferentemente do cinema brasileiro de fico (sobretudo em longa-
metragem), a produo documental no sucumbiu crise que marcou a
passagem dos anos 80 para os 90, com a extino da Embrafilme, estatal
produtora e distribuidora de cinema, pelo governo Collor de Mello.* Na trilha
iniciada nos anos 80, seguiu seu destino de gnero menor: realizado
sobretudo em vdeo, manteve fortes ligaes com os movimentos sociais que
surgiram ou reconquistaram espao com a redemocratizao do pas, restrito
pouca visibilidade fora do circuito de festivais, associaes, sindicatos e TVs
comunitrias apartado, enfim, das principais janelas de exibio. A situao
se modifica razoavelmente a partir da retomada do cinema brasileiro,** por
vrios motivos. A prtica documental ganha impulso, primeiramente, com o
barateamento e a disseminao do processo de feitura dos filmes em funo
das cmeras digitais e, especialmente, da montagem em equipamento no
linear. As vantagens tcnicas, econmicas e estticas dos equipamentos digitais
sobre os analgicos permitem tanto a cineastas j consolidados quanto a
jovens que se iniciam no documentrio investir na realizao de filmes a
custos relativamente baixos.
Por outro lado, h estmulo objetivo produo de cinema, a partir de
meados dos anos 90, atravs de uma legislao de incentivo ancorada em
mecanismos de renncia fiscal, que torna atraente, para empresas privadas e
estatais, o patrocnio a projetos audiovisuais poltica cujos principais
instrumentos so a Lei do Audiovisual e a Lei Rouanet, e que tem estimulado
tambm a criao de editais de fomento e prmios visando produo de
documentrios, tanto por rgos e empresas pblicas quanto por instituies
culturais mantidas por empresas privadas (a exemplo do Programa Rumos Ita
Cultural Cinema e Vdeo, que em dez anos fomentou a realizao de mais de
30 projetos de documentrio).
Seria, contudo, exagerado afirmar, como aponta Carlos Augusto Calil, que
o documentrio conquistou na atual dcada de 2000 um mercado slido no
Brasil. O pblico dos longas documentais brasileiros dificilmente ultrapassa a
faixa dos 20 mil espectadores.*** A poltica de incentivo produo esbarra
no problema concreto da distribuio e comercializao. Muitos filmes
documentais so produzidos, mas em geral lanados com pouqussimas
cpias, quando lanados o que, claro, tem influncia direta sobre o nmero
de espectadores.**** Mesmo assim, h novidades considerveis. Uma delas o
fato de o documentrio ter conquistado a tela grande do cinema, janela do
mercado at ento interditada a este gnero, como lembra Calil.2 O
documental brasileiro da retomada , de um modo geral, longo e almeja a tela
grande: desde 1996, foram lanados comercialmente mais de 100 longas
documentais brasileiros os formatos tradicionais at os anos 90 eram o curta
e o mdia-metragens, com raras excees.***** Por outro lado, programas
pblicos de fomento via editais, cujo principal exemplo o DOCTV,
permitiram o estabelecimento de uma relao mais consistente e continuada
entre a produo independente e a TV aberta, fato raro na histria do
audiovisual brasileiro.
Se o documentrio brasileiro ainda procura seu pblico, tais programas
apostam na janela da televiso e evidenciam outra dimenso: a presena, na
atualidade, de iniciativas que investem na democratizao do acesso
realizao de contedos audiovisuais, s vezes visando a novas modalidades
de formao e incluso. Programas do Ministrio da Cultura como o
Revelando os Brasis (dirigido a realizadores de municpios com at 20 mil
habitantes) apontam outros papis para o documentrio hoje: lugar da
produo de imagens menores, da realizao de autorrepresentaes, da
afirmao da diversidade de experincias, identidades e linguagens.
Notas
* Sabe-se que no incio da dcada de 1990 o cinema brasileiro de longa-metragem quase desapareceu.
Apenas trs filmes nacionais foram exibidos nas salas de cinema em 1992, e seu pblico correspondeu a
0,05% do total de espectadores de cinema naquele ano no Brasil (dados: portal Filme B,
www.filmeb.com.br).
** Convencionou-se chamar de retomada a produo de cinema brasileiro a partir de meados dos anos
90 (de longa-metragem, em particular), que recobrou flego em funo do estmulo produo
propiciado pelas leis de incentivo que entraram em vigor naquele perodo. O marco inaugural costuma ser
o longa Carlota Joaquina Princesa do Brazil (1995), de Carla Camurati.
*** Embora o documentrio tenha correspondido, em 2007, ao segundo gnero com maior nmero de
lanamentos no mercado brasileiro (posicionando-se depois de drama e superando comdia,
animao, aventura e ao), os filmes brasileiros so lanados de modo tmido e restrito. Mas as
excees se multiplicam. Em 2007, filmes como Cartola msica para os olhos, de Lrio Ferreira e
Hilton Lacerda, Pro dia nascer feliz, de Joo Jardim, e Santiago, de Joo Salles, tiveram mais de 50 mil
espectadores. Um dos casos mais importantes, em termos de mercado, foi o de Janela da alma (2002), de
Walter Carvalho e Joo Jardim, que fez 133 mil espectadores, com quatro cpias em cartaz, durante 26
semanas. Vincius (2005), de Miguel Farias Jr., ainda o recordista da retomada, contabilizando mais de
270 mil espectadores no cinema (dados: Filme B e C.A. Calil, A conquista da conquista do mercado).
**** Segundo dados do portal Filme B, havia 34 longas documentais brasileiros prontos em fins de 2005
e desses, apenas 14 tinham distribuidora definida. Uma alternativa a esse n tem se apresentado na
exibio digital, j experimentada por longas documentais de baixo oramento como Morro da Conceio
(Cristiana Grumbach, 2005). Esse modelo de negcio, cada vez mais frequente, diminui custos de
finalizao e permite aproximar o documentrio do pblico, minimizando a distncia entre produo e
comercializao.
***** Como o caso de Os anos JK (1980) e Jango (1984 ), de Silvio Tendler. Exibidos em salas de
cinema, fizeram, respectivamente, 800 e 558 mil espectadores. Dados: www.ancine.gov.br.
Tendncias do documentrio
contemporneo
Em 1999, a quarta edio do Tudo Verdade Festival Internacional de
Documentrios decide incluir na sua seleo filmes produzidos em diferentes
formatos e no apenas em pelcula, o que faz com que as inscries
brasileiras, que at ento giravam em torno de 15 filmes, alcancem a marca de
130 trabalhos.* E premia Ns que aqui estamos por vs esperamos, de Marcelo
Masago, filme que o diretor realizou em computador domstico, sem grandes
recursos, em um trabalho rduo de edio de imagens de arquivo.
No filme, Masago refaz a seu modo um gesto que ser cada vez mais
frequente em uma certa produo ensastica contempornea: a retomada e
manipulao de imagens alheias, a maioria delas extrada de cinematecas,
museus e televises. O filme feito de fragmentos de imagens produzidas ao
longo do sculo XX, nas quais o diretor destaca biografias reais, insere
pequenas fices, inventa personagens, retira-os do anonimato das
atualidades cinematogrficas, dando-lhes origem e destino. Serve-se de
pequenas frases inscritas na imagem, e tambm de fuses, sobreposies,
mudanas de velocidade e diferentes telas para realizar um filme que custou
apenas 140 mil reais 80 mil deles usados na compra dos direitos autorais de
arquivos audiovisuais espalhados pelo mundo. O restante foi usado na
transferncia do trabalho final para 35mm nos Estados Unidos. Essa
experincia quase artesanal, propiciada principalmente pela edio no linear,
explicitou algo que j se identificava em muitos trabalhos do final da dcada
de 90: que as condies de produo do documentrio haviam definitivamente
mudado, e que era possvel realizar praticamente sozinho um filme para ser
exibido na tela grande.
Notcias de uma guerra particular, de Joo Salles e Ktia Lund, parte de um
dos experimentos bem-sucedidos, no campo do documentrio, de
relacionamento entre um canal por assinatura (GNT/Globosat) e uma
produtora independente (a carioca Videofilmes) parceria que gerou sries
importantes, como Futebol (1998), de Joo Salles e Arthur Fontes, e 6
histrias brasileiras (2000), de Joo Salles e Marcos S Corra, entre outros
diretores. Realizado entre 1997 e 1998, Notcias de uma guerra particular
aborda os impasses da guerra insana entre policiais e traficantes nos morros e
periferias do Rio de Janeiro, e os efeitos do conflito na vida cotidiana da
populao pobre, moradora dessas regies conflagradas. Embora tenha o
morro Santa Marta como locao privilegiada, particularizando em alguns
momentos a abordagem, o filme realiza um diagnstico da escalada de
violncia no Rio relacionada historicamente ao trfico de drogas.
Os diretores optaram por ouvir exclusivamente os envolvidos na questo,
prescindindo de depoimentos de tpicos especialistas, embora as trajetrias do
ento chefe da Polcia Civil do Rio de Janeiro Hlio Luz e do escritor Paulo
Lins os posicione de modo diferenciado entre os personagens. O depoimento
de um soldado do Batalho de Operaes Especiais, Rodrigo Pimentel,** um
desabafo que expressa com preciso a inutilidade, o desgaste e a aparente
ausncia de qualquer objetivo concreto nas polticas de segurana pblica de
combate ao trfico de drogas. Ele fala francamente de seu cotidiano e
consegue uma empatia com o espectador extremamente rara no que diz
respeito imagem do policial no Brasil. Talvez seja o nico personagem
efetivo desse filme, realizado sem roteiro, na urgncia e no improviso,
segundo o prprio diretor, fruto de um desejo de ser testemunha3 e por
isso um filme que difere de uma certa esttica da observao, mais
frequente no cinema de Salles.
Desesperanado, o documentrio no oferece consolo ao espectador, no
lhe d escapatria, coloca-o frente a frente com policiais exauridos, traficantes
nada romnticos, menores presos sem qualquer possibilidade de recuperao,
moradores rendidos. Trata-se de um filme crucial para a incluso das questes
envolvendo trfico de drogas, contrabando de armas, violncia e pobreza na
pauta do audiovisual nacional. Notcias concentra e deixa ntidas tenses da
violncia carioca presentes em muitos filmes de fico dos anos 90, a exemplo
de Como nascem os anjos (1996), de Murilo Salles, O primeiro dia (1998), de
Walter Salles que ajudou o irmo Joo no documentrio , e Orfeu (1999),
de Cac Diegues; e antecipa problemas que sero retomados em filmes da
dcada seguinte, tais como Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e
Ktia Lund, Quase dois irmos (2004), de Lcia Murat, e Tropa de elite (2007),
de Jos Padilha. como se o documentrio estabelecesse um pano de fundo,
destrinchasse os mecanismos da violncia e se apresentasse como sntese de
uma situao com a qual todo filme realizado nas periferias e morros do Rio
teria, dali para a frente, que se confrontar ainda que na forma de recusa.
Notcias de uma guerra particular:
trfico de drogas, contrabando de armas, violncia e pobreza na pauta da produo audiovisual.
Na produo documental, O rap do pequeno prncipe contra as almas
sebosas (2000), de Paulo Caldas e Marcelo Luna, reencontra essa mesma
temtica na periferia do Recife a partir da trajetria de um matador e de um
msico, mas o excesso de fragmentao e uma cmera por vezes frentica
demais bloqueiam uma construo mais consistente dos personagens. nibus
174 (2002), de Jos Padilha e Felipe Lacerda, que se filia mais diretamente a
Notcias, reutilizando imagens, refazendo entrevistas com alguns personagens
e retomando o mesmo tipo de trilha sonora. Ainda que dedicado trajetria de
um nico indivduo, o filme no se esgota numa subjetividade: notvel o
alcance social e poltico desse documentrio, construdo a partir de um
trabalho exaustivo de investigao e ressignificao de arquivos televisivos.
J Santo forte (1999) marca a volta de Eduardo Coutinho tela grande, quinze
anos depois de Cabra marcado para morrer, at ento o nico documentrio do
diretor com exibio comercial em salas de cinema. O filme inicia a fase mais
produtiva do cineasta a partir de ento, uma mdia de um filme por ano ,
dando-lhe um reconhecimento que ele no esperava mais. Baseado
essencialmente nas falas de 11 moradores de Vila Parque da Cidade (favela na
Zona Sul do Rio) sobre suas experincias religiosas, associadas a menos de
cinco minutos de imagem pura (como Coutinho costuma definir os planos
em que no h pessoas falando), o documentrio inaugura um minimalismo
esttico que ser a marca do diretor nos filmes posteriores: sincronismo entre
imagem e som, ausncia de narrao over,*** de trilha sonora, de imagens de
cobertura. Trata-se de uma operao de subtrao de tudo o que no lhe
parece essencial, de um exerccio de eliminao que exige muito esforo e
uma postura extremamente ativa, que pensa, repensa e discute o que est sendo
produzido, distante de qualquer passividade ou submisso diante do real.
Coutinho radicaliza em Santo forte a aposta de filmar a palavra do outro e
concentra-se no encontro, na fala e na transformao de seus personagens
diante da cmera. O momento da filmagem tem para o diretor uma dimenso
quase mstica. Ali, no encontro com o outro, tudo ou nada. Coutinho mantm
uma escuta ativa e procura se abster de qualquer julgamento moral diante do
que dizem as pessoas filmadas, que constroem na cena provisria da
entrevista seus autorretratos, sendo responsveis pela elaborao de sentidos
e interpretaes sobre sua prpria e singular experincia.4 No correspondem
a tipos com um perfil sociolgico determinado, no fazem parte de uma
estatstica, no justificam nem provam nenhuma tese do diretor. Ambiguidades
e sentidos mltiplos no so resolvidos na montagem; contradies no
ganham uma sntese, mas so postas lado a lado.
nesse filme que Coutinho percebe a importncia, para o seu cinema, de
filmar em um espao restrito, em uma locao nica, que permite
estabelecer relaes complexas entre o singular de cada personagem, de cada
situao e algo como um estado de coisas da sociedade brasileira. Como
falar de religio no Brasil? Percorrendo o pas inteiro? Como falar da favela?
Filmando vrias? A abordagem de Coutinho em Santo forte no deixa dvidas:
filmar em um espao delimitado e, dali, extrair uma viso, que evoca um
geral mas no o representa nem o exemplifica.
Dona Thereza, estrela de Santo forte, de Eduardo Coutinho, constri o seu autorretrato no encontro com o
diretor, na situao de filmagem. Na foto inferior, o plano do quintal vazio um exemplo de imagem
pura no cinema de Coutinho: uma imagem sem falas.
Notas
* Para se ter uma ideia do crescimento da produo dos anos 90 para c, o nmero de filmes brasileiros
inscritos na primeira edio do mesmo festival, em 1996, foi de 4 5, contra 4 00 em 2007. A criao (pelo
crtico de cinema Amir Labaki) e consolidao do Tudo Verdade parecem indicar, portanto, a
revitalizao do gnero documental no Brasil.
**Hoje afastado do Bope, o ex-comandante assina o roteiro do filme Tropa de elite (com Brulio
Mantovani e o diretor Jos Padilha), inspirado em seu livro Elite da tropa (coautoria com Luis Eduardo
Soares e Andr Batista).
*** Embora as expresses voz off e narrao off sejam mais usuais, optamos por voz over e
narrao over, neste ensaio, por consider-las mais precisas. O over remete sobreposio s
imagens de vozes externas, alheias cena, enquanto o off diz respeito s vozes que esto fora de
quadro, mas pertencem ao universo sonoro da cena em questo.
Contrapontos com o
documentrio moderno
A recusa do que representativo e o privilgio da afirmao de sujeitos
singulares so dois traos marcantes de diferenciao entre o documentrio
contemporneo brasileiro e o chamado documentrio moderno, em particular
aquele produzido no decorrer dos anos 60. Quando falamos em documentrio
moderno estamos nos referindo a um conjunto de obras em 16 ou 35mm, de
curta ou mdia metragens e circulao restrita, realizadas sobretudo por
documentaristas ligados ao Cinema Novo. Interessa-nos sublinhar brevemente
suas principais caractersticas, na medida em que h, desde ento, um dilogo
permanente entre a produo posterior aos anos 60 e esse primeiro momento
do documentrio social, crtico e independente no Brasil. So filmes que
abordam criticamente, pela primeira vez na histria do documentrio
brasileiro, problemas e experincias das classes populares, rurais e urbanas,
nos quais emerge o outro de classe* pobres, desvalidos, excludos,
marginalizados, presena constante em nosso documental desde ento, sob
diversos recortes e abordagens.
