0 ratings0% found this document useful (0 votes) 226 views18 pagesA Arte de Ler - Michèle Petit
Copyright
© © All Rights Reserved
We take content rights seriously. If you suspect this is your content,
claim it here.
Available Formats
Download as PDF or read online on Scribd
Michéle Petit
A arte de ler
ou como resistir 4 adversidade
editorallll34sente, clas “formam representag
§ que SAO ¢ Serio itteme.
diavelmente somente representa 2
es”." Se as eriangas tiv,
rem acesso a esses dois registros, vao jogar dentro de sj si
mas com ass situages € as pessoas que as cercam, E, inde.
pendentemente da cultura que as viu nascer, com quatro oy
cinco anos mais ou menos, come¢arao a construir Narratiyas
verbais sobre as suas préprias vidas, a relatar as suas expe-
riéncias apoiando-se em histérias que ouviram, trechos de
cancées, livros que folhearam, as vezes filmes. Recorrerio
heranga cultural, que passa a fazer parte delas mesmas,
A NARRATIVA,
UMA NECESSIDADE ANTROPOLOGICA
Esse momento inicial da composigao de narrativas seria
uma das etapas essenciais, “semelhante em varios aspectos 4
transigao para a posigdo sentada, ao aprendizado de andar
ou a conquista da linguagem”.*? Ou seja, uma necessidade
antropoldgica. De fato, ao longo da vida, para construir um
sentido, para nos construirmos, jamais deixamos de contar,
em voz alta ou no segredo da nossa solidao: nossas vidas sao
completamente tecidas por relatos, unindo entre eles os ele-
mentos descontinuos.
Para retomar as palavras do psiquiatra infantil Daniel
Stern, vivemos “em um circo com cinco picadeiros, onde 0
espetdculo — aquele dos nossos sentidos — prossegue pat
sempre”. A todo o momento, somos bombardeados pot
uma sucesso fragmentada de imagens, mas igualmente de
odores, de barulhos, de gritos, pedacos de conversas, impres"
“L, Danon-Boileau, La Paroles, op. city p. 151.
'D, Stem, Journal d'un bébé, Paris, Odile Jacob, 2004, P- 170,
* Ibid., p. 170,
122 sas adversidade
A arte de ler ou como resistir & adversoes tateis, que as coisas ¢ as pessoas nos
tiplas sensagoes internas. No meio de
to humano precisa selecionar alguns
cacofonia ¢ dar-lhes sentido.
A prinefpio, € no exterior que o sentido € encontrad
No comego da vida, a mae ou a pessoa que cuida da tia
interpreta, traduz o que ela sente em Pequenas nacratives
“Meu bebé ouviu a mamae chegando, ele Pensou que cla vi
nha abraga-lo e como ela nao veio logo, ele ficou futioso ¢
comegou a chorar”, Sempre um Pouco adiantad:
ao desenvolvimento da crianga, ela antecipa assim os proces-
sos de unido da linguagem e do pensamento, que ainda sio
rudimentares (da mesma forma como as historias que ouvi-
mos ou 05 livros que lemos ecoam em nés 0 que até entao era
indizivel.)
deixam; € de miil-
ssa desordem, 0 espiri-
detalhes Para reduzir a
a em relagio
Como diz Jerome Bruner, um dos pioneiros das ciéncias
cognitivas, “parece que temos, desde 0 inicio da vida, uma
espécie de predisposigdo para a narrativa [...]”.45 Contudo,
essa predisposicao deve ser incentivada para avangar. Hoje
conhecemos o papel desempenhado por essas pequenas nar-
rativas, nas quais a crianga é o herdi, elaboradas pela mae:
dando-Ihes uma imagem deslocada deles mesmos, as maes
lhes permitirdo se construir mais tarde “como um outro”.
Sabemos também o quanto é importante, desde a mais tenra
idade, propor aos bebés alimentos culturais, contar-lhes his-
térias e ler para eles — deixando que se mexam e se deslo-
quem livremente no espago. Para crescerem, para comegarem
um dia a formular sua prdpria histéria, eles necessitam de
literatura. Precisam também aprender a contar, e tal apren-
dizado se faz no encontro, na interagao com um adulto que,
Por sua vez, sente prazer na narragio.*®
“5 J, Bruner, op. cit., p. 32-
“© B. Golse, in Récit, attachement..., op- cit P- 15.
123
“ simbolizagao ¢ a narrativa: poderes ¢ limitesjo progressiva da narratividade, ore
com 0 livro é decisivo: “O livro sozinho, no Centro de
experiéncia intersubjetiva, [pode] contribuir prof
te, por meio de uma narratividade vinda de fora, P
trar a narratividade interior da crianga e prepar,
elaboragio de seus préprios fundamentos”.47 Ele
desenvolvimento das capacidades lingufsticas e p;
cessdrias para que se construa uma histéria, a
Ntaty
le uma
Undamen.
Ara enegg,
Asta para g
Ajudaria no
Siquicas ne.
Presentando
esquemas narrativos determinados que poderiam “ery Segui-
da servir de molde ou magma concretos de uma vida ¢ con-
tribuir para a sua estruturagao”;** mas, se seguirmos Da.
non-Boileau, ele também permitiria 4 crianga “perceber 9 que
pode ser um imagindrio que nao é 0 seu, uma representacig
que nao deriva do que ela viveu, sonhou ou mesmo inventou,
Isso no acontece, alias, sem trauma”. Sera que o movimen-
to tao forte de apropriagao, de desvio, praticado na leitura,
encontra o seu principal estimulo no desejo de reduzir essa
alteridade?
“REMENDAR A TRISTEZA” COM HISTORIAS
Contudo, a “narratividade que vem de fora” também é
antitraumitica, pois é feita de relages, de vinculos. No Ma-
li, os grids, que curam por meio do vinculo, sao encarrega-
dos de “costurar a tristeza” com suas histérias.5° Juan José
Millds, por sua vez, diz que “a literatura recompée algo que
foi rompido ha tempos, E no caos, a escrita restitui a reali-
., ,. B: Golse, preficio para M. Bonnafé, Les Livres, c'est bon pour ls
bébés, Paris, Calmann-Lévy, 2000, pp. 22-3.
“*L, Danon-Boileau, La Parole.... op. cit, p- 150.
* Ibid. p. 150,
°C. Salmon, Storytelling, Paris, La Découverte, 2007, p- 66
124 sidade
A arte de ler ou como resistir 4 adverdade rticulada”.5' E para Ray Bradbury, 0s livros “costuram
pegas ¢ pedagos do universo para nos fazer uma roupa”,%2
Quando na Franga ou na América Latina, ouvia adolescentes
ou adultos me contarem seus achados nos livros, formay.
yezes a imagem de uma urdidura de relagées Progressiva, que
eles haviam realizado com a ajuda de uma histéria, de um
conto, de duas frases coletadas aqui e ali, da letra de uma
musica. Esses materiais remendados, essas unidades de sen-
tido bem ou mal combinadas, tinham ajudado a construirem
suas casas interiores, em perpétua restauracdo. Fizeram-me
entender que, se somos habitados por intimeras pequenas
histérias, € mais facil construir pontes entre os episédios,
pensar a sua propria histéria em um conjunto e o seu lugar
em espagos mais extensos.
Somos seres da narrativa ¢ a pergunta é por qual passe
de magica essa evidéncia pdde ser escamoteada a ponto de a
linguagem ser reduzida a um instrumento e as bibliotecas a
simples lugares de “acesso a informagao”. Estas sio também
conservatérios de sentido onde se encontram metaforas cien-
tificas que ordenam o mundo e o esclarecem, mas também
metaforas literdrias, poéticas, geradas pelo exercicio lento de
escritores ou de artistas que realizaram um trabalho de trans-
figuragao de seus proprios questionamentos ¢ dos varios con-
flitos que estao no cerne da vida psicolégica ¢ social.