Dar voz a esse outro desconhecido torna-se questo importante para os
cineastas, e a entrevista possibilitada pelo advento das tcnicas de gravao
de som direto ** torna-se um procedimento privilegiado. A voz do povo
faz-se portanto presente, mas ela no ainda o elemento central, sendo
mobilizada sobretudo na obteno de informaes que apoiam os
documentaristas na estruturao de um argumento sobre a situao real
focalizada. As falas dos personagens ou entrevistados so tomadas como
exemplo ou ilustrao de uma tese ou argumento, este, muitas vezes,
elaborado anteriormente realizao do filme, no raramente a partir de
teorias sociais que forneciam explicaes tidas como universalmente
aplicveis. Trata-se de um conjunto de filmes que remetem ao modelo que
Jean-Claude Bernardet definiu, em seu livro Cineastas e imagens do povo, de
1985, como sociolgico, e cujas caractersticas convergem, em inmeros
aspectos, para a esttica do documentrio clssico. Em especial, os
mecanismos de produo de significao do filme, centrados na relao entre
o particular e o geral.
A forma do documentrio brasileiro nos anos 60 , portanto, bastante
hbrida, dividindo-se entre o projeto de dar a voz (atravs de entrevistas) e a
proposta de totalizar e interpretar situaes sociais complexas, manifestada
sobretudo pelo comentrio do narrador, pelo uso da msica, pelas entrevistas
com especialistas e autoridades, e tambm pela montagem trabalhada de modo
retrico. Diferentemente de movimentos inovadores do documentrio nesse
perodo tais como o Cinema Verdade francs e o cinema direto norte-
americano, que aboliram a narrao over desencarnada, onisciente e
onipresente, em favor de um universo sonoro rico e variado , a forma
documental brasileira se deixa contaminar por procedimentos modernos de
interao e de observao, mas no se transforma efetivamente. As
implicaes polticas do Cinema Novo parecem ter criado uma situao
especial para o documentrio, que continuou recorrendo voz do saber para
construir com clareza os significados sociais e polticos visados pelos filmes.
Portanto, a narrao explicativa perdura e expressa um modelo bastante
caracterstico da primeira metade dos anos 60 no Brasil: o do
cineasta/intelectual que se julga no papel de intrprete que aponta problemas e
busca solues para a experincia popular.***
Vrias circunstncias fizeram com que esse modelo de documentrio
sofresse mudanas ao longo das ltimas dcadas, e o quadro bem mais
complexo do que podemos desenvolver aqui. Cabe, no entanto, destacar alguns
momentos dessa trajetria que contriburam para problematizar opes ticas
e estticas do documentrio dos anos 60, imprimindo modificaes a essa
estrutura. Algumas caractersticas se mantm dominantes, tais como a atitude
dos cineastas de filmar indivduos pertencentes a segmentos sociais diferentes
dos seus, mas as aproximaes se diversificam e escapam da exterioridade
do diretor em relao a quem filmado e dos tipos sociais presentes, de
diferentes maneiras, em filmes como Viramundo (1965), de Geraldo Sarno,
Opinio pblica (1966), de Arnaldo Jabor, Maioria absoluta (1964-66), de
Leon Hirszman, entre outros.
Uma das respostas, j nos anos 70, aos limites da tendncia sociolgica
encontra-se em curtas documentais que buscaram promover o sujeito da
experincia posio de sujeito do discurso; tentativas e propostas para que o
outro de classe se afirmasse sujeito da produo de sentidos sobre sua
prpria experincia. Uma dessas vias se materializou na radicalizao do
mpeto de dar a voz. Em alguns filmes (como Tarum (1975), de Aloysio
Raulino), Bernardet observa certa magreza esttica, poesia menos ou
estilo pobre, pouco retrico, que reduz sua forma de expresso ao mnimo,
para que o outro de classe assuma o discurso e no seja abafado pela voz do
cineasta.5 Outro experimento, tambm levado a cabo por Raulino, Jardim
Nova Bahia (1971), em que o cineasta entrega a cmera a Deutrudes, migrante
nordestino, para que ele filme sem qualquer interferncia do diretor, como
informam os crditos finais. Raulino abdica de sua posio e constri o
documentrio tambm com imagens produzidas pelo personagem (num
esforo de compartilhar no apenas a voz, mas o olhar do filme).
Ainda na dcada de 70, experincias menos marginais, como os
documentrios realizados no programa de televiso Globo Reprter, permitem
testar outras formas de abordar a realidade. Driblando tanto a censura da
ditadura quanto a direo de jornalismo da TV Globo, a equipe formada por
jornalistas e cineastas consegue realizar em alguns filmes um trabalho autoral
de filmagem e montagem, distante da esttica-padro do programa que j
comeava a se consolidar e contava com um apresentador e narrador oficial.
Cmera na mo em muitas cenas, longos planos-sequncias, ausncia de
narrao over, personagens fugindo das tipificaes, mistura de fico com
documentrio, so elementos que singularizam essa produo, abrindo
perspectivas interessantes para o documentrio da poca.
Mas as premissas do documentrio brasileiro moderno so mais
profundamente contestadas no incio da dcada de 70 nos filmes de Arthur
Omar Congo (1972), especialmente e no clebre texto-manifesto do
diretor, O antidocumentrio, provisoriamente, do mesmo ano. Omar implode,
nessas intervenes, as boas intenes dos documentaristas de ento: tematiza a
exterioridade que motiva a realizao de todo projeto de documentrio (S se
documenta aquilo de que no se participa), evidencia a distncia entre o saber
documental e seus objetos, afirma a mediao como o que verdadeiramente
interessa e explicita a natureza falsa de toda e qualquer imagem. Menos
preocupado em contestar o documentrio mas igualmente demolidor de todas
as premissas do gnero, Glauber Rocha realiza Di/Glauber (1977), em torno
do velrio e enterro do pintor Di Cavalcanti, talvez o primeiro documentrio
efetivamente subjetivo do cinema brasileiro. Congo e Di/Glauber so filmes
experimentais, reflexivos, ensasticos; obras em que a interveno dos
cineastas central e explcita, realizadas a partir de um material audiovisual
heterogneo, e nas quais o que importa no so as coisas propriamente, mas
a relao que se pode estabelecer entre elas. Filmes que deixam claros os
limites da representao documental e propem novas formas de relao com
o espectador, mas foram infelizmente muito pouco vistos. A exibio de
Di/Glauber at hoje proibida no Brasil, em funo de um processo movido
pela famlia do pintor.
Cabra marcado para morrer (1964/1984), de Eduardo Coutinho, o filme
que rene, sintetiza e indica novos caminhos para o documentrio brasileiro,
transformando-se em um divisor de guas, segundo Jean-Claude Bernardet,
entre o cinema moderno dos anos 60 e 70 e o documentrio das dcadas de 80
e 90. Em vez dos grandes acontecimentos e dos grandes homens da histria
brasileira, ou de fatos e pessoas exemplares, o filme se ocupa de episdios
fragmentrios, personagens annimos, aqueles que foram esquecidos e
recusados pela histria oficial e pela mdia. Cabra marcado efetua desvios
significativos nas formas de se fazer documentrio no Brasil, mas no deixa
de dialogar com diferentes estticas documentais e da reportagem televisiva,
retomando algumas delas e reinventando outras.
A histria de Cabra conhecida. Iniciado e interrompido em 1964, pelo
golpe militar, o projeto tencionava contar a trajetria do lder campons Joo
Pedro Teixeira, assassinado a mando de latifundirios, tendo camponeses
como atores de uma fico inspirada em fatos reais (a viva de Joo Pedro,
Elizabeth Teixeira, desempenhava o seu prprio papel). Quando Coutinho
retoma o filme na dcada de 80, no se trata mais de implantar um projeto
esttico coletivo, engajando camponeses e intelectuais numa experincia
comum, com fins didticos e de promoo da luta camponesa. Trata-se agora
de um indivduo em busca de outros indivduos. Os camponeses que o cineasta
reencontra esto transformados pela experincia histrica que viveram, assim
como o projeto de filme se transformou nos quase vinte anos que separam
uma filmagem da outra, anos de ditadura militar. Coutinho volta para ouvir os
camponeses e expor a experincia anterior a um balano os balanos
possveis, agora, so individuais.
Sua postura em 1981 (quando o filme retomado) de disponibilidade e
abertura para o encontro. Trata-se de abrir a cmera para a complexidade das
representaes que os camponeses fazem de sua experincia e de sua histria,
muitas vezes contraditrias. O Cabra de 1984, centrado em entrevistas, um
filme aberto, sem certezas. Coutinho aposta no processo de filmagem como
aquele que produz acontecimentos e personagens; aposta no encontro entre
quem filma e quem filmado como essencial para tornar o documentrio
possvel. A entrevista no mais simples depoimento nem dar a voz, mas um
dilogo fruto de permanente negociao em que as verses dos personagens
vo sendo produzidas em contato com a cmera. Trata-se de um filme que,
para Ismail Xavier,6 encerra simbolicamente o perodo esttica e
intelectualmente mais denso do cinema brasileiro, marcado pela tradio do
cinema moderno, articulando de forma inventiva e heterognea a dimenso
esttica com as questes polticas nacionais.
Notas
* Conceito utilizado por Bernardet para caracterizar o tipo de construo, pelos filmes, de seus objetos,
e a relao de alteridade privilegiada por alguns dos 23 documentrios que analisou em seu indispensvel
estudo sobre o moderno documentrio brasileiro: Cineastas e imagens do povo, lanado em 1985.
** A partir do comeo dos anos 60, a captao de som direto se torna pouco a pouco usual, com a
popularizao dos gravadores portteis Nagra e de cmeras 16mm mais leves. O primeiro representante
do Cinema Novo a ter contato com a tcnica do som direto foi Joaquim Pedro de Andrade, que a
experimentou de modo pioneiro (mas ainda precariamente, por indisponibilidade de equipamentos) em
Garrincha, alegria do povo (1962). Realizados em 1963/1964 , Maioria absoluta (Leon Hirszman) e
Integrao racial (Paulo Csar Saraceni) so considerados os primeiros filmes efetivamente diretos
brasileiros, seguidos da primeira leva de produes de Thomaz Farkas em So Paulo. Para mais
informaes, ver A descoberta da espontaneidade, de David Neves.
*** Por seu carter panormico, nossa abordagem no destaca as singularida-des dos filmes do perodo,
bem mais diversos do que este breve apontamento poderia sugerir. Nem todos conjugam nos mesmos
termos as caractersticas do filme sociolgico, interpretativo, com pretenses generalizantes. Um
comentrio sobre a diversidade desta produo se encontra no texto A Caravana Farkas e ns, de
Cludia Mesquita.
Presena da entrevista
Cabra marcado para morrer pode ser visto tambm como marco inaugural, na
obra de Eduardo Coutinho, da nfase na palavra falada, enunciada nas
conversas entre diretor e personagens, observados pelo aparato
cinematogrfico. Santo forte radicaliza essa postura e evidencia, ao mesmo
tempo, parmetros de uma abordagem que se tornou muito influente no
documentrio brasileiro ao longo dos anos 80 e 90: o privilgio da entrevista,
associado retrao na montagem do uso de recursos narrativos e retricos,
particularmente da narrao ou voz over, considerada uma interveno
excessiva, que dirige sentidos, fabrica interpretaes. como se a
predisposio de dar a voz aos sujeitos da experincia (j presente no
documentrio do Cinema Novo, mas ento associada voz over interpretativa
ou totalizadora) fosse ganhando fora, a ponto de abolir ou subjugar outras
formas de abordagem.
Embora bastante distintos entre si, filmes como 2000 nordestes (2001), de
David Frana Mendes e Vicente Amorim, Janela da alma (2002), de Joo
Jardim e Walter Carvalho, Morro da Conceio (2005), de Cristiana
Grumbach, Estamira (2006), de Marcos Prado, Em trnsito (2006), de Henri
Gervaiseau, e Pro dia nascer feliz (2007), de Joo Sardim, entre outros,
expem a presena decisiva desses traos.
Mas, ainda que a entrevista seja utilizada como estratgia de abordagem
central, os assuntos, dispositivos e composies finais so variados. Pode
haver um tema amplo como norte (como o caso do olhar em Janela da
alma); ou a aposta na associao entre uma temtica especfica e a experincia
dos moradores de um local (como o caso do trnsito na cidade de So Paulo,
no longa Em trnsito, que trabalha entrevistas com moradores de diferentes
regies da capital, mas tambm acompanha o cotidiano dos personagens em
seus fluxos pela cidade); ou ainda uma circunscrio espacial mais rigorosa,
privilegiando a experincia de um determinado grupo de moradores (como se
v em Morro da Conceio).
Neste ltimo, a presena da entrevista se associa intimamente ao trabalho da
memria e ao tempo de narrar de seus personagens, oito dos mais velhos
moradores dessa regio no Centro antigo do Rio de Janeiro. O filme alinhava
essas conversas, numa alternncia entre segmentos temticos que tecem uma
memria coletiva (os tempos antigos do bairro e da cidade, o carnaval, a
Rdio Nacional) e outras sequncias mais individualizadas que se dedicam
s histrias de cada um dos personagens. Pontuando os segmentos, longos
planos gerais fixos de algumas ruas e recantos, tomados no decorrer de um
dia neles, o tempo presente do morro da Conceio escorre entre minsculos
acontecimentos cotidianos. Na montagem das entrevistas e nas pontuaes, o
documentrio elabora um tempo prprio, propiciatrio. Entre fotografias,
casos, lapsos e silncios, os personagens criam, na interao com a diretora,
as imagens de um tempo perdido. Suas performances, mais at do que o
contedo narrativo das histrias, expressam a imbricao entre memria e
esquecimento.
J em Estamira, a entrevista aparece associada a outros procedimentos,
inclusive ao registro cuidadoso do cotidiano, e o filme pode ser visto como
uma sntese entre a busca de formas mais plsticas numa tendncia
documental contempornea que dialoga com a videoarte e a ateno ao
encontro praticada por Eduardo Coutinho. No apenas um trabalho de
apreenso e expresso esttica do universo da personagem Estamira, mas de
longo e denso relacionamento com ela, senhora com problemas mentais,
trabalhadora de um lixo na periferia do Grande Rio, vrias vezes visitada
pela reduzida equipe de gravao. O diretor prefere, na montagem, excluir sua
voz na interao com a personagem, diferenciando-se de um uso da entrevista
mais prprio a um cinema conversa, como se v nos filmes de Coutinho e
em Morro da Conceio.