Em todas as sociedades existem mitos, contos, pegas de
teatro, poemas ctc., além de pessoas cujo trabalho consiste
em fabricar 0 sentido de forma condensada e estética, man-
a as
51 El Pais, 30/6/2002. Millés diz. também: “Sempre me perguntam
Por que eu escrevo, ¢ eu respondo que é porque eu sou fragmentado ¢ que
assim consigo ter uma percepgaio de mim como unidade”.
ap. 2 Farhenbeit 451 (Paris, Gallimard, 1995). Xabier Docampo escreves
Cabe a0 leitor cortar ¢ costurar as suas palavras para construir a historia
A leitura é uma roupa que convém bastante 2 alma e a enfeita, como um
estido convém ao corpo” (Cuatro cartas, Madri, Anaya, 2000).
i ra vr 125
A simbolizagio ¢ a narrativa: poderes ¢ limitestendo-se um pouco distante, Em todas as culturas exist
narragdes que associam os eventos, instauram uma cont m
dade em uma histdria posta em cena, em perspectiya,
Muitos pesquisadores, em diferentes disciplinas, oy &
critores, observaram que essa necessidade de histérias cons.
titufa talvez nossa especificidade humana e que existia ling
conexio entre crise e narrago. Vladimir Propp dizia que a
narrativa representava uma tentativa de enfrentar tudo 9
que é imprevisto ou infeliz na existéncia humana. £ no que
acredita J. Bruner, quando nota que o que nos impele Para
a narrativa “é precisamente 0 que nao acontece como espe-
ravamos :
tiny}.
“Uma histéria comeca quando, na ordem das coi-
sas, surge uma espécie de brecha que nao esperdvamos:
éa peripeteia de Aristételes. Alguma coisa nio encaixa;
do contrdrio, ‘nao ha nada para contar’.
[..] uma grande histéria nos convida a formular
questées; ela no existe para nos dizer como resolvé-las.
Ela nos fala de uma situagao de crise, do caminho a per-
correr, e no do refigio ao qual ele conduz”.°3
Ou Ivan Almeida: “Através das histérias, nds procura-
mos, em algum lugar do nosso coracao, domesticar o softi-
mento. Um relato é sempre um relato de uma busca [...] s¢
Posso contar para mim mesmo o que perdi, isso quer dizet
que encontrei uma forma diferente de possui-lo para sem
pre”. Ou Pascal Quignard: “Somos uma espécie escrava da
:m n08
ido de
tos
°3 J, Bruner, op. cit., pp. 19 ¢ 22. As grandes narrativas tambér
falam, com frequéncia, da arte que tém os personagens em tirar patt!
situagdes, de encontros, do que descobrem pelo caminho: sao dis
clogios da disponibilidade,
; ale
.,'* Gitado por Fefa Vila, “Vineulos con lecturas y estrategias 4!
tora”, in Palabras por la lectura, op. cit., p. 179.
126 a adversidad?
A arte de ler ou como resistirnarrativa. [...] Nos a espécie parece ser escru
guiada pela necessidade de uma regurgita
sua experiéncia. [...] Essa necessidade da
cularmente intensa em certos mome:
dual ou coletiva, quando de uma depressio ou uma crise, por
exemplo. A narrativa fornece um recurso quase Linico”.35
De fato, em contextos de crise, individual ou coletiva
quem analisou os fatores que trabalham ;
do individuo sublinhou a importancia
qualidade do contato com os outros e
de tecer uma narracdo a partir de experiéncias descosturadas,
dando-lhes sentido, coeréncia, quanto de exprimir suas emo-
s6es diferentemente e compartilhd-las. Como afirma Alejan-
dro Rojas-Urrego, psicanalista colombiano: “Sempre havera,
€ claro, momentos vividos que permanecerao sem tradugio
Possivel, mas a tentativa de formar uma histéria com eles, de
vé-los nio como uma sequéncia de destrogos, mas como um
testemunho capaz de atribuir a esses destrogos um sentido é
certamente, em tais condicgées, a tinica alternativa possivel, a
Gnica abertura para a vida”.56
Pulosamente
Ao Linguistica de
Narrativa é parti-
ntos da existéncia indivi-
Para a reconstrugio
de dois elementos: a
a possibilidade tanto
Essa formulagdo de uma narrativa seria igualmente im-
Portante para as geragGes futuras: assim, os filhos de depor-
tados cujos pais conseguiram falar se consideravam menos
Prejudicados por essa heranca do que aqueles para quem na-
da foi contado.5? Entretanto, nao é qualquer narrativa: varios
deles, cujos pais contaram o que viram e viveram, sofreram
de acessos de panico.5# Todos insistem, lembremos, na im-
‘5 “La déprogrammation de la littérature”, entrevista citada com
Pascal Quignard, pp. 78-9,
* Alejandro Rojas-Urrego, “L’adolescent dans une société violente”,
re, val. 4, n° 3, 2003, p, 390,
+ ane j*berivais ce livre, Paris,
7 Cf, Nadine Vasseur, Je ne Ini ai pas dit que j'écrivais ce livre, Patis,
Nana Levi, 2006,
aun
jon”, int Joyce
* Boris Cyrulnik, “Controverses Ia résilience en que
.. 27
A simbol '
ZaGa0 ea narrativa: poderes e limitesportancia que teve para cles a mediagao e 0 fato de
: ee : que a
deportagio esteja in na historia por meio de livros, fi
mes ou testemunhos,®” gragas aos quais cles se Percebem eo,
mo sujeitos de um destino comum € nao mais como Suporte,
mudos de um conhecimento inenarravel.
O MEDIADOR EM POSIGAO SENSIVEL
Em uma escala mais ampla, se a contribuigio da narra.
tiva quando existe crise ¢ apontada por muitos, sua eficacig
irregular, assim como os dispositivos € condigdes adequadas
para que aconte¢a, s40 menos questionados. Ora, a constru-
cio de uma narrativa nem sempre é facil ou possivel: apés
um episddio doloroso, evita-se 0 que é associado a ele, quase
se nega, o que impede muitas vezes qualquer claboracao de
uma narragio. E nem sempre esta é desejavel, ¢ as variagoes
individuais sao consideraveis: Robert Antelme ou Primo Levi
escreveram muito pouco tempo depois que retornaram dos
campos, enquanto Semprun tentou primeiro esquecer para
sobreviver: “Tive o pressentimento de que escrevendo eu per-
maneceria nessa meméria da morte, e que isso constituiria
algo nefasto, talvez até suicida. Entao, tentei esquecer”.
Imre Kertész fez o mesmo: “Durante varios anos, absoluta-
mente nao me preocupei com Auschwitz, esqueci tudo escru-
pulosamente, e funcionou”.
Estudiosos da reconstrugao psiquica insistem no fato de
que uma narragao de si nao traz forcosamente os beneficios
esperados, especialmente quando realizada pouco depois de
Ain (org,), Résiliences: réparation, élaboration ou eréation®, Paris Ere
2007, p. 43,
5'N. Vasseur, op. cit,
60 Entrevi :
Entrevista com Jorge Semprun, Magazine Littéraire, jan- 2005
128 dade
oie a adversi
A arte de ler ou como resistir 4 adverauma ou uma catastrofe: “A expressio das Viti:
ym rau . 61 c as No.
decorrer de um debriefing do que clas viveram e do que
gentitam é praticamente ineficaz sobre a dor eo impacto
traumdtico provavels do acontecimento”, chega a dizer Mi-
chel Delage, professor de psiquiatria do servigo de satide das
Forgas Armadas. “Foi até mesmo demonstrado agora que o
debriefing poderia ser nocivo. |...] O debriefing nao vale exa-
tamente pelo que as vitimas podem dizer de sua experiéncia.
Ele vale, sobretudo, pela tranquilidade transmitida pelos que
cuidam, por sua presenga reconfortante, pela ajuda ativa,
empatica, protetora, que fornecem no decurso de um verda-
deito acolhimento”.® A regulagao emocional que se pratica
em tais momentos passaria, em grande medida, por uma lin-
guagem nao verbal. Michel Delage complementa: “Nao bas-
ta exprimir a desgraga para ser redimido. Nao basta compar-
tilhar 0 sofrimento para que tudo seja solucionado. E preciso
que essa troca permita sustentar a atividade de pensar”.
Existem também processos narrativos que nao tém ne-
nhum poder transformador, relatos de si mesmo estereoti-
pados, repetidos 4 exaustao, que nao permitem nenhum mo-
vimento diante da lembranga — da mesma forma como exis-
tem jogos aos quais nos entregamos maquinalmente e que
nos fornecem uma simples descarga motora, sem provocar
simbolizacao.