O tema semelhante ao de Boca de lixo (1992), vdeo de Eduardo Coutinho,
mas a representao empreendida em Estamira bem diversa, ainda que
saibamos do esforo de singularizao das trajetrias de alguns catadores
realizado pelo documentrio de Coutinho, que visa a confrontar o esteretipo
e busca a afirmao de sujeitos. Em Boca de lixo nota-se a proposta de resistir
ao estigma que marca a representao pblica de um grupo social
marginalizado, remetendo, em alguma medida, a perspectiva dos sujeitos
entrevistados a uma comunidade de sentido e experincia. Em Estamira,
diversamente, v-se uma notvel radicalizao do esforo de subjetivao j
presente em Boca de lixo. O documentrio nos permite refletir sobre o
esvaziamento da vontade de representatividade, a favor de uma aposta na
afirmao singular de uma nica mulher. Este empenho se traduz em
fotografia, som e montagem, e poderamos afirmar, com Leandro Saraiva, que
a fora de Estamira, sua subjetividade transbordante e arrebatada, contamina e
conduz a expresso cinematogrfica.7
Equacionada a outros procedimentos de abordagem e trabalhada com rigor
em longas como Estamira, a entrevista aparece como estratgia recorrente,
diluda em muitos trabalhos recentes. provvel que o primeiro a chamar
ateno publicamente para a hiptese de que a entrevista virou cacoete tenha
sido Jean-Claude Bernardet, na segunda edio de Cineastas e imagens do povo
(2003). No artigo A entrevista, um dos apndices ao texto original,
Bernardet constata o crescimento da produo de documentrios
cinematogrficos no Brasil desde fins dos anos 90, mas adverte que tal boom
no corresponde a um enriquecimento da dramaturgia e das estratgias
narrativas; ao contrrio, haveria a repetio de um nico sistema,
banalizado pelo jornalismo televisivo: No se pensa mais em documentrio
sem entrevista, e o mais das vezes dirigir uma pergunta ao entrevistado
como ligar o piloto automtico.8
Entre as consequncias estticas desse sistema estariam a dominncia do
verbalizvel, a fraca capacidade de observao de situaes reais em
transformao, a repetio de uma mesma configurao espacial (aquela tpica
da entrevista), a ausncia de relaes entre os personagens em funo do
enfoque centrado na interao entre cineasta e entrevistado. Bernardet observa
tambm que tal relao, por sua vez, ainda se atm dicotomia clssica
sujeito-objeto. Dominam temticas relacionadas experincia do outro de
classe e os cineastas tratam seus entrevistados pobres de modo fetichista e
sacralizado, sem estabelecer real dilogo: Tudo o que diz o pobre vale. No
vamos contradizer o pobre, que isso implicaria uma colaborao com os
mecanismos de opresso entrevistado pobre um tanto sacralizado.9
Neste contexto de repetio, diluio e esgotamento de um modelo,
Bernardet se diz motivado por filmes que evidenciam a crise do sistema de
entrevistas filmes de entrevista que exibem, de algum modo, fissuras e
tenses internas a seu procedimento central. Emblemtico dessa situao, para
ele, margem da imagem, primeiro longa de Evaldo Mocarzel. Nesse filme
sobre moradores de rua da cidade de So Paulo, alguns clichs associados ao
sistema esto mobilizados: entrevistas, presena da equipe na imagem e
ausncia de narrao over. Ao final, a marcante autocrtica: um dos
personagens, depois de assistir ao filme em sesso promovida pela equipe,
mostra-se descontente com a representao de sua experincia empreendida
pelo longa. Para ele, faltou mostrar a sua rotina invisvel: ir de casa em casa,
pedir comida, receber humilhaes. Teria sido o caso, podemos pensar, de
abandonar ou matizar a metodologia centrada em entrevistas, nesse caso
insuficiente, em privilgio de uma postura de observao filmada do
cotidiano.* O crtico no deixa ainda de sublinhar o fato de que o sistema de
entrevistas simplifica a produo e baixa seus custos, explicitando a relao
entre os mecanismos de produo audiovisual vigentes, a dominncia de um
procedimento e os resultados estticos obtidos.
Notas
* Ao projetar o filme para os personagens, Evaldo Mocarzel j provoca, em margem da imagem,
reflexes sobre a apropriao da imagem do outro. Ele diversifica este questionamento e busca novos
enfoques em seus documentrios posteriores, que tambm se valem do procedimento da entrevista. Em Do
luto luta (2006), por exemplo, parte de uma experincia pes-soal ( pai de uma menina portadora da
sndrome de Down) para focalizar a experincia de outros portadores e familiares. Algumas anlises
detidas dos filmes de Bernardet se encontram no Docblog, de Carlos Alberto Mattos.
A observao e o tempo
Dentre os filmes diferenciais nesse contexto est Nelson Freire (2003), de Joo
Salles. Trata-se, de fato, de um D documentrio que aposta, para alm da
interao e da conversa, na observao detida de situaes reais, a exemplo de
outros documentrios de Salles: tanto aqueles realizados para a televiso a
srie Futebol, em parceria com Arthur Fontes, e Santa Cruz (2000), um dos
programas da srie 6 histrias brasileiras, codirigido com Marcos S Corra
, como para o cinema Nelson Freire e Entreatos (2004).
Opo tambm presente, de formas variadas, em O chamado de Deus
(2000), de Jos Joffily, Fala tu (2004), de Guilherme Coelho, Justia (2004),
de Maria Augusta Ramos, O crcere e a rua (2004), de Liliana Sulzbach, A
pessoa para o que nasce (2004), de Roberto Berliner, Vocao do poder
(2005), de Eduardo Escorel e Jos Joffily, e Dia de festa (2006), de Toni
Venturi. Justia o nico que segue mais estritamente a linha do cinema de
observao, tambm conhecido como cinema direto: aspira invisibilidade da
filmagem, registrando indivduos reais como se a equipe no estivesse
presente, retirando, na montagem, qualquer indcio de uma interao mais
evidente com os personagens. De qualquer modo, todos eles se atm a
trajetrias singulares, recusam tipificaes e resgatam para o documentrio
brasileiro uma dimenso temporal praticamente inexistente nos filmes
baseados apenas em entrevistas. O tempo conta, produz efeitos, provoca
mudanas nas relaes entre cineastas e personagens, transformaes na vida
daqueles que so observados.
Os filmes de Joo Salles se destacam desse conjunto por terem criado
temporalidades raras no documentrio brasileiro atual, associando uma
filmagem que privilegia o plano-sequncia a uma montagem atenta e sensvel
s digresses temporais. Dessa associao surgem filmes cheios de momentos
banais, ordinrios, inessenciais para o decorrer da narrativa. Sequncias onde
nada acontece, a no ser uma durao particular em que o tempo
cronolgico de certa forma suspenso. Momentos entre atos, justamente.
possvel not-los desde o episdio da srie Futebol em torno do ex-jogador
Paulo Csar Caju, construdo com os chamados tempos fracos ou mortos de
uma narrativa: o personagem que no aparece, a programao prevista que
no d certo, as ligaes de celular que no se completam, as pessoas que no
reconhecem o ex-craque. contudo em Nelson Freire, seu primeiro filme para
a sala de cinema, que Salles chega a um amadurecimento dessa opo. No que
os grandes atos do pianista no estejam l Nelson Freire toca inclusive
msicas inteiras , mas a montagem prioriza silncios, hesitaes, esperas,
pequenos gestos, atitudes discretas, reaes sutis. Salles filma Nelson Freire ao
longo de dois anos; na montagem, no segue a cronologia da filmagem, como
acontece na maior parte dos seus filmes realizados a partir de uma
metodologia de observao; rene situaes que se repetem nos diversos
concertos que Freire faz em cidades espalhadas pelo mundo. Momentos que
expressam a solido, constatada e assumida pelo pianista, de um cotidiano
intenso. Ao mesmo tempo, notvel a intimidade que Salles consegue
registrar nas belas sequncias do pianista na casa da amiga e tambm pianista
Martha Argerich. So imagens marcadas por uma certa instabilidade, em
funo da cmera no ombro, que produz uma subjetividade e uma
proximidade maior do diretor e da equipe com os que esto sendo filmados.
Associando planos-sequncias e montagem sensvel s digresses temporais, os filmes de Joo Salles
criam temporalidades raras no documentrio brasileiro de hoje. Nelson Freire registra os grandes atos
do pianista, mas prioriza pequenos gestos, esperas. Abaixo, o diretor e o protagonista com a pianista
Martha Argerich, tambm presente no filme.
Nelson Freire um personagem muito pouco miditico: tmido, fala pouco,
e menos ainda sobre sua vida. Esse outro aspecto importante no cinema de
Joo Salles: deixar claro que os indivduos filmados no precisam ser,
necessariamente, bons contadores de histria Lula, claro, representa uma
exceo. O princpio de acompanhar indivduos durante um certo tempo lhes
confere uma existncia cinematogrfica que no se restringe ao que eles
possam eventualmente dizer. E talvez os limites de uma interao mais direta
com os personagens, na obra do cineasta como um todo, tenham tido como
contrapartida uma intensificao da ateno ao mundo: seus filmes exibem
uma capacidade de observao incomum no documentrio brasileiro.
Em Entreatos, Salles refaz com o ento candidato Lula um percurso
semelhante ao de Richard Leacock e Robert Drew na campanha que elegeria
John F. Kennedy candidato do Partido Democrata Presidncia dos Estados
Unidos, no filme inaugural do cinema direto americano: Primary, de 1960.
Entreatos integrou um projeto indito na produo cinematogrfica brasileira:
foi realizado simultaneamente a Pees, dirigido por Eduardo Coutinho, e
ambos foram lanados ao mesmo tempo, em uma mesma sala de cinema, em
horrios alternados. Pees concentra-se nos operrios do ABC paulista,
companheiros de Lula que haviam participado das grandes greves nessa regio
de So Paulo no final dos anos 70. So filmes em que os diretores retomam,
de maneira geral, as respectivas metodologias de filmagem, com pequenas
alteraes. Salles inclui bem mais a equipe no filme e evita trilha sonora.
Coutinho no se restringe apenas ao presente dos personagens, mas memria
pessoal e coletiva de um determinado grupo social que teve no passado uma
experincia comum. Interage tambm com uma certa memria do
documentrio brasileiro, voltada no final dos anos 70 para as lutas operrias
do ABC.
Vocao do poder, lanado pouco depois dos filmes de Salles e Coutinho,
tambm acompanha uma campanha eleitoral, mas de vereador para a cidade do
Rio de Janeiro personagem menor da poltica, praticamente annimo e sem
interesse miditico. Eduardo Escorel e Jos Joffily filmaram durante sete
meses seis candidatos por diferentes partidos, todos eles tentando uma vaga na
Cmara Municipal pela primeira vez. A escolha dos personagens parece ter
levado em conta a composio de um painel diversificado: um rapper do
subrbio (PV), uma pastora evanglica (PL), um filho de polticos clientelistas
da Zona Oeste (PMDB), um apadrinhado do prefeito Csar Maia (PFL), um
filho de presos polticos (PT) e um representante jovem da classe mdia alta da
Zona Sul (PSDB).
Lula, em Entreatos, de Joo Salles. As conversas mais longas entre a equipe de filmagem e o ento
candidato aconteceram durante os voos, entre os comcios que o presidente fez por todo o Brasil. O filme
integrou um projeto indito na produo cinematogrfica brasileira: foi realizado e lanado
simultaneamente a Pees, de Eduardo Coutinho, sendo exibidos em horrios alternados das mesmas salas
de cinema.
Vocao do poder, de Eduardo Escorel e Jos Joffily, tambm retrata campanhas polticas e deixa ao
espectador a tarefa de estabelecer conexes entre os dados apresentados e a experincia social e poltica
brasileira.
O filme nos coloca frente a frente com variadas maneiras de praticar e dizer
a poltica, deixando entrever o abismo entre candidatos de diferentes estratos
sociais e culturais da sociedade brasileira. O rapper Geleia mal consegue
formular propostas e contrasta com as falas do petista e do tucano, mas na
verdade importam pouco as habilidades lingusticas e a desenvoltura de cada
candidato: o vazio dos discursos parece atingir todos eles j no comeo das
vocaes, e o bom discurso cheio de boas intenes no vale mais do que
o demaggico. Todos se equivalem e o que conta, no final, so as mquinas
eleitorais polticas, clientelistas, religiosas, embora elas tambm possam
falhar.
Entreatos, Pees e Vocao do poder so trs filmes que enfrentam mais
diretamente a poltica, que desvelam, ao menos parcialmente, as circunstncias
e engrenagens do fazer poltico no pas, e que eventualmente poderiam
sugerir interpretaes ou avanar algumas teses sobre o cenrio nacional.
Mas, assim como acontece nos melhores filmes baseados na interao, cabe
aos espectadores a tarefa de estabelecer conexes entre os dados sensveis que
os filmes apresentam e a experincia social e poltica brasileira.
Documentrio e
autorrepresentao
Ainda que nem sempre chegue tela grande do cinema, h na atualidade uma
srie de experimentos (de modo geral A atravs de oficinas de formao
audiovisual*) que tm como objetivo permitir e estimular a elaborao de
representaes de si pelos prprios sujeitos da experincia, aqueles que eram
e so ainda os objetos clssicos dos documentrios convencionais,
indivduos de um modo geral apartados (por sua situao social) dos meios de
produo e difuso de imagens. O longa O prisioneiro da grade de ferro
autorretratos (2003), de Paulo Sacramento, emblemtico desse importante
deslocamento observado na produo contempornea de documentrios. O
filme resultou de uma iniciativa independente que promoveu oficinas de vdeo
com detentos do Carandiru, sete meses antes da imploso do complexo
penitencirio. Seu interesse, portanto, anterior obra acabada, como
enfatiza Leandro Saraiva; j por seu desenho de produo, O prisioneiro
provoca reflexes cruciais para o cinema, em especial para o
documentrio.10
Objetos em potencial de discursos muito externos (dado o grau de
alteridade de sua experincia em relao aos cineastas e espectadores de
classe mdia), alguns dos prisioneiros do Carandiru so envolvidos na
atividade de filmar, tornando-se cineastas aprendizes e cmplices na realizao
do filme. Quase sempre em duplas, eles filmam aspectos do cotidiano no
presdio, realizando os roteiros e planejamentos que fizeram de antemo,
muitas vezes acompanhados de perto pela equipe de filmagem (embora o filme
no evidencie didaticamente todo o processo). So eles que filmam, com
pequenas cmeras digitais, boa parte do material bruto. Com esse gesto, que
garante a possibilidade mesma de uma outra representao (distante dos
clichs ou das representaes estigmatizantes em que os prisioneiros
possivelmente no se reconheceriam), o filme estabelece um convite
afirmao de sujeitos, como escreveu Ismail Xavier. O cinema no vem
apenas registrar a vida reclusa, seus dramas e ameaas, mas tambm se somar
ao que ajuda a inventar o cotidiano, estabelecer uma rotina de prticas
variadas.11 Prticas que aparecem nos registros dos documentaristas-detentos
e que envolvem artesanato, comrcio, msica, religio, drogas,
correspondncias com o exterior. Com seus autorretratos, os detentos
engendram a imagem de um Carandiru mais cotidiano, menos extico e menos
violento do que conceberamos.
possvel identificar nesse projeto algumas semelhanas com a j
mencionada experincia de Aloysio Raulino (diretor de fotografia em O
prisioneiro da grade de ferro). Mas se o gesto inicial parecido com o de
Jardim Nova Bahia, a montagem de O prisioneiro da grade de ferro se distancia
de uma postura que supe uma viso ou olhar do outro livre de influncias. No
filme de Sacramento, no sabemos, de modo geral, quem est filmando, se a
equipe ou os presidirios, e nessa imbricao de pontos de vista que reside
grande parte do interesse e da fora do documentrio. O prisioneiro vai, de
certa maneira, at o fim do processo de dar a voz e a cmera ao outro,
iniciado no cinema documentrio brasileiro nos anos 60, mas nos mostra
justamente os limites desse gesto. Afinal, no h uma verdade essencial do
presdio e dos presos pronta para ser revelada, sempre a mesma, antes e depois
da filmagem. Tudo o que vemos no documentrio se produziu a partir da
interao entre equipe e presidirios, naquele contexto; fruto de um turbilho
de sensaes, sentimentos e predisposies que envolve a todos; expressa um
amontoado de expectativas e no uma suposta autenticidade ou pureza do olhar
do outro. Mais do que uma questo de olhar, literalmente, trata-se de uma
questo de acesso a situaes e territrios, de experincia compartilhada.
O prisioneiro da grade de ferro pode ser visto tambm numa linha de
continuidade em relao a projetos que surgiram na esteira do vdeo popular e
da democratizao das cmeras de vdeo no decorrer dos anos 80 e 90 no
Brasil. O projeto de elaborar de dentro as identidades dos grupos sociais
retratados, em oposio ao estigma, de dar-lhes visibilidade de uma
perspectiva que se prope interna, est presente em muitas iniciativas ligadas
aos movimentos populares. A intensificao do uso dos meios audiovisuais
provocou debates sobre identidade social e tnica de grupos minoritrios, a
ponto de os prprios sujeitos da experincia, o outro das produes
documentais, engendrarem processos de constituio de autorrepresentaes,
geralmente em parceria com associaes e organizaes no governamentais.
Um dos mais interessantes e longevos experimentos o projeto Vdeo nas
Aldeias, hoje relacionado ONG de mesmo nome e primeiramente
desenvolvido no mbito do Centro de Trabalho Indigenista (CTI). A proposta
inicial era oferecer aos ndios instrumentos que lhes permitissem elaborar e
criar suas prprias imagens, convertidas em veculo para troca de informao
e de conhecimento entre as aldeias de diferentes povos. Desde 1998, atravs de
oficinas, o projeto tem formado realizadores indgenas, que assinam seus
prprios documentrios e participam nos processos de formao. Cineastas
que tm praticado, no conjunto, uma espcie de autoetnografia, como
definiu Ivana Bentes, ou autodocumentrio, em que apresentam, de uma
perspectiva interna, suas aldeias, seus rituais, seu cotidiano, sua histria.12
Prinop, meu primeiro contato (2007) vem coroar, num primeiro longa-
metragem com perspectiva de lanamento comercial no cinema, a duradoura
experincia do Vdeo nas Aldeias. Realizado por Mari Corra, uma das
coordenadoras e instrutoras, e Karan Ikpeng, cineasta indgena formado nas
oficinas do projeto, o filme resulta de um processo que, guardadas as
diferenas, pode ser relacionado ao de O prisioneiro da grade de ferro,
envolvendo profissionais de cinema e jovens aprendizes (ou jovens
realizadores) na partilha de uma representao bastante diversa das usuais
(aquelas em que os ndios ocupam o lugar do outro, historicamente
ameaador, extico ou selvagem).
O prisioneiro da grade de ferro: alguns detentos do Carandiru participaram de oficina de vdeo e, com
seus autorretratos, partilharam com a equipe de cinema a produo de uma outra representao sobre a
condio carcerria.
Eis um resumo da histria: em 1964, os ndios ikpeng (conhecidos pelos
brancos como txico) tm o seu primeiro contato com o homem branco,
atravs de uma expedio organizada pelos sertanistas Cludio e Orlando
Vilas Boas, numa regio prxima ao rio Xingu, no Mato Grosso. Ameaados
em seu territrio por invases de garimpeiros, eles so transferidos para o
Parque Indgena do Xingu, onde ainda vivem. Mas alguns dos ikpeng,
sobretudo os mais velhos, sofrem com o exlio, e pleiteiam hoje na Justia a
propriedade de suas terras ancestrais. Relatando-a do ponto de vista dos ndios,
o documentrio inverte os papis e faz de ns, brancos civilizados, o
outro. Pois, como lembra Slvia Caiuby Novaes, quando os cineastas so
ndios, ndios somos ns.13
Para criar essa inverso de perspectivas, o filme se vale da narrao de
histrias, contadas pelos ikpeng cmera de Mari e Karan; da encenao de
episdios do passado, discutidos, ensaiados e reencenados pelos ndios a partir
da visionagem do material filmado (estratgia que recupera aqui notvel
expressividade e fora poltica, na medida em que o primeiro contato jamais
poderia ter sido filmado da perspectiva dos ndios); do uso de um significativo
material de arquivo com registros do primeiro contato, associado, na
montagem, narrao over que l, em primeira pessoa, trechos dos relatos
escritos pelo sertanista Orlando Vilas Boas; alm de imagens do presente da
aldeia ikpeng, comentadas em alguns momentos pela narrao em primeira
pessoa de Karan, codiretor do filme.
Esse desejo de revisitar o passado, de contar a histria recente dos ikpeng e
de seu relacionamento com o outro (o homem branco em particular) de uma
nova perspectiva (discurso que se produz em boa medida na montagem),
soma-se a uma caracterstica marcante nos documentrios dos realizadores
indgenas formados pelas oficinas do Vdeo nas Aldeias: a proximidade entre
quem filma e quem filmado, a intimidade fsica e afetiva entre a cmera e as
cenas, os personagens, os assuntos quer os vdeos registrem rituais, quer
retratem o cotidiano, quer se debrucem sobre a experincia de um personagem
do lugar.
Articuladas as duas frentes, filmagem e montagem, Prinop produz uma
autorrepresentao que nos obriga a fitar a histria indgena e o documentrio
sobre ela de um modo bastante novo.
Notas
* Aqui podemos destacar as Oficinas Kinoforum, projeto itinerante levado a cabo pelo Festival
Internacional de Curtas-Metragens de So Paulo desde 2001, promovendo exibio e realizao de
curtas entre grupos da periferia da capital paulista.
Documentrio e mdia:
confrontos, dilogos
Desde o incio dos anos 90, possvel identificar sinais de uma questo que se
tornou essencial para o documentrio a partir do final da dcada: sua relao
obrigatria, incontornvel, com a mdia, sobretudo com as imagens
produzidas nos programas de televiso, particularmente aquelas do
telejornalismo. Uma relao contraditria, perturbadora, cheia de tenses e
nuances, e presente em vrias etapas, da realizao recepo dos filmes.
Se nos anos posteriores ditadura as imagens televisivas continuaram
mostrando um Brasil harmonioso, rico, branco, saudvel, higienizado, em
imagens estveis, enquadradas, de boa qualidade, coube ao documentrio se
voltar para grupos urbanos at ento praticamente invisveis nesta produo
audiovisual: a populao carcerria, os moradores de rua e de favelas, pivetes
e mendigos, prostitutas, trabalhadores do lixo.14 Mas a partir do final dos anos
80, um dado novo modifica o panorama televisivo: temas como violncia
urbana, pobreza e excluso ganham visibilidade, passando a fazer parte de
certa produo jornalstica e a interessar um pblico cada vez maior. O
programa Aqui agora, que foi ao ar pela primeira vez pelo SBT em 1991,
inaugura um estilo de reportagem que far escola para o sensacionalismo
televisivo, em franca oposio esttica clssica do jornalismo da TV Globo.
O programa exibe a vida como ela nas favelas e periferias pobres da
cidade de So Paulo, atravs de longos planos-sequncias tremidos, com
narraes feitas ao vivo pelos prprios reprteres, repletos de sujeiras que
eram, at ento, mantidas fora do ar. Elementos estticos do Cinema Verdade
dos anos 60 cmera na mo e som direto so reciclados e associados a um
tipo de jornalismo que faz da misria espetculo miditico,15 mas que permite
eventualmente vislumbrar imagens de um Brasil que no aparecia na TV. Em
consequncia, mesmo a TV Globo foi obrigada a incorporar gradualmente,
ainda que domesticando, imagens de baixa qualidade, imprimindo realidade
assepsia esttica que dominava o jornalismo da emissora.
Entre os anos 60 e 90, samos definitivamente de uma cultura
cinematogrfica, utpica e modernista para uma cultura de massa televisiva,
como nos lembra Ivana Bentes.16 Uma cultura audiovisual que nos forma e
constitui, fornecendo vises de mundo, modelos de ao, normas de conduta,
formas de expresso, vocabulrio, atitudes e posturas corporais. No se trata,
porm, de uma formao que necessariamente domina e aliena, mas de um
processo heterogneo, paradoxal, incompleto, em que a negociao
permanente.
Ao mesmo tempo, com a deteriorao das formas de representao poltica
e de reconhecimento social tradicionais, a imagem televisiva se tornou um dos
meios mais potentes de legitimao, onde basta aparecer para existir. Esses
dois aspectos centrais da cultura miditica contempornea instrumento de
formao e de reconhecimento , produzem situaes inslitas, como se v em
muitos documentrios recentes. Indivduos desprovidos de uma educao mais
formal revelam conscincia notvel a respeito de sua imagem pblica, exibem
sabedoria intuitiva do que pode funcionar em uma entrevista, s vezes
captam na pergunta os aspectos implcitos que apontam para a resposta certa,
de modo a conquistar segundos de visibilidade. Esse estado de coisas deve ser
levado em conta especialmente por aqueles que constroem seus filmes a
partir da palavra do outro, sob pena de imprimirem, sem o saber, maior
existncia social e mais crdito a pensamentos e emoes que tm origem nos
prprios clichs que a televiso faz circular.
Em Babilnia 2000, filme de Eduardo Coutinho realizado no morro da
Babilnia no ltimo dia de 1999, um pequeno dilogo com uma personagem
chamada Roseli exemplar de como essa conscincia, quando revelada, pode
ser rica para o filme. Deixe eu me arrumar, mudar o visual, diz ela, quando a
equipe aparece. No, assim est timo, responde o diretor. Roseli, rindo:
Ah, voc quer pobreza mesmo? E ele: No, isso no pobreza. Roseli:
Sei, sei, comunidade, n? Roseli sabe tudo, sabe o que pode interessar
pobre bem-arrumadinho, pobreza mesmo ou vida em comunidade , mas
no se submete a esses clichs, os assimila e reorganiza com grande
criatividade.
Filmar hoje , portanto, entrar em um turbilho de imagens, imiscuir-se no
fluxo miditico de representaes, confrontar-se com essa espcie de meio
ambiente contemporneo. o que percebem Jos Padilha e Felipe Lacerda ao
realizar nibus 174, filme que aborda o sequestro de um nibus na Zona Sul
do Rio de Janeiro em uma tarde de junho de 2000, que mobilizou o pas
inteiro por ter sido transmitido ao vivo durante cinco horas. Um sequestro que
terminou em tragdia: a refm Gesa Firmo Gonalves assassinada diante das
cmeras e o sequestrador Sandro do Nascimento asfixiado pela polcia no
trajeto at a delegacia.
Roseli, personagem de Babilnia 2000, de Eduardo Coutinho, sabe intuitivamente as imagens da favela
desejadas pela mdia.
Padilha e Lacerda partem do material filmado pelas televises, realizam
uma srie de entrevistas e investigaes e recuperam a trajetria do
sequestrador do 174. O filme no inocenta o jovem bandido, mas realiza um
trabalho que a imprensa deveria fazer e no faz: amplia as conexes possveis
entre diferentes acontecimentos, complexifica a situao inicial e nos faz ver o
quanto esse sequestro est inextricavelmente ligado tragdia social brasileira.
Uma primeira grande qualidade do filme, portanto, extrair do fluxo de
informaes televisivas um acontecimento j esmaecido na nossa memria, e
nos obrigar, de algum modo, reflexo. Contudo, o maior interesse dele
talvez resida na exposio pormenorizada de como a mdia hoje organiza os
acontecimentos do interior eles j eclodem dentro de uma lgica
miditica, que captura simultaneamente todos os envolvidos. No sequestro do
nibus 174, policiais, refns e sequestrador parecem viver, interpretar e
simular diante das cmeras de TV, tudo ao mesmo tempo, como se fosse uma
reao imediata, orgnica, sensrio-motora. Sofrem e simulam a dor que
efetivamente sentem, ameaam e simulam ameaar, matam e simulam matar.
Isso no um filme de ao, no. srio: o sequestrador Sandro ameaando e simulando ameaar, em
nibus 174.
Entre todas as alteraes produzidas pela transmisso ao vivo das cmeras
de televiso, a mais impactante a performance de Sandro, e o filme nos
mostra todas as etapas dessa teatralizao do mal. A partir do instante em que
se d conta do espetculo que protagoniza, e intuindo o desfecho, Sandro
piora a sua atuao. Encena a morte de uma das refns e pede a elas para
representarem com mais realismo o estado de desespero em que se encontram.
Apropria-se da imagem de bandido ensandecido inspirado no cinema e, como
lembra Esther Hamburguer,17 grita atravs da janela, no para os que
estavam ali do lado de fora do nibus, mas para os milhes de
telespectadores que acompanham ao vivo os desdobramentos de sua arriscada
operao: Isso no um filme de ao, no. srio. Sandro sabe que foi
esse papel de algoz que lhe restou para ser reconhecido socialmente, e no
hesita em desempenh-lo at o fim.
Em Edifcio Master (2002), Eduardo Coutinho se depara com um novo tipo
de efeito da mdia no campo social. Trata-se de um filme realizado com os
moradores de um prdio de conjugados de Copacabana, em que a economia
narrativa foi ao extremo do processo iniciado em Santo forte. No h um som
que no seja sincrnico imagem; nenhuma voz, murmrio, nenhuma msica
ou assobio que passe de um plano a outro; se h um corte na imagem, h
inexoravelmente um corte no som. o filme de Coutinho que mais sucesso fez
desde Cabra marcado para morrer, atingindo um pblico de aproximadamente
85 mil espectadores. Edifcio Master marca uma mudana de horizonte social
na produo do cineasta, reunindo personagens pertencentes s camadas
mdias da populao, universo pouco explorado pelo documentrio brasileiro
em geral.
O deslocamento de campo social trouxe para o cinema de Coutinho, entre
outras mudanas, uma transformao especfica na relao com as imagens
miditicas. Com os moradores do Master, as dificuldades surgiram
particularmente do embate com os chamados reality shows e os programas
sensacionalistas e de variedades, cuja lgica dominante a exposio da
intimidade. As existncias banais que se acumulam no Master, desprezadas
pelo telejornalismo, encontram alguma possibilidade de reconhecimento
nesses outros programas. Houve momentos nos quais foi preciso defender o
entrevistado dele mesmo, em que a lgica do pior se imps, e o que se ouviu
foi a pior histria, a maior desgraa, a grande humilhao. Porque o desejo
dos moradores, em muitos casos, o de escapar do isolamento, ganhar
visibilidade a qualquer preo. O confronto com esse tipo de exibicionismo,
indissocivel do voyeurismo do espectador, incontornvel e transformou-se
hoje em imperativo para o documentrio. Desprogramar o que estava
previsto, produzir furos nos roteiros preestabelecidos, se ocupar do que ficou
de fora dos espetculos de telerrealidade, como escreve Jean-Louis Comolli18
tarefas que se impuseram como programa mnimo desse documentrio de
Coutinho.
Em termos de abordagem, o que podemos identificar na maioria dos filmes
citados at este ponto do livro , primeiramente, uma tendncia
particularizao do enfoque: ao invs de almejarem grandes snteses, anlises
ou interpretaes de situaes sociais mais amplas, os documentrios buscam
seus temas atravs do recorte mnimo, abordando experincias e expresses
estritamente individuais.* As composies so variadas, mas h, de todo modo,
uma valorizao da subjetividade do homem comum. Muitos filmes se
relacionam com experincias socialmente demarcadas (moradores de uma
localidade, por exemplo), evitando o ensaio que poderia, a partir de
caractersticas transversais ou generalizaes, relacionar tais experincias
quelas de outros indivduos ou grupos, pela via da interpretao ou do
diagnstico.
As experincias so, de um modo geral, tratadas como irredutveis. Nem
tpicas, nem exemplares, tampouco extraordinrias. Ao contrrio: nicas,
singulares. O valor, aparentemente, est no registro e no trato respeitoso
com elas, expondo suas particularidades e no no olho que v mais longe,
relacionando-as conjuntura e a outras experincias, ou estrutura social,
com suas potencialidades e problemas. So raros tanto os trabalhos que
buscam explicaes previamente estabelecidas, como era frequente nos
documentrios dos anos 60, quanto os filmes investigativos que constroem e
expem interpretaes a partir do desenrolar de um processo ou percurso
Notcias de uma guerra particular e nibus 174 aparecem como excees.
Como bem observou em entrevista Ismail Xavier:
A vontade agora explorar mais os sujeitos no que tm de singular.
Evitam-se generalizaes, a busca dos porqus. Concentra-se na
apresentao de um inventrio dos imaginrios enfim outra
fenomenologia mais regrada sem se deter no problema da relao entre
eles e as condies materiais de existncia, sem saltos da experincia
imediata para suas implicaes sociais e polticas.19
Notas
* Karla Holanda indica uma tendncia particularizao do enfoque no documentrio contemporneo
brasileiro em seu artigo Documentrio brasileiro contemporneo e a micro-histria (2004 ) tendncia
que ela compara metodologia da micro-histria, em oposio s macroanlises, no campo de estudo da
histria. Evitando estruturar seu discurso na forma do diagnstico, a micro-histria buscaria seus temas a
partir da abordagem de situaes singulares, indivduos ou pequenos grupos.
Documentrio subjetivo
e ensaio flmico
Mesmo que operem significativos deslocamentos formais e de abordagem, os
documentrios contemporneos brasileiros mantm uma linha de continuidade
em relao produo moderna: a focalizao privilegiada da experincia do
outro de classe. Dois filmes contemporneos, contudo, rompem com essa
premissa: Um passaporte hngaro (2002), de Sandra Kogut, e 33 (2003), de
Kiko Goifman. Neles, o motivo da realizao do documentrio deixa de ser a
alteridade clssica para se relacionar a aspectos da experincia pessoal e da
subjetividade dos prprios realizadores. Nos dois filmes, os diretores
interagem com personagens e situaes como sujeitos interessados,
protagonistas de um processo de busca pessoal a tentativa de obteno do
documento de nacionalidade por Sandra Kogut (neta de hngaros) e a procura
da me biolgica por Kiko Goifman (filho adotivo). Em 33, inclusive, a voz
de Goifman conduz a narrao, em primeira pessoa.