Os que sao mais fecundos trabalham em geral com me-
taforas. Nés os veremos no capitulo 5. Nesse aspecto, a con-
tribuic¢ao da leitura, e, em um ambito mais amplo, das prati-
Cas culturais, a esse relato de si mesmo, permanece pouco
€xplorada, ou as observacées de quem as estudou circulam
ay, «a ‘ :
trevig,,_/&t™® empregado na clinica psicanalitica para designar uma en
“sta que ocorre imediatamente apés um trauma, (N. dos T.)
an : “ile -ésiliemte”
in Résy Mishel Delage, “Résilience dans la famille et famille résiliente”,
Gsiliences..., op. cits pp. 163-5.
sim a imi 9
bolizagio e a narrativa: poderes e limites 7pouco. Em diferentes lugares, 0s mediadores culturais Sse,
guram que puderam, a partir das leituras, e Particularmente
da literatura, reviver um discurso nos casos em que 9,
psicdlogos haviam falhado.& Rebeca Cerda, que trabalhoy
durante muito tempo com criangas ¢ adolescentes em um
servigo de cancerologia na Cidade do México, diz 0 sepuinte,
“Com histérias muito simples vocé consegue fazer com ue
aparecam coisas que 0 psicdlogo nado conseguiu em seis me.
ses”. E Beatriz H. Robledo escreve sobre 0 programa com 0s
jovens desmobilizados do conflito armado na Colémbia: “9
que os psicélogos nao conseguiram em varios meses de tra-
balho, a literatura e a linguagem criativa conseguiram”,
Mas ela insiste em que esse tipo de programa deve ser inva.
tiavelmente multidisciplinar, para que os mediadores cultu-
rais possam ser substituidos por bons psicanalistas ou psicé-
logos, quando deixarem de trabalhar nesse contexto, A ne-
cessidade de ter na equipe um apoio psicolégico “nao con-
vencional” centrado nas emogées, nos afetos, nas relagoes,
surgiu bem cedo; nao se tratava de substituir o trabalho psi-
coterapéutico conduzidos nos abrigos, mas de promover o
trabalho criativo.
Nas instituig6es em que Karine Brutin colabora, o tra-
balho literario favorece a emergéncia das emogées, de pen-
samentos, de claborages que antecedem ou acompanham o
trabalho terapéutico. O encontro com 0 livro coloca o leitor
em movimento e lhe permite se conciliar com a sua vida in-
terior, “suspensa, parada, fraturada pelo sofrimento psiqui-
co”. “O encontro permite a exploragiio e a travessia dos es-
pagos de catistrofe, ao final do trabalho psiquico que se apoia
® E por isso que profissionais encarregados do sofrimento psiquic®
Tecorrem a mediagdes culturais, particularmente a contos. Ver em especid
B. Chouvier (org,), Les Processus psychiques de la médiation, op. cits ®
Lechevalier ef af, (org,), Les Contes et la psychanalyse, op. cit
OR Hy “La li ”
B.H. Robledo, “La literatura en tiempos de guerra”.
130 «oes adyersidade
A arte de ler ou como resistir a adversidno trabalho literdrio. Tornando-se leitor, cada u
qror € autor da propria vida, formulando © seu préprio tex-
t0”.65 Contudo, as vezes esse didlogo € restabelecido & custa
da dor e, em uma escala mais ampla, diz ainda K, Brutin.
“todos 0s livros escondem mistérios Proprios para emocionar
alguns leitores € ameagar outros. [...] Todos 0s livros sao sus-
cetiveis de deixar o leitor em perigo”. Os espagos de leitura
compartilhada podem desencadear coisas bastante fortes, as-
sim como as oficinas de escrita.6©
Ao falar da narrativa, J. Bruner escreve: “Nao existe,
sem dtivida, uma atividade do espirito que forneca tantos
deleites, fazendo com que se corra tamanho perigo”.®7 E ai
os mediadores culturais se encontram em uma Pposigao arris-
cada. Até onde eles podem, até onde elas podem — porque
em geral sao mulheres — se fazer de depositarios das palavras
dos outros, das emogdes e dos pensamentos que uma leitura
vai provocar, das expectativas, dos dramas relatados?®® Se
cles trabalham separadamente, sera que nao correm o risco
de desintegrar as defesas sem poder, necessariamente, estabe-
lecer outras construgdes? Um intercessor cultural nao pode
substituir um profissional do sofrimento psiquico: é ai que
revezamentos, aliancas se fazem necessarias, para quem tra-
balha com pessoas muito fragilizadas,
Em uma parte dos programas, os papéis sao, de saida,
claramente delimitados. Por exemplo, no grupo A Cor da
IM passa a ser
°K. Brutin, op. cit., p. 196.