Logo, possvel destacar nos dois documentrios traos comuns bastante
inovadores em oposio ao sistema de entrevistas. Em primeiro lugar, no
se trata de abordar situaes ou objetos estveis, preexistentes, como de praxe
nos documentrios tradicionais, mas de estabelecer um ponto de partida,
sem saber o que vir a seguir, como notou Jean-Claude Bernardet: O
documentarista determina um projeto, sabe de onde parte, sabe o que gostaria
de alcanar, mas no pode prever os resultados a que chegar nem o percurso
que ter de cumprir.20 As entrevistas esto presentes, mas tm seu uso
deslocado e no reproduzem a tradicional dicotomia sujeito-objeto: so
instrumento para obteno de informaes no processo concreto de pesquisa e
busca empreendido pelos realizadores.
Os dois filmes permitem abordar outro aspecto crucial do debate sobre o
documentrio contemporaneamente: suas fronteiras com a fico narrativa.
Pergunta Bernardet: os realizadores, tal como aparecem em Um passaporte
hngaro e 33, seriam pessoas ou personagens? O crtico aposta num hbrido,
pessoa-personagem: no se trataria apenas de filmes em primeira pessoa,
mas de filmes nos quais a pessoa do realizador se funde numa espcie de
personagem que protagoniza a busca. Sandra Kogut relatou ao crtico que,
no processo burocrtico de obteno do passaporte, chegou a repetir a alguns
interlocutores, filmando, perguntas cujas respostas j conhecia de antemo;
agiu assim porque precisava daquelas informaes no filme, no percurso da
personagem (embora j as conhecesse como diretora): Essas pessoas-
personagens obedecem a uma construo dramtica. Os personagens tm
objetivos, enfrentam obstculos, alcanam seus objetivos ou no, exatamente
como nos filmes de fico.21 Interessante notar que as histrias vividas pelas
pessoas-personagens no preexistem filmagem, mas so produzidas por um
agir do documentarista; os realizadores devem, portanto, viver uma histria
(sendo dela personagens), para cont-la (como cineastas).
Outro aspecto relevante diz respeito ao alcance histrico e poltico desses
documentrios subjetivos. Se 33 parece bastante restrito busca pessoal, Um
passaporte hngaro tem maior ressonncia. O filme contm dois eixos
temporais bastante claros: o primeiro deles, seu fio condutor, liga-se ao
presente da cineasta e se expressa nas negociaes em torno do passaporte; o
outro eixo ligado memria, individual e coletiva, e emerge particularmente
nas conversas da diretora com a av, que mora no Rio de Janeiro, e com um
casal de parentes, residente em Budapeste. O que poderia parecer apenas um
filme feito em famlia ganha, logo de sada, uma outra dimenso. Elementos
da vida pessoal da diretora se articulam entre si e, ao mesmo tempo,
atualidade e histria da Segunda Guerra Mundial. Uma conexo se estabelece
entre essa histria privada e uma espcie de histria do mundo. H uma
comunicao constante entre o que do domnio privado e o que do domnio
pblico, marcando a diferena desse documentrio em relao exposio da
vida privada a que assistimos diariamente na televiso, que muitas vezes se
esgota na exibio da intimidade.
Um passaporte hngaro: a av da cineasta Sandra Kogut e o passaporte que ela utilizou para fugir para o
Brasil. a experincia pessoal da diretora que motiva a realizao do documentrio o que altera sua
relao com o assunto abordado e obriga a repensar as fronteiras com a fico narrativa: a cineasta
pessoa ou personagem?
Rocha que voa (2002), de Eryk Rocha, vencedor do festival Tudo
Verdade em 2002, tambm poderia ser definido como um documentrio
subjetivo, j que um filme em torno de Glauber Rocha, pai do realizador.
Mas a inflexo subjetiva do documentrio est mais relacionada a um gesto
pessoal na forma de filmar e montar do que tematizao da relao de Eryk
com o pai, de quem na verdade pouco se lembra, visto que Glauber morreu
quando o filho tinha apenas trs anos. um filme que retoma, de certo modo, a
postura ensastica de Di/Glauber e intensifica a mistura, a montagem, a
colagem, que agora abarca diferentes suportes, desde o uso de cmeras de
cinema e vdeo a diferentes pelculas e formatos de fitas (35 e 16mm,
analgico e digital). Cruzamentos estticos, tcnicos, temporais, e tambm de
campos artsticos, do cinema e da videoarte, contribuem para que Rocha que
voa permita dilogos entre as falas arrebatadoras e inquietas de Glauber
Rocha, encharcadas do contexto poltico do incio dos anos 70, e o que
acontece hoje no mundo, no Brasil e no campo do audiovisual. Imagens com
cores distorcidas, sobreposies, fuses e inscries grficas associam-se de
forma inesperada ao fluxo verbal de um personagem da cultura brasileira para
quem a vida pessoal era imediatamente pblica e coletiva.
Outro trabalho bastante singular de difcil posicionamento num quadro
mais geral do documentrio brasileiro hoje 500 Almas (2004), de Joel
Pizzini. Nele, a temtica do outro recobra inesperada fora e ressonncia.
No se trata de uma autorrepresentao feita pelos ndios, tampouco de um
documentrio nostlgico em torno do outro em desaparecimento, mas de um
ensaio que expe tenses e paradoxos de uma cultura em movimento, distante
de purismos ou ideias preconcebidas. 500 Almas mostra o processo de
reconstruo e reinveno da memria e identidade de um povo indgena
considerado extinto nos anos 60, atravs do trabalho de recuperao gradual
de uma lngua que quase ningum mais falava.
O cineasta coloca diferentes elementos em relao, confronto ou dilogo,
sem que nenhum deles tenha preponderncia sobre o outro. O documentrio
mescla imagens filmadas nos locais onde moram os guats com depoimentos
dos ndios, mas tambm de missionrios, antroplogos, linguistas, poetas.
Somam-se trechos encenados, imagens do museu de antropologia onde esto
preservados materiais sobre os ndios, gravuras e cenas de filmes antigos;
tudo montado de forma a dar ritmo e coeso ao mosaico de fragmentos que
constitui o filme, num processo anlogo ao da reconstituio da prpria nao
guat, como bem identificou Jos Geraldo Couto. 22 A trilha sonora do filme
inspira-se no mesmo princpio, misturando em muitas sequncias discursos
variados em lnguas distintas (portugus, alemo, francs, guat), sem que
nenhum deles seja legendado ou adquira maior legitimidade do que o outro. O
conjunto forma um fluxo audiovisual complexo e rico, que deixa explcitas as
dificuldades de ser ndio, mas tambm de no ser, sugerindo existncias
possveis nos interstcios das culturas.
Pizzini aprofunda nesse primeiro longa-metragem um tipo de abordagem
ensastica j experimentada em curtas anteriores, como Glauces estudo de um
rosto (2001), feito a partir de imagens dos filmes em que a atriz Glauce Rocha
atuou. O que chamamos aqui de ensaio flmico remete a uma forma hbrida,
sem regras nem definio exata, mas que articula modos de abordagem e
composio variados, objetos e discursos heterogneos. Essa dimenso
ensastica notvel em filmes dos anos 80 como Mato eles? (1982), de Sergio
Bianchi, e Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado se faz presente na
produo contempornea (nem sempre com o mesmo recurso ironia na
abordagem de temticas sociais). Santiago, de Joo Moreira Salles, abordado
mais adiante, outro exemplo maior. O que aproxima filmes to dspares
como Rocha que voa, 500 Almas e Santiago o fato de serem produzidos a
partir da conexo de material heterogneo, de estabelecer ecos entre imagens,
sons e acontecimentos, sem interpretaes totalizantes. Filmes que partem do
princpio de que a imagem um dado a ser trabalhado e relacionado com
outras imagens e sons, e no mera ilustrao de um real preexistente.
Dispositivos documentais,
dispositivos artsticos
Um passaporte hngaro e 33 introduzem mais diretamente o debate sobre
dispositivo no documentrio contemporneo brasileiro embora o termo j
viesse sendo utilizado a respeito da obra de Coutinho, desde Santo forte.* A
noo remete criao, pelo realizador, de um artifcio ou protocolo produtor
de situaes a serem filmadas o que nega diretamente a ideia de
documentrio como obra que apreende a essncia de uma temtica ou de
uma realidade fixa e preexistente. Como nos filmes de Goifman e Kogut,
teramos, nos filmes de dispositivo, a criao de uma maquinao, de uma
lgica, de um pensamento, que institui condies, regras, limites para que o
filme acontea.23 Em ambos os casos, as aes concretas de busca propostas e
empreendidas pelos realizadores (da me biolgica, do passaporte) impem
restries de ordem temporal ao dispositivo: 33 dias (artifcio relacionado a
sua idade e criado por Goifman para limitar o tempo de realizao e de
procura da me); o tempo de obteno do passaporte, imposto pelos trmites
burocrticos, no caso de Kogut. No se trata, porm, de um procedimento
produtor que gera efeitos semelhantes em todo filme, mas que criado a cada
obra, imanente, contingente s circunstncias de filmagem, e submetido s
presses do real. A simples adoo de um dispositivo no garante, em suma, o
sucesso de um filme; tudo depende de sua adequao ao assunto eleito, mas
sobretudo do trabalho concreto de filmagem, que a maquinao anterior no
dispensa.
Trata-se de um uso da noo de dispositivo que pode ser associado ao
pensamento do crtico e cineasta Jean-Louis Comolli. Para ele, diante da
crescente roteirizao das relaes sociais e intersubjetivas, dos roteiros
que se instalam em todo lugar para agir (e pensar) em nosso lugar, parte da
produo documental teria a possibilidade de inventar pequenos dispositivos
de escritura para se ocupar do que resta, do que sobra, do que no interessa s
verses fechadas do mundo que a mdia nos oferece. Ao contrrio dos roteiros
que temem o que neles provoca fissuras e afastam o que acidental e aleatrio,
os dispositivos documentais extrairiam da precariedade, da incerteza e do
risco de no se realizarem sua vitalidade e condio de inveno.24
33 dias porque tenho 33 anos: por mais arbitrrio que o dispositivo de
Kiko Goifman possa parecer, ele revela, sem meias palavras, a arbitrariedade
presente em todo e qualquer filme-dispositivo, com mais ou menos fora,
mais ou menos sutileza. No h qualquer fundamento lgico para esse
nmero de dias. Da mesma maneira, no nada natural que uma brasileira
tire um passaporte hngaro em Paris, j que no Brasil seria muito mais fcil,
mas provavelmente no daria filme. tambm da ordem do artifcio produzir
encontros para serem filmados ou seguir personagens durante dois anos. Por
que no seis meses? Por que esses personagens e no outros? Ora, porque
documentrios no brotam do corao do real, espontneos, naturais,
recheados de pessoas e situaes autnticas; so, sim, gerados pelo mais
puro artifcio, na acepo literal da palavra: processo ou meio atravs do
qual se obtm um artefato ou um objeto artstico, segundo o Dicionrio
Aurlio.
A emergncia do documentrio de dispositivo no cinema brasileiro recente,
prenunciada por Santo forte e evidenciada pelos filmes de busca aqui
descritos, teve sequncia no decorrer dos anos 2000. A interseo com
referncias e trajetrias vindas da videoarte e das artes plsticas parece
estimular a aposta em filmes propositivos, que criam protocolos, regras e
parmetros restritivos para lidar com a realidade. Obras que se renovam a
partir de estratgias extradas da arte contempornea e que propiciam outras
maneiras de se relacionar com imagens em movimento, redefinindo
temporalidade, espao, narrativa e impondo modificaes interao do
espectador.
Um filme fundamental nesse percurso de incorporao do dispositivo
tradio documental Rua de mo dupla (2004), do cineasta mineiro Cao
Guimares. O filme, concebido inicialmente como videoinstalao para a 25
Bienal de So Paulo, resulta de um dispositivo de filmagem organizado pelo
diretor, cujas linhas centrais so explicitadas j nas primeiras imagens.
Guimares convidou seis pessoas pertencentes s camadas mdias da
populao, moradores solitrios de Belo Horizonte, a participar de uma
experincia inusitada: divididos em duplas, eles trocariam de casa por 24
horas e, munidos de uma pequena cmera digital, filmariam o que bem lhes
aprouvesse em casa alheia, tentando elaborar uma imagem mental do(a)
outro(a) atravs da convivncia com seus objetos pessoais e seu universo
domiciliar.25 Ao final, dariam um depoimento para a cmera, contando como
imaginaram esse outro. Trata-se de uma maquinao que implica a ausncia
de controle do diretor sobre o material filmado, propiciando uma espcie de
retirada esttica no propriamente do filme afinal o dispositivo dele,
assim como a montagem , mas das imagens e sons que seu filme vai conter,
atribuindo a seis outros indivduos a tarefa de filmar e se autodirigir.
Cao Guimares imprime nesse filme um curioso deslocamento em relao
s querelas em torno da voz do outro que perpassam a histria do
documentrio, atravs de um gesto primeira vista pequeno: altera a direo
do que se solicita aos personagens em grande parte dos documentrios
baseados em conversas. No quer que eles se voltem para si, que falem de suas
vidas, que se revelem para a cmera; pede, antes, que falem de pessoas
desconhecidas e filmem casas alheias. O resultado surpreendente: o que mais
chama ateno ao longo do filme a carga de exposio de si contida em
imagens e depoimentos teoricamente sobre os outros mas de vis,
indiretamente, quando menos se espera.
Rua de mo dupla, de Cao Guimares: documentrio de dispositivo. A tela dividida ao meio permite ao
espectador acesso simultneo s imagens e sons de ambos os integrantes de cada dupla de personagens.
No final do filme, assistimos ao depoimento do poeta e, ao mesmo tempo, pessoa descrita a escritora
olhando em direo cmera, como se tambm fosse espectadora do seu retrato falado.
Acidente (2006), de Cao Guimares e Pablo Lobato, trabalho realizado no
contexto do programa DOCTV** (e posteriormente ampliado para 35mm
numa verso mais longa para o cinema), tambm resultou da criao de um
dispositivo. O documentrio no parte de um tema, assunto ou situao
concreta preexistente, mas da criao de um poema composto a partir de
nomes de 20 cidades mineiras nomes selecionados na internet, sem qualquer
conhecimento prvio dos cineastas a respeito das cidades. As estrofes do
poema forneceram o mapa para a viagem de realizao. Na ausncia de
temtica anterior ou questo norteadora, o dispositivo coloca uma espcie de
aleatoriedade desejada (ou acidente programado), na escolha e aproximao
das cidades visitadas.
O dispositivo-poema adquire, assim, um certo poder sobre os cineastas.
Decide por eles onde vo filmar; retira deles o direito de recusar uma cidade
caso no gostassem dela, porque a o poema deixaria de funcionar. Reduz o
excesso de intencionalidade. Por outro lado, a partir dessa imposio inicial,
ele pouco obriga, para alm da visita a cada cidade do poema em cada lugar,
os realizadores esto livres para eleger assuntos, motivos, abordagens,
movimentos. Talvez por isso, relacionados a esta imensa liberdade produzida
pela ausncia de temtica norteadora, o privilgio a valores plsticos e de
composio (na imagem) e uma certa gratuidade na escolha de assuntos e
objetos.
Em Acidente, cada cidade corresponde a uma sequncia, a uma pea
independente; em cada uma delas, diferentes objetos e situaes, distintas
formas de abordagem e de composio, diferentes duraes. Os pequenos
ensaios no procuram informar, fornecer dados objetivos ou estabelecer
comparaes entre as cidades. O que parece importar, em todos os lugares,
propor ateno a insignificncias que adquirem, pelo olhar da cmera,
inesperado valor esttico, ldico ou afetivo uma rua molhada pela chuva e
iluminada por troves e faris de carros, microeventos em um bar decadente
onde se passa um dia e quase nada acontece, uma divertida procisso infantil e
encenao da Paixo durante a Semana Santa etc. A tnica em Acidente parece
ser o investimento incondicional na superfcie do cotidiano, com o que ele
carrega de aleatrio, e o desejo de atribuir valor esttico ao insignificante,
pequeno, banal, irrelevante e corriqueiro. Assim procedendo, o filme aposta
na ampliao das possibilidades de interesse do documentrio, geralmente
fadado relevncia e objetividade temticas. Trata-se de um documentrio
em que a dimenso propositiva do dispositivo se mistura a uma dimenso mais
plstica, contemplativa e formal, quase sempre materializada em longos
planos estticos, recortes fotogrficos acrescidos de dimenso temporal.