% “Cuidar de uma oficina de escrita poe em perigo todos os parts
Fates: Pois 0 ato mexe com a prdpria constituigao da identidade”, diz
nsois Bon (Magazine Littéraire, jan. 2005).
° J. Bruner, op. cit., p. 94.
* c : por
exe 4 Eles também passam por duras provas em alguns seaion er
To ntDlo, nas unidades de cuidado intensivo para criangas, onde fo mu
1, Solicitados para levar “apoio emocional”, alguns deles perdem 3
a .
" ©xtrapolam, ficam deprimidos ou doentes.
A simbolizaga 131
Simbolizagio ¢ a narrativa: poderes e limitesLetra, no Brasil, a mediagao da leitura é bem disti
terapia (mesmo que essa mediagao tenha efeito,
cos, ¢ apesar de duas das fundadoras do grupo
peutas); apds uma leitura, um relato pessoal oy u
podem ser recebidos dentro de certo limite, ma:
lugar onde “trabalhar” essa emogao, Existem Para isso pap.
cerias com os psicanalistas a quem os jovens Procuram, Em
outras experiéncias, essa distingao é menos evidente, eo jo,
pode se tornar perigoso: alguns mediadores (Poucos, é yer,
dade) parecem, as vezes, terem sido dominados POF aquilg
que foi desencadeado, nao encontrando meios Para enfrentar
as consequéncias.
Na maior parte dos casos, a leitura tera, ao contrario,
um efeito terapéutico discreto, mesmo se nao é isso que é
buscado; ou as pessoas que se sentirem ameacadas fugirio
rapidamente. fi claro que nao se trata absolutamente de se
intrometer, de forcar a se exprimir aqueles que nao o querem
ou nao conseguem, transformar grupos de leitura em psico-
drama ou em sessdes de confissao publica, mas sim de criar
um clima acolhedor de atengao, no qual a fala sera possivel
em se respeitando certas regras e no qual, na mesma medida,
0 didlogo sera interno,
Eu disse anteriormente que a grande maioria dos me-
diadores de livros cujos trabalhos acompanhei encaravam 0
seu papel como cultural e nio como terapéutico (mesmo que
soubessem, por experiéncia propria e pelo que puderam ob-
Servar, que sua atividade produz também efeitos de recup™
racio). Por exemplo, Paola Roa, que criou um café litera
com jovens de rua em Bogota, fala sobre a posigao do me-
diador: “para apresentar a discussio, preciso me manter an
um terreno sdlido ¢ ter refletido anteriormente sobre 0
tos essenciais; de outra forma, com tudo o que eles ae
como nao sou psicdloga, me parece que as coisas nao fun“ 0
nariam como tém funcionado até o momento, eu teri ve.
de nao saber o que dizer ou sugerir apés cada intervens*
inta de Uma
§ terapayy,
Serem tera.
ma &Mogig
Sai nao é 4
132 a advesibal
A arte de ler ou como resistitAlém disso, oS participantes sempre querem muito conhecer
sobre 0 autor, 0 contexto no qual ele
a I viveu. Apoiar-se
em seu saber literdrio a protege ea situa de maneira diferen-
te do que uma relagdo de “duelo” com os participantes,
NarratIVvas E PODERES
Além disso, é delicado determinar o status da palavra
em determinado grupo cultural, em determinada categoria
social. Sem divida, a necessidade de sentido, de narrativas,
o desejo de dar forma a experiéncia sio universais. Entre-
tanto, de um contexto a outro e dependendo da época, nao
apenas as relagées entre 0 orale o escrito, as representacdes
do livro e as proibicées relativas a esse objeto variam, mas
também as formas da narratividade, as fungoes da palavra e
do siléncio tampouco sao as mesmas. Em uma entrevista, 0
grande escritor mexicano, Juan Rulfo falava do siléncio nos
seguintes termos:
“Minha avé nao falava com ninguém, esse costume
de falar € proprio da regidio da Cidade do México, nao
do interior. Em casa, nés nao falamos, ninguém fala com
ninguém, eu nao falo com a Clara, e ela nao fala comigo,
assim como meus filhos, ninguém fala, nao é o costume,
¢além disso, eu ndo quero comunicar, 0 que eu quero é
me explicar 0 que acontece, e todos os dias eu dialogo
comigo mesmo enquanto atravesso a rua para ira pé ao
Instituto Nacional Indigenista, eu vou dialogando comi-
80 mesmo para me aliviar, falo sozinho. Nao gosto de
falar com og outros”.
lope 5. Ea ficcin dela memoria: Juan Rulfo ante la critica, selegio © prd-
80 de Federico Campbell, México, ERA, 2003, p. 531.