Acidente, de Cao Guimares e Pablo Lobato, parte da escolha aleatria de 20 cidades mineiras a visitar,
reduzindo o excesso de intencionalidade. A cada cidade corresponde uma sequncia, em que os diretores
transformam pequenos acontecimentos do cotidiano em objetos de interesse esttico.
Notas
* Coutinho utiliza tambm o termo priso para caracterizar o conjunto de regras autoimpostas que
delimitam o processo de realizao de seus documentrios. No seu caso, pelo menos at Edifcio Master,
o dispositivo central de ordem espacial: filmar numa nica locao, o que lhe permite evitar a imposio
de critrios de tipicidade escolha dos entrevistados, bem como de ideias preconcebidas realidade
filmada.
** O DOCTV, Programa de Fomento Produo e Teledifuso do Documentrio Brasileiro, levado a
cabo por Secretaria do Audiovisual do Ministrio da Cultura, Fundao Padre Anchieta/TV Cultura e
Associao Brasileira das Emissoras Pblicas, Educativas e Culturais (Abepec), representa um esforo
indito na histria do audiovisual brasileiro de relacionamento continuado entre a TV aberta e a produo
independente. Tem viabilizado a produo regional de documentrios (em 27 estados) e sua veiculao em
rede nacional, horrio nobre, sem a obedincia a modelos ou formatos prvios (afora o padro de
durao, de 52 minutos, divididos em trs blocos, e o tempo para realizao, de 150 dias). At o momento
foram produzidos 114 documentrios, alguns com resultados estticos muito significativos. A poltica
pblica criada pelo programa no Brasil tornou-se modelo e teve como desdobramento o projeto do
DOCTV Ibero-Amrica, que produziu e veiculou documentrios em 13 pases, na sua primeira edio.
Dispositivos e novas formas
audiovisuais
A busca de uma dimenso mais plstica e uma certa ateno aos parmetros da
imagem (em especial s texturas, A cores, formatos de captao) so traos
marcantes em parte da recente produo mineira, na qual se notam
cruzamentos com a videoarte e com as artes plsticas.26 Elas se somam a um
desejo de conhecimento e apreenso da experincia do outro, mais prpria
tradio do documentrio (atualizada anualmente na capital do estado pelo
forumdoc.bh Festival do Filme Documentrio e Etnogrfico de Belo
Horizonte, realizado desde 1997). Tanto O fim do sem fim (Beto Magalhes,
Cao Guimares e Lucas Bambozzi, 2001) e Do outro lado do rio (Lucas
Bambozzi, 2004) quanto A alma do osso (Cao Guimares, 2004), Aboio
(Marlia Rocha, 2005), Trecho (Clarissa Campolina e Helvcio Marins Jr.,
2006) e Andarilho (Cao Guimares, 2006) parecem se produzir na
encruzilhada desses dois movimentos, tendncias ou desejos: a experimentao
formal e de linguagem (em convergncia com procedimentos das artes
contemporneas) e os desafios postos pelo relacionamento com o outro
(mais prprios tradio documental).
Aboio, melhor documentrio brasileiro no festival Tudo Verdade em
2005, equilibra bem os dois movimentos. diferena dos filmes de
dispositivo de que tratamos aqui, parte de um tema: o canto do aboio, usado
por vaqueiros de certas regies do pas para tanger o gado, o motivo que
orienta uma viagem aos sertes de Minas, Bahia e Pernambuco. Em Aboio,
determinante o encontro com os vaqueiros, suas histrias, gestos e
performances, o relacionamento da equipe com os personagens reais, de quem
o filme depende fortemente para se realizar. H uso abundante das narrativas e
cantos, mas eles nem sempre so montados segundo o sistema de entrevistas
muitas vezes, correspondem parte sonora de ensaios audiovisuais que no
se limitam cena do depoimento, trabalhando com vigor imagens do
ambiente. Nota-se uma tnica de explorao de detalhes, de perscrutar as
localidades como textura, para alm da contextualizao mais naturalista e do
plano geral fixo. Valendo-se, entre outros procedimentos, de travellings no
meio da caatinga, entre troncos e galhos secos, no ritmo do cavalo e na
cadncia de quem v de dentro, Marlia Rocha cria uma paisagem
transfigurada, subjetivada, vivida. A busca de formas plasticamente
interessantes se relaciona, portanto, a um esforo de apresentar o ambiente
como experincia; de criar uma paisagem de acordo com a vivncia e o
imaginrio dos vaqueiros.
Em Aboio, Marlia Rocha procura apresentar o ambiente natural tal como experimentado por seus
personagens: uso de travellings na caatinga, no ritmo do cavalo, para recriar a paisagem de acordo com a
vivncia e o imaginrio dos vaqueiros.
Andarilho, filme mais recente de Cao Guimares, cuja exibio abriu a 27
Bienal de So Paulo (2006), tambm parece almejar uma representao
contaminada, no plano da imagem, pela perspectiva de seus personagens:
trs andarilhos que perambulam por estradas brasileiras. O filme opera uma
radicalizao de procedimentos j presentes em O fim do sem fim, A alma do
osso e Acidente, com a presena marcante de longos e fixos planos-sequncias,
enquadramentos fotogrficos precisos nos quais se insufla tempo. Atravs
deles, Cao extrai das estradas onde vagam os andarilhos efetivas vises:
imagens explicitamente objetivas capturadas com a cmera fixa em um trip
transformam-se pouco a pouco, ganhando uma estranha subjetividade, a
ponto de adquirirem um carter alucinatrio que dissolve distines. Objetivo
e subjetivo, real e imaginrio, fico e documentrio perdem o sentido em
imagens beira da abstrao: caminhes e motos afundando na imagem,
plantas evanescentes, estradas fumegantes, seres em dissoluo.27
Andarilho, de Cao Guimares, tambm busca a perspectiva dos personagens: planos-sequncias longos e
fixos e enquadramentos fotogrficos precisos que aos poucos se transformam, adquirindo uma estranha
subjetividade e um carter alucinatrio.
Esse esforo para se acercar de uma temtica no apenas atravs do discurso
verbal e da interao com os personagens, mas por meio de ensaios
audiovisuais, faz-se notar tambm na produo contempornea do Cear. o
caso de As vilas volantes O verbo contra o vento (Alexandre Veras, 2005),
documentrio realizado na segunda edio do programa DOCTV. Como em
Aboio e Andarilho, no se trata da criao de um dispositivo que deflagra o
processo de realizao, mas de um esforo (a princpio mais tradicional) de
abordar a experincia de um grupo de indivduos, moradores de vilas
pesqueiras cobertas pela areia no litoral noroeste do Cear. Mais do que o
cotidiano, a representao proposta pelo filme sugere uma espcie de
condio existencial: homens e mulheres exilados na natureza, em
permanente adaptao. o que parecem exprimir os longos e belos planos
gerais das dunas e do mar, onde a figura humana aparece como um ponto na
paisagem. As aes humanas, solitrias de um modo geral (a pesca de
mariscos por Dona Bil ou os gestos de construo de um barco imaginrio
por Man Pedro), se dissolvem num mundo coberto pela areia e pelo silncio.
Do passado nas vilas, resta o verbo (a tradio oral), que elabora a memria.
As imagens do mundo, rigorosamente compostas, numa alternncia entre cor e
preto e branco, esto aqui a servio da evocao de uma experincia, de uma
condio: O que era bom foi e nunca mais veio/ S lembrana e saudade
ainda existe, como recita um dos moradores.
Tambm merece meno Uma encruzilhada aprazvel (Ruy Vasconcelos,
2006), realizado na terceira edio do DOCTV no Cear, praticamente pela
mesma equipe de As vilas volantes. O filme explora um movimentado
entroncamento rodovirio no serto norte do Cear e seu entorno (reduzida
priso espacial e espcie de microcosmo) quase exclusivamente atravs de
sons do ambiente e imagens do cotidiano, planos longos com enquadramentos
majoritariamente fixos, que recortam a localidade, decompondo-a em
fragmentos. Aprazvel o nome do lugarejo onde se situa essa encruzilhada.
Lugar de passagem, no de chegada, como expe o filme no letreiro final:
Tomar como destino um ponto de passagem. Encruzilhada. Um pequeno
destino. Mas qual no o ?
No h inteno de apresentar o local atravs de informaes ou
elaboraes verbais. A um nico personagem se dedica mais tempo um
velho senhor, tratado no terceiro bloco atravs de imagens de um cotidiano
mido tomadas em seu pedao de terra, associadas a falas fragmentadas
trabalhadas sobretudo como narrao over. No mais das vezes, entretanto, o
filme explora cenas cotidianas em um posto de gasolina e no entorno. Cada
segmento ou sequncia elege um recorte ou priso espacial, uma moldura
para o olhar: o posto, o cemitrio, a feira urbana. Essa escolha reduz a
apreenso do lugar quilo que se d vista, a uma superfcie visvel que a
cmera capta com pacincia, investindo no mosaico, sem formar com essas
peas, didaticamente, uma imagem de conjunto. Em contraste com os planos
quase sempre fixos e longos das locaes abordadas, h segmentos compostos
de imagens tomadas do interior de caminhes que atravessam a estrada,
sugerindo a perspectiva de quem passa pela localidade, sem experimentar o
seu tempo. Entre pontuaes e pequenas cenas do lugar, aparece um serto em
que convivem velhas tradies rurais e o irresistvel fluxo das mercadorias
(como nas imagens em que cabras e caminhes dividem a estrada); um serto
de passagem, no mais gueto isolado, mas extenso do pas, precariamente
urbanizado, cada vez mais parecido com as periferias das grandes cidades.
Um trao recorrente nos documentrios mencionados nesta seo a
utilizao indireta das falas dos personagens. Nota-se uma tendncia
explorao dos depoimentos como vozes over, sem reproduzir a cena da
entrevista. No plano sonoro, portanto, as falas dos personagens so usadas
como narrao, atravs da montagem de fragmentos de narrativas. No plano
da imagem, temos ensaios visuais que elaboram a experincia dos moradores
das localidades, valendo-se de um corpo a corpo com imagens de ambientes e
do cotidiano, segundo parmetros plsticos de elaborao e composio
(imagens captadas, muitas vezes, em diferentes formatos super-8, digital,
16mm , em cor e preto e branco, sem purismo). Imagem e som no se
subordinam, mas dialogam, sugerindo relaes intrigantes, pouco bvias.
De um modo geral, so filmes que lidam com o som de forma cuidadosa e
enftica. O som direto captado com esmero e utilizado na montagem com
autonomia, sem muito apego sincronia com as imagens. Aboio, As vilas
volantes, Uma encruzilhada aprazvel e Andarilho, entre outros, recriam os
ambientes visitados, na montagem, tambm atravs da trilha sonora,
trabalhando com detalhes, fragmentos de sons, rudos.28 Em alguns casos,
no apenas evita-se a palavra, substituindo-a por uma atmosfera sonora,
como evita-se o sentido, conforme escreveu Clber Eduardo sobre Uma
encruzilhada aprazvel.29
No mpeto experimentalista, buscando novas formas; no rigor do recorte ou
do dispositivo, impondo-se limites; e numa certa insurreio contra a
relevncia temtica, atendo-se ao insignificante e mido de ambientes
ordinrios, filmes como Acidente e Uma encruzilhada aprazvel fazem frente a
abordagens convencionais (do ponto de vista da forma, com variaes do
sistema de entrevistas) sobre temas urgentes (chacinas, acidentes areos,
movimento dos sem terra etc.), to frequentes nas reportagens de TV. Outra
caracterstica comum, de fundo, a fragmentao: as sequncias dos filmes
correspondem a trechos autnomos, que guardam independncia uns dos
outros. Acidente, em particular, no realiza uma construo narrativa ou
retrica que crie um acmulo e uma relao de interdependncia entre as
partes (apesar da moldura do poema). Fragmentos de histrias, fragmentos de
cidades, fragmentos de temas, montados numa estrutura fragmentria. Talvez
pudssemos falar em poesia do insignificante, mas tambm em esttica do
fragmento, para caracterizar alguns dos documentrios recentes que
abordamos aqui.*
Notas
* Poderamos contudo ver limites justo onde vemos virtudes: esses mesmos documentrios,
sintomaticamente, devem em vontade de atualidade, em enfrentamento de processos sociais e situaes
presentes, crticas, urgentes caractersticas, alis, extensivas a parte significativa de produo
contempornea.
Imagem e crena
Quatro filmes recentes nos permitem concluir, sem pretenso de esgotamento,
nossa breve reflexo sobre a recente produo documental brasileira. So eles
Juzo (2007), de Maria Augusta Ramos, Serras da desordem (2006), de Andrea
Tonacci, Santiago Uma reflexo sobre o material bruto (2007), de Joo
Salles, e Jogo de cena (2007), de Eduardo Coutinho. Apesar de grandes
diferenas temticas e formais e das particularidades de cada um dos quatro
filmes, so obras que dissolvem distines tradicionais entre fico e
documentrio e ampliam as possibilidades criativas do cinema brasileiro,
problematizando uma questo muito pouco discutida na criao audiovisual
contempornea: a crena do espectador diante das imagens do mundo.
Juzo
Juzo parte dos depoimentos de meninos infratores no Tribunal da Infncia e
da Juventude do Rio de Janeiro em audincias que desenham pouco a pouco
um retrato desolador de uma questo crucial do Brasil contemporneo: o
nmero de meninos pobres que opta pelo crime na falta de qualquer outra
perspectiva de vida. Adolescentes que mal conseguem se expressar, fora da
escola ou repetentes, grandes demais para as sries em que estudam, alguns j
com filhos. Acusados de assalto a mo armada, trfico de drogas, roubo e
homicdio, eles aguardam o julgamento no Instituto Padre Severino.
O filme segue o princpio do cinema direto, registrando situaes e
personagens sem quaisquer intervenes da equipe, nos moldes dos filmes
anteriores de Maria Augusta Ramos. De certo modo, situaes dos mais
diversos tipos em tribunais (pequenos delitos, violncia domstica, crimes)
so particularmente interessantes de serem filmadas segundo a metodologia da
observao. Os documentrios de Frederick Wiseman e Raymond Depardon
nos mostram isso: juzes, promotores, defensores pblicos, acusados e
familiares esto to concentrados no que ocorre em cena que esquecem
parcialmente a filmagem embora uma das protagonistas de Juzo contrarie
esta afirmao. Trata-se de uma jovem juza que intensifica, diante das
cmeras, um papel que certamente o dela naquele tribunal: o de me
repressiva e autoritria mas preocupada com os destinos desses menores
desajuizados, dirigindo-se a eles em uma linguagem que ela cr mais prxima
deles e quase imprpria ao cargo que ocupa.
Juzo, de Maria Augusta Ramos, mescla imagens reais dos infratores com a encenao de jovens atores, e
o fato de muitas vezes nos esquecermos disso revela o alto risco desses se tornarem personagens reais do
filme. Na foto inferior, a juza Luciana Fiala, que diante das cmeras intensifica seu papel no tribunal.
O que foge regra do cinema direto nesse filme o fato de a diretora ter
usado atores nos depoimentos para repetir falas que foram ditas por menores
filmados de costas durante as audincias. O filme nos adverte disso logo no
incio: A lei brasileira probe a exposio da identidade de adolescentes
infratores. Nesse filme, eles foram substitudos por jovens de trs
comunidades do Rio de Janeiro habituados s mesmas circunstncias de risco
social. Portanto, Juzo articula na montagem planos dos meninos reais
filmados de costas com contraplanos ficcionais de jovens que falam para a
cmera; contraplanos encenados, interpretados, dirigidos. Maria Augusta
Ramos fez questo de no usar atores j com alguma experincia ou
formao, tais como os que participam de grupos, como Ns do Morro ou Ns
do cinema organizaes que trabalham com jovens de comunidades pobres
das periferias e favelas do Rio de Janeiro, aos quais as produes do cinema
brasileiro contemporneo tm recorrido na busca de atores que encarnem com
mais realismo personagens com o mesmo perfil social.
O que muito perturbador nessa escolha o fato de que esquecemos em
muitos momentos a informao de que os rostos que vemos na imagem no
so os dos infratores informao que, no entanto, est bem clara nos
crditos iniciais em funo do efeito de real que tais imagens carregam.
Mesmo os planos desses atores filmados fora do Tribunal, nas dependncias
do Instituto Padre Severino ou nas comunidades onde os acusados moram, no
final do filme, adquirem uma verdade rara nesse tipo de procedimento. Em
Justia (2004, da mesma diretora), por exemplo, o filme funciona muito bem
em todas as sequncias filmadas durante as audincias, mas perde fora
quando encena, mesmo com personagens reais, situaes em outros locais
registrados pelo filme. Ou seja, a diretora no faz uso de atores em Justia e
mesmo assim as cenas fora do Tribunal esto longe de ter o impacto que essa
opo possui em Juzo. mesmo difcil usar a palavra ator para falar dessas
intervenes, tamanha a possibilidade de esses jovens estarem no lugar dos
acusados. Trata-se do mesmo horizonte social e cultural, de uma dificuldade
de sobreviver semelhante, de uma incapacidade de se expressar comum a todos
eles.
A reversibilidade de papis faz nossa percepo vacilar e imprime ao filme
uma camada suplementar de sentido. No se trata em absoluto de um
procedimento visando apenas atender a um voyeurismo do espectador que
quer sempre ver mais, ou de uma facilidade para a compreenso do filme.
Maria Augusta Ramos consegue transformar um recurso de mise-en-scne,
inerente s condies de produo do filme, em uma opo reveladora de um
risco real que ameaa a maioria dos jovens pobres das grandes cidades
brasileiras.
Serras da desordem
J Serras da desordem (melhor filme, com Anjos do Sol, no 34 Festival de
Gramado, em 2006) pe em cena a trajetria de Carapiru, ndio nmade da
tribo Aw Guaj (do norte do Maranho), sobrevivente de um massacre contra
seu grupo familiar promovido em 1978 por jagunos contratados por
fazendeiros provavelmente interessados em explorar uma das maiores
reservas de recursos naturais da Amaznia legal. Durante dez anos, Carapiru
perambula pelos confins do Brasil central, sendo descoberto pelo Incra e pela
Funai em 1988, num lugarejo no oeste da Bahia, distante dois mil quilmetros
de seu ponto de origem. levado para Braslia, onde seu aparecimento
provoca comoo nacional e cobertura melodramtica da imprensa,
intensificada pelo episdio que se seguiu: o ndio jovem trazido do Maranho
como intrprete seu filho, tambm sobrevivente do massacre, criado durante
alguns anos pelos mesmos fazendeiros que ordenaram a matana. essa
histria de largo espectro que Andrea Tonacci se prope a contar, numa fico
documental que cobre quase 30 anos da histria do Brasil.
No percurso incomum de Tonacci, Serras da desordem pode ser visto como
um filme-sntese. A partir de meados dos anos 70, o cineasta, clebre pela
realizao do notvel longa ficcional Bang bang (1971), envolveu-se com uma
srie de projetos indgenas, utilizando inclusive equipamentos de vdeo
pioneiros no Brasil. Dirigiu Conversas no Maranho (filmado em 1977 mas s
concludo em 1983), resultado de uma longa permanncia entre os ndios
canela, que viviam na poca o processo conflituoso de demarcao de suas
terras. J nos anos 80, com Sidney Possuelo (sertanista que personagem de
Serras da desordem e um dos responsveis por garantir a volta de Carapiru a
seu povo em 1988), lanou-se na aventura de filmar a expedio de primeiro
contato com os arara, povo nmade atingido pela construo da
Transamaznica. Os documentrios resultantes (Os Arara, srie em trs
episdios para a TV, um deles inacabado) so notveis, entre outros aspectos,
por quase no mostrar os ndios (objetos da busca dos brancos includo o
documentarista que fugiam tenazmente da expedio de contato).
Em Serras da desordem, de Andrea Tonacci, a narrao da trajetria do ndio Carapiru produz uma
permanente ambiguidade entre fico e documentrio, fruto da mistura entre registros do presente e
encenaes do passado.
Para contar a histria de Carapiru, e a partir dela produzir mltiplas
conexes, Serras da desordem mobiliza uma heterogeneidade significativa de
materiais e procedimentos: um vasto arquivo de filmes que inclui matrias
telejornalsticas, filmes de fico e documentais (como Iracema, uma transa
amaznica (1974), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, e A cabra na regio
semirida (1966), de Rucker Vieira); entrevistas sobre o passado e sobretudo
encenaes, tendo o prprio Carapiru e pessoas que conheceu no percurso
como atores, fazendo os prprios papis 20 anos antes; alm de cenas que
documentam o presente da aldeia aw guaj, onde vive Carapiru. Misturam-se
texturas, qualidades de imagem, cor e preto e branco. Mais do que isso, os
diferentes estilos de contar mobilizados pela narrao, no curso do filme,
endossam uma atitude de no didatismo, propondo ao espectador que monte as
peas de uma histria que envolve tempos e espaos diversos, medida que a
assiste.30
Muitos aspectos desconcertam neste filme singular, mas destacaremos
apenas um deles. Serras da desordem encenado pelos protagonistas da
histria real, o que provoca uma permanente ambiguidade entre documentao
do presente e reconstituio do passado, uma instigante contaminao fico-
documentrio, derivada sobretudo dessa convivncia de temporalidades,
como afirmou em entrevista Ismail Xavier.31 J que Carapiru, protagonista da
histria real, interpreta seu prprio papel no passado, duas camadas
constantemente interagem: Carapiru ator, agente da fico (nas encenaes
do passado), e ele mesmo, objeto do olhar documental do filme (no
presente). Cada uma das cenas de reconstituio implica tambm um
reencontro (bem presente) com aqueles que Carapiru conheceu 20 anos antes,
em sua jornada pelo Brasil central. Em cada situao, portanto, no serto da
Bahia ou em Braslia, estamos sempre a ajustar o canal: em que regime de
atuao se encontram Carapiru e as pessoas com que ele interage? A
ambiguidade entre pessoa e personagem parece reforar a alteridade de
Carapiru, a indevassabilidade de sua experincia, nunca revelada ou acessada
por inteiro. Como bem apontou Ismail Xavier: O jogo de interrupes, o
vaivm de Tonacci nos convida a viver a instabilidade das imagens, a
indeciso. Mesmo quando o quebra-cabea comea a se resolver no nvel
pragmtico da biografia, a poeira j levantada em seu cinema-processo
acentua at o fim o campo das incertezas, o que h de lacunar, intersticial, na
cena visvel.32
Santiago
Em Santiago, Joo Salles coloca em prtica uma ideia que vinha defendendo
com afinco nos ltimos anos: a produo de documentrios no Brasil deve se
voltar para temas prximos vida dos diretores, evitando-se filmar apenas o
outro. Salles talvez se referisse, indiretamente, ao filme iniciado por ele em
1992, e no concludo, sobre o mordomo que trabalhou com a famlia
Moreira Salles por quase trinta anos.* Em agosto de 2005, decide se
confrontar com as nove horas do material filmado e finaliza Santiago, que
adquire um subttulo Uma reflexo sobre o material bruto e uma outra
densidade. um filme que contm muitas histrias: um documentrio sobre
um mordomo, mas tambm uma carta filmada do diretor dirigida aos irmos
compartilhando memrias, um ensaio flmico sobre como fazer (ou no fazer)
um documentrio e uma homenagem pstuma ao personagem.
Santiago de fato um personagem e tanto. Conjuga habilidade narrativa
com histrias incomuns de vida: nascido na Argentina, comeou a trabalhar
com uma famlia aristocrtica em Buenos Aires, contraindo desde ento uma
paixo por tudo o que dissesse respeito vida de reis e rainhas, a nobreza em
geral, real ou imaginria, pouco importava. com fascnio por esse mundo
que ele conta as histrias dos grandes jantares e festas na manso da famlia
Moreira Salles na Gvea, as tarefas que envolviam a arrumao da casa, as
mesas, as flores, a orquestra, os nobres e distintos que as frequentavam. So
pequenas narrativas que desvelam aqui e ali a dureza do trabalho contnuo, a
dificuldade de uma vida privada, a submisso do mordomo a uma ordem
estabelecida.
O documentrio, contudo, est longe de ser s isso. Salles decide tambm
expor no filme, implacavelmente, o que percebeu ao rever o material de 1992:
o quanto se manteve distante de Santiago ao longo dos cinco dias de filmagem,
o quanto imps a ele uma ideia prvia de filme, o quanto no entendeu o que
de fato importava naquele reencontro. Uma compreenso que se deu, de certa
maneira, tarde demais. Santiago morreu poucos anos depois das gravaes, e
o que foi filmado no poderia ser mudado.
Mas dessa sensao de tarde demais que Salles extrai as condies para
finalizar o filme. Retoma erros, mal-entendidos e incompreenses cometidas
por ele ao longo da filmagem de 1992 e os evidencia, sem meias palavras,
sem subterfgios. Exibe truques e manipulaes efetuadas 13 anos antes e
afirma na narrao: difcil saber at onde amos em busca do quadro
perfeito, da fala perfeita. Desmonta imagens e sons e adverte o espectador:
desconfiem do que seus olhos vem.
Deparamo-nos com um diretor por vezes dspota, irritado, apressado,
incapaz de estabelecer uma efetiva interao com Santiago, que tenta a seu
modo acertar e fazer aquilo que o diretor quer. Santiago, vai de novo, no
olha para a gente, no. No olha! diz Salles em uma das sequncias, ou ainda:
Fala logo que estamos com um pouco de pressa. Raras vezes na histria do
documentrio um cineasta explicitou de tal maneira segredos que ficam, na
maior parte dos casos, perdidos no material no usado dos filmes.
Santiago, de Joo Salles, uma reflexo sobre a realizao de documentrios e uma corajosa autocrtica,
que desmonta imagens e sons e adverte o espectador: desconfie do que seus olhos vem.
A montagem extremamente hbil insere vrias repeties de uma mesma
fala do mordomo, mantendo hesitaes e silncios, intensificando o
desconforto tanto do personagem quanto do espectador. So momentos em que
opresses vividas pelo mordomo ao longo da vida parecem se manifestar de
forma mais contundente, e isso que Salles constata ao dizer, perto do final do
filme: Durante os cinco dias de filmagem eu nunca deixei de ser o filho do
dono da casa e ele nunca deixou de ser o nosso mordomo.
Mas o filme tampouco se limita a essa dimenso confessional. Joo Salles
vai gradualmente ao encontro de Santiago e rev o que na poca no o havia
interessado: as 30 mil pginas de histrias da nobreza de todos os tempos
pesquisadas em bibliotecas e transcritas pelo mordomo ao longo de mais de
meio sculo. Uma tentativa quase insana de impedir que aquelas vidas
desaparecessem da memria. O diretor traz para o filme fragmentos desses
escritos, assim como comentrios pessoais de Santiago encontrados em meio
aos textos. Refaz, a seu modo, o gesto do ex-mordomo e retira Santiago do
esquecimento a que as imagens de 1992 o haviam condenado. Santiago ,
acima de tudo, a narrativa perturbadora e comovente de um aprendizado e de
uma transformao de um cineasta no confronto com ele mesmo em um outro
momento da vida. Transformao sutil e sem alarde, como diz Salles no
final do filme, e que ficou clara no reencontro com as imagens de Santiago.
Jogo de cena
Podemos pensar inicialmente que a experincia do espectador de Jogo de cena
bastante prxima daquela produzida por outros documentrios de Eduardo
Coutinho. Afinal, o essencial no parece ter mudado. O filme nos coloca
novamente diante de pessoas contando histrias de vida ao cineasta, no estilo
minimalista que marca a obra de Coutinho desde Santo forte (1999). S que,
dessa vez, so todas mulheres, e o que as une o fato de terem atendido a um
anncio nos classificados de um jornal carioca convidando-as a participar de
um documentrio. Por que s mulheres? Porque falam com mais facilidade
das suas dores e alegrias, diz Coutinho; e tambm porque, para ele, mulheres
so o que ele no , o outro que busca em seus filmes. Conversam com o
diretor em um palco de teatro, e no mais em uma locao real nem favela
nem prdio. Falam de trabalho, cotidiano, relaes afetivas e especialmente
dos filhos. Histrias de amor, cuidado e dificuldades, perda, dor e sofrimento,
mas tambm de enfrentamento e recuperao moral; histrias de filhos
criados, a maioria deles sem pais por perto. Temas e questes que lembram
aqueles de Tudo sobre minha me, de Pedro Almodvar.
O filme tem muitas camadas e essa a primeira delas. O ttulo Jogo de cena
sugere outra. Coutinho convidou atrizes para interpretar mulheres com quem
j havia conversado e faz uma articulao inesperada entre esses vrios
depoimentos. Dissolve distines entre o que encenado e o que real e
produz mudanas, ao longo do filme, na forma de o espectador se relacionar
com as imagens e sons. Se diante das atrizes conhecidas somos tentados,
inicialmente, a julgar seu desempenho, Jogo de cena nos retira desse lugar e
propicia um outro tipo de experincia: a de compartilhar com atrizes
talentosas e reconhecidas angstias e dificuldades inerentes encenao de
personagens reais. Andrea Beltro provoca em muitos momentos um curto-
circuito comovente entre suas sensaes e as da personagem. Fernanda Torres
interrompe algumas vezes sua atuao, diz a Coutinho que parece estar
mentindo e explicita a dureza de interpretar uma personagem real: A
realidade esfrega na sua cara onde voc poderia estar e no chegou. Marlia
Pra interpreta uma personagem extremamente emotiva, mas esbarra numa
atuao distanciada. Jogo de cena exibe essas variaes na forma de atuar e
leva o espectador a compreender a arte de representar como algo instvel,
inseguro e exposto a riscos extremamente prximo do documentrio, tal
como concebe Eduardo Coutinho.
Um filme de muitas camadas, desde o ttulo: Jogo de cena, de Eduardo Coutinho, desconcerta, comove e
provoca o espectador com sua mistura ora velada, ora explcita de realidade e encenao.
Em relao s atrizes e personagens desconhecidas, as questes so outras.
Mulheres annimas narrando momentos ntimos de vida para a cmera de
Coutinho adquirem, a nossos olhos, a fora da verdade, reafirmando de
imediato nossa crena na imagem documental. Mas pedaos de histrias j
narradas comeam a voltar em uma frase, em um rap, em um relato,
instilando-nos pouco a pouco a dvida a respeito do que vemos no filme: uma
pessoa real relatando sua histria ou uma atriz desconhecida representando?
Autntico, verdadeiro, espontneo, adjetivos que sempre
acompanharam a recepo dos documentrios do diretor, mesmo que revelia
de Coutinho (que sempre enfatizou a dimenso de fabulao e encenao de
si contida nos depoimentos de personagens reais), so estilhaados um a um.
A incerteza se espraia pelo filme todo, atinge famosos e annimos, e no
sabemos ao final a quem pertencem as hesitaes e os silncios de Andrea
Beltro e Fernanda Torres se s atrizes ou s personagens que reinterpretam.
Perdemos o controle sobre o que ou no encenado, e os indcios de que o
filme est nos enganando nos fazem entrar, paradoxalmente, ainda mais no
jogo proposto. Nos emocionamos duas vezes com o mesmo caso, j sem
querer saber qual das mulheres a verdadeira dona da histria. At porque
no h garantia possvel: as duas podem ser falsas, atrizes fazendo o papel
de uma terceira pessoa que no est no filme. Assomam as narrativas como
foco de interesse do filme, lugar de dramatizao e organizao do vivido, de
produo de verdades, ditos e episdios exemplares. Um filme sobre
histrias, poderamos dizer, mais do que sobre personagens.
O que esses quatro documentrios tm em comum, e que praticamente
indito na produo atual brasileira, a capacidade de perturbar a crena do
espectador naquilo a que ele est assistindo, de suscitar dvidas a respeito da
imagem documental e de fazer com que essa percepo seja menos uma
compreenso intelectual e mais uma experincia sensvel. Curioso, e tambm
sintomtico, que por caminhos diversos, e sem que houvesse inteno dos
diretores, eles tenham realizado filmes que nos obrigam a nos relacionar com
situaes audiovisuais novas, a renunciar ao desejo de controle sobre o que
ou no real, a nos deparar com o fato de que a fronteira entre o mundo e a
cena inexiste em muitos casos; e que, mesmo assim, no deixamos de nos
envolver com o que vemos.
Acreditar, no acreditar, no acreditar mais, acreditar apesar de tudo: essas
so questes que agitam o cinema desde o incio, lembra-nos o crtico francs
Jean-Louis Comolli, em oposio produo televisiva dominante que impe
ao telespectador a iluso do lugar do controle, do que sabe, julga e decide.