‘ oo 133
A simbotizacao & a narrativa: poderes e limitesTambém no México, quando vivia aos pés do “mais
vo vulcio do mundo”, J.-M. Le Clézio notou que “9 silénn
ali nao é visto como uma falta de fala, mas como uma oun
maneira de se expressar: [...] Quando os mexicanos se calany
6 que tém algo de importante a dizer. [...] As coisas sig com.
preendidas sem que sejam ditas, temos que entendé-las, co.
mo dizemos, com meias palavras, € as vezes até Mesmo sem
nenhuma”.” Ao ler essas entrevistas, lembrei-me de uma
viagem para a Guiana que Patricia Pereira Leite me descre.
veu. O vilarejo indigena em que ela se encontrava estava em
plena atividade, as criangas brincavam e, no entanto, tudo
era silencioso, era possivel ouvir os passaros. Ela foi recebida
pelo “chefe cultural”. Ele costurava um mosquiteiro e lhe
disse: “Minha esposa gostou da formagao, mas ela me disse
que vocés falam demais. Nos ensinamos as criangas a pensa-
rem antes de falar e a ver se o que tém a dizer é mais bonito
que o siléncio”.
No entanto, em tempos de crise, a linguagem reencon-
traria sua utilidade, se J.-M. Le Clézio tem razao quando
escreve;
“A doenga, a loucura, os perigos de morte emer-
gem, de tempos em tempos, ¢ eles niio so acidentes. So
os sinais da necessidade de se expressar. Os povos indi-
genas aprenderam a reconhecer esses sinais, sabem que
a necessidade da linguagem, da pintura e da musica esti
nessas crises. Nao se trata de inventar palavras ou for-
mas. Nao se trata de se distrair (de que enfado?), ov de
exteriorizar os seus estados de alma. Mas quando surge
um desses sinais, ao acaso, no corpo de um homem, de
uma crianga, ou de uma mulher, é que toda a sociedade
, ; f
1 Ailleurs, enteevistas com Jean-Louis Ezine, Paris, Arléas 1995?
ersidad®
134 Iv
stir a ad
A arte de ler ou como resistir 44est4 ameagada. E preciso que a linguagem — essa lin-
guagem que haviamos guardado no Corpo, essa capaci-
dade da mao de tragar circulos, tridngulos ¢ cruzes, essa
capacidade da voz para modular 0 grito dos animais,
tudo o que haviamos contido, refutado —) é preciso que
ela fale, enfim, que ela seja liberada, que ela lance as. suas
vibragGes ¢ que forje seus rastros no mundo. Lenta ex-
plosio da arte”.7!
Varios mediadores de livro, na América Latina, dizem
ficar espantados com 0 siléncio que reina em certas comuni-
dades indigenas — ao menos quando estao presentes. Paulo
Freire analisou essa “cultura do siléncio” que caracteriza,
segundo ele, as sociedades que se tornaram dependentes ¢ que
viraram mudas. Em cada grupo humano, decifrar o siléncio
é uma tarefa complexa: ele exprime um desconforto diante
do que vem da cidade, uma censura para com os tempos
traumatizantes da histéria, uma repressdo da expressao dos
sentimentos (fora de grandes irrupg6es frequentes), uma pre-
feréncia dada a outros modos de simbolizagao, de expressao,
por vias nao verbais? Ou se trata ainda do siléncio dos que
nao aprenderam a linguagem da subjetividade” porque vi-
vem em comunidades que, até recentemente, s6 conheciam o
“nds”, nas quais o “eu” nao tinha lugar? Jack Goody chama
a atengio para o fato de que “nas sociedades orais, as regras
de circulagéo da fala ptblica ou mesmo da fala privada sao
estritas, e raramente favordveis as mulheres” .”3
Tomar a palavra e a pena, eis 0 objetivo