Espetculos de realismo, telejornais, telenovelas, publicidade, programas de
variedades respondem a todas as supostas demandas da audincia com
explicaes, informaes, reiteraes, eliminando ambiguidades, paradoxos,
contradies. O telespectador incessantemente assegurado e esclarecido a
respeito do que v na imagem, procedimento que faz ele acreditar ser mestre
do jogo, predispondo-o a sofrer manipulaes de todo tipo justamente por
considerar tarefa fcil se situar em meio s imagens do mundo.
J um certo tipo de cinema faz da incerteza e da oscilao entre a crena e a
descrena a condio essencial do espectador. Uma instabilidade que o obriga
a se confrontar com os seus limites e perceber que a posio de controle
insustentvel, tanto no cinema quanto na vida.33 Uma premissa simples
descartada pela maior parte das produes miditicas talvez por conter
possibilidades de evidenciar para o espectador o fato de que ele pode, sim, ser
manipulado a todo instante, de que no h nada nas imagens que garanta sua
veracidade ou autenticidade, de que tudo pode ser simulado, e que saber disso
j um bom ponto de partida para compreender melhor o que se passa nossa
volta.
O que no quer dizer que a imagem no valha nada: ela pode mentir,
falsificar, simulando dizer a verdade, mas pode tambm ser associada a outras
imagens e outros sons para fabricar experincias inditas, complexificar nossa
apreenso do mundo, abrir nossa percepo para outros modos de ver e saber.
As imagens so frgeis, impuras, insuficientes para falar do real, mas
justamente com todas as precariedades, a partir de todas as lacunas, que
possvel trabalhar com elas. Os quatro filmes aqui em questo produzem
experincias e reflexes atravs da forma como so montados. na
articulao das imagens no tempo da projeo que oscilaes, incertezas,
sensaes, reflexes e aprendizados se do; na durao que a impresso de
realidade e a crena do espectador to caras tradio do documentrio so
colocadas em questo. So filmes que levam o espectador a se perguntar: o que
eu vejo nessa tela? Realidade, verdade, simulacro, manipulao, fico, tudo
ao mesmo tempo? Questes que, segundo Comolli, pertenciam apenas ao
cinema, mas que, diante de um mundo-espetculo, se transformaram em
questes que dizem respeito a todos ns.
Notas
* Embora no corresponda ao Outro clssico (moraram inclusive, por anos, na mesma casa), Santiago
no deixa de ser outro (outro ntimo, talvez) para o documentarista. Talvez possamos dizer, com Ilana
Feldman, que Salles assume nesse filme que todo documentrio sobre o outro um documentrio sobre
si, assim como se costuma dizer que toda crtica uma autobiografia. No texto Santiago sob suspeita,
ela desenvolve consideraes de grande interesse sobre as camadas de Santiago, sobre suas
revelaes e enganos.
Anexo
Filmes documentais brasileiros lanados no cinema
(de 1996 a 2007)*
1996 Todos os coraes do mundo (Murilo Salles)
1997 O cineasta da selva (Aurlio Michiles)
O velho: a histria de Luiz Carlos Prestes (Toni Venturi)
1998 Tudo Brasil (Rogrio Sganzerla)
1999 F (Ricardo Dias)
Histrias do Flamengo (Alexandre Niemeyer)
Ns que aqui estamos por vs esperamos (Marcelo Masago)
Santo forte (Eduardo Coutinho)
2000 Babilnia 2000 (Eduardo Coutinho)
Bahia de todos os sambas (Paulo Csar Saraceni e
Leon Hirszman)
O rap do pequeno prncipe contra as almas sebosas (Paulo Caldas
e Marcelo Luna)
Pierre Verger: mensageiro entre dois mundos (Lula Buarque
de Holanda)
Terra do mar (Eduardo Caron e Mirella Martinelli)
Um certo Dorival Caymmi (Aluisio Didier)
2001 2000 nordestes (David Frana Mendes)
Ansia: um voo no tempo (Ludmila Ferolla)
Barra 68 (Vladimir Carvalho)
Nelson Gonalves (Eliseu Ewald)
O chamado de Deus (Jos Joffily)
O sonho de Rose (10 anos depois) (Tet Moraes)
Senta a pua! (Erik de Castro)
2002 Edifcio Master (Eduardo Coutinho)
Janela da alma (Joo Jardim e Walter Carvalho)
Nem gravata nem honra (Marcelo Masago)
Onde a terra acaba (Srgio Machado)
nibus 174 (Jos Padilha)
Poeta de sete faces (Paulo Thiago)
Rocha que voa (Eryk Rocha)
Surf adventures: o filme (Arthur Fontes)
Timor Lorosae: o massacre que o mundo no viu (Luclia Santos)
Viva So Joo! (Andrucha Waddington)
2003 Banda de Ipanema: folia de Albino (Paulo Csar Saraceni)
Nelson Freire (Joo Salles)
Paulinho da Viola: meu tempo hoje (Izabel Jaguaribe)
Um passaporte hngaro (Sandra Kogut)
Zico (Eliseu Ewald)
2004 33 (Kiko Goifman)
margem da imagem (Evaldo Mocarzel)
Entreatos (Joo Salles)
Evandro Teixeira: instantneos (Paulo Fontenelle)
Fbio Fabuloso (Pedro Cezar, Ricardo Boco, Antonio
Ricardo)
Fala tu (Guilherme Coelho)
Glauber, o filme: labirinto do Brasil (Silvio Tendler)
Justia (Maria Augusta Ramos)
Lngua: vidas em portugus (Victor Lopes)
Motoboys: vida loca (Cato Ortiz)
O prisioneiro da grade de ferro: autorretratos (Paulo Sacramento)
Pel eterno (Anbal Massaini)
Pees (Eduardo Coutinho)
Razes do Brasil: uma cinebiografia de Srgio Buarque de
Holanda (Nelson Pereira dos Santos)
Rio de Jano (Anna Azevedo, Eduardo Souza Lima e Renata Baldi)
Samba Riacho (Jorge Alfredo)
2005 A pessoa para o que nasce (Roberto Berliner)
Coisa mais linda: histrias e casos da Bossa Nova (Paulo Thiago)
Doutores da alegria: o filme (Mara Mouro)
Extremo sul (Monica Schmiedt, Sylvestre Campe)
Mensageiras da luz: parteiras da Amaznia (Evaldo Mocarzel)
Moro no Brasil (Mika Kaurismki)
Morro da Conceio (Cristiana Grumbach)
O crcere e a rua (Liliana Sulzbach)
O fim e o princpio (Eduardo Coutinho)
Preto e branco (Carlos Nader)
Soldado de Deus (Srgio Sanz)
Sou feia mas t na moda (Denise Garcia)
Vincius (Miguel Faria Jr.)
Vlado: 30 anos depois (Joo Batista de Andrade)
Vocao do poder (Eduardo Escorel e Jos Joffily)
2006 A famlia Alcntara (Daniel Sol Santiago, Lilian Sol
Santiago)
A mochila do mascate (Gabriela Greeb)
A odisseia musical de Gilberto Mendes (Carlos de Moura
Ribeiro Mendes)
Carnaval, bexiga, funk e sombrinha (Marcus Vincius Faustini)
Dia de festa (Toni Venturi)
Do luto luta (Evaldo Mocarzel)
Do outro lado do rio (Lucas Bambozzi)
Dom Hlder Cmara: o santo rebelde (Erika Bauer)
Estamira (Marcos Prado)
Ginga: a alma do futebol brasileiro (Hank Levine, Marcelo
Machado e Tocha Alves)
Intervalo clandestino (Eryk Rocha)
Meninas (Sandra Werneck)
Moacir arte bruta (Walter Carvalho)
Nzinga (Octvio Bezerra)
O dia em que o Brasil esteve aqui (Cato Ortiz, Joo Dornelas)
O homem pode voar (Nelson Hoineff)
O Sol: caminhando contra o vento (Tet Moraes)
Olhar estrangeiro (Lcia Murat)
Soy Cuba: o mamute siberiano (Vicente Ferraz)
Tow in Surfing (lvaro Otero, Jorge Guimares, Rosaldo
Cavalcanti)
Um craque chamado Divino (Penna Filho)
Z Pureza (Marcelo Ernandez)
2007 500 almas (Joel Pizzini)
margem do concreto (Evaldo Mocarzel)
Aboio (Marlia Rocha)
Brasileirinho: grandes encontros do choro (Mika Kaurismki)
Capara (Flavio Federico)
Cartola: msica para os olhos (Lrio Ferreira, Hlton Lacerda)
Em trnsito (Henri Gervaiseau)
Encontro com Milton Santos ou O mundo global visto do
lado de c (Silvio Tendler)
Fabricando Tom Z (Decio Matos Jr.)
Faixa de areia (Daniela Kallmann e Flvia Lins e Silva)
Gigante: como o Inter conquistou o mundo (Gustavo Spolidoro)
Grupo Corpo 30 anos: uma famlia brasileira (Fbio Barreto,
Marcelo Santiago)
Helena Meirelles: a dama da viola (Francisco de Paula)
Hrcules 56 (Silvio Da-Rin)
Histrias do rio Negro (Luciano Cury)
Inacreditvel: a batalha dos aflitos (Beto Souza)
Jogo de cena (Eduardo Coutinho)
Mestre Bimba: a capoeira iluminada (Luiz Fernando Goulart)
O engenho de Z Lins (Vladimir Carvalho)
O mundo em duas voltas (David Schrmann)
O profeta das guas (Leopoldo Nunes)
Oscar Niemeyer: a vida um sopro (Fabiano Maciel)
Pampulha ou A inveno do mar de Minas (Oswaldo Caldeira)
Maria Bethnia Pedrinha de Aruanda (Andrucha Waddington)
Porto Alegre: meu canto no mundo (Ccero Aragon, Jaime Lerner)
Pro dia nascer feliz (Joo Jardim)
Santiago (Joo Salles)
Trs irmos de sangue (ngela Patrcia Reiniger)
Notas
* Dados: Filme B (www.filmeb.com.br). No listamos os documentrios produzidos para difuso prioritria
na televiso, por indisponibilidade de mapeamento.
Notas
1. Este texto retoma questes e reflexes que desenvolvemos em outros
artigos e intervenes. Em especial, de forma muito ampliada e modificada, o
artigo Aspectos do documentrio brasileiro contemporneo, publicado no
livro Cinema mundial contemporneo (Campinas, Papirus, 2008), organizado
por Mauro Baptista & Fernando Mascarello.
2. C.A. Calil, A conquista da conquista do mercado, p.159.
3. J. Salles, Notcias de um cinema do particular, Revista Sexta-Feira, v.8,
2006, p.157-8.
4. Em seu texto Indagaes em torno de Eduardo Coutinho e seu dilogo
com a tradio moderna, Ismail Xavier desenvolve, a partir de Edifcio
Master, consideraes agudas sobre a construo do personagem e o empenho
pela reposio do sujeito no cinema de Coutinho que valoriza a oralidade
para combater a situao de assimetria na diviso dos poderes (que a relao
diretor-entrevistado dramatiza), na contramo de um uso mais frequente da
entrevista no cinema e na TV.
5. J.-C. Bernardet, Cineastas e imagens do povo, p.126-7, 110.
6. O cinema brasileiro moderno. So Paulo, Paz e Terra, 2001.
7. L. Saraiva, Estamira.
8. J.-C. Bernardet, op.cit., p.286.
9. Ibid., p.295.
10. L. Saraiva, Cmera de mo em mo: O prisioneiro da grade de ferro
autorretratos, p.176. Em sua anlise, Leandro Saraiva trabalha muito bem
com o que chama de duas dimenses estruturantes do filme: o registro
pessoal na filmagem e a sntese coletiva na montagem. Dentre os registros
pessoais realizados pelos presos, ele destaca e analisa a noite de um detento,
em que Joel e Marcos expressam, a partir do registro de uma noite na cela, sua
condio existencial naquela situao e de uma perspectiva que nenhum
cineasta poderia realizar.
11. I. Xavier, Humanizadores do inevitvel, p.12.
12. I. Bentes, Cmera muy very good pra mim trabalhar.
13. Citado por Ivana Bentes no texto Cmera muy very good pra mim
trabalhar.
14. Algumas anlises sobre essa produo se encontram nos artigos
Alargando as margens e Histrias de luta, de Cludia Mesquita.
15. Ver I. Bentes, Aqui Agora: o cinema do submundo ou o tele-show da
realidade, p.44-8, e E. Hamburguer, Polticas da representao: fico e
documentrio em nibus 174.
16. I. Bentes, Aqui Agora: o cinema do submundo ou o tele-show da
realidade, p.44.
17. E. Hamburger, op.cit., p.204.
18. J.-L. Comolli, Sob o risco do real, p.101.
19. I. Xavier, O cinema brasileiro dos anos 90, p.104.
20. J.-C. Bernardet, Novos rumos do documentrio brasileiro?, p.24-6.
Bernardet analisa os dois filmes nesse texto e em Documentrios de busca: 33
e Um passaporte hngaro.
21. J.-C. Bernardet, Documentrios de busca: 33 e Um passaporte hngaro,
p.148-9.
22. J.G. Couto, Folha de S. Paulo, 28 jun 2007.
23. Uma abordagem mais detida do conceito de dispositivo e de sua presena
na produo e no debate sobre o documentrio recente no Brasil se encontra
no texto O filme-dispositivo no documentrio brasileiro contemporneo, de
Consuelo Lins.
24. J.-L. Comolli, Sob o risco do real, p.99, 111. Ver tambm Voir et
pouvoir.
25. Cao Guimares, em texto na contracapa do vdeo Rua de mo dupla. Uma
discusso mais longa e aprofundada sobre a obra e suas ressonncias se
encontra em Rua de mo dupla: documentrio e arte contempornea, de
Consuelo Lins.
26. O paulista Carlos Nader, documentarista e videomaker, diretor de
Concepo (2001), Carlos Nader (1998), Preto e branco (2004) e Pan-cinema
permanente (2007), tambm trabalha articulando dimenses da arte
contempornea com certas prticas documentais. Andrea Frana analisa
algumas obras de Nader e Lucas Bambozzi em Documentrio brasileiro e
artes visuais: passagens e verdades possveis.
27. Andr Brasil tece relaes inspiradoras entre Aboio e Andarilho no texto
Quando as palavras cantam, as imagens deliram. Entre outros aspectos, ele
aponta a imbricao entre ambiente natural, experincia e linguagem (de
andarilhos e vaqueiros) nos dois filmes.
28. Em Minas Gerais, o grupo de msica experimental O Grivo tem tido
participao decisiva na captao de som direto e na elaborao dos
ambientes sonoros dos documentrios recentes produzidos no estado (O fim
do sem fim, A alma do osso, Aboio, Andarilho, Trecho, entre outros).
29. No texto DOCTV: uma outra percepo do documentrio na TV,
Clber Eduardo aponta, em documentrios como Acidente e Uma encruzilhada
aprazvel, o que chama de cultivo de uma percepo, visado antes da
transmisso de informao sobre qualquer tema, lugar ou contexto. Ele volta
ao tema em Esquinas cearenses, que inclui comentrio sobre As vilas
volantes.
30. Em seu artigo As artimanhas do fogo, para alm do encanto e do
mistrio, Ismail Xavier d conta com grande acuidade das operaes
realizadas pelo filme e dos desafios propostos ao espectador de Serras da
desordem.
31. Entrevista a Silvana Arantes. Folha de S. Paulo, Caderno Ilustrada, 3
fev 2007.
32. I. Xavier, As artimanhas do fogo, para alm do encanto e do mistrio,
p.18.
33. J.-L. Comolli, Voir et pouvoir, p.418.
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Crditos iconogrficos
Foto de Claudia Sanz: 1; fotos de Toca Seabra: 1; fotos de Walter Carvalho: 1,
2, 3.
As imagens no includas na lista acima foram reproduzidas diretamente dos
filmes, e seu uso foi gentilmente autorizado pelos produtores e diretores.
Todos os esforos foram feitos para identificar as fontes das imagens aqui
reproduzidas. Estamos prontos a corrigir eventuais falhas ou omisses em
futuras edies.
Agradecimentos
A Pedro Butcher, pelas informaes do portal Filme B - www.filmeb.com.br.
A Ismail Xavier e Tnia Caliari, pela leitura.
Aos diretores e fotgrafos que cederam imagens para publicao.
Aos editores e organizadores das publicaes onde introduzimos algumas das
ideias aqui retomadas ou desenvolvidas.
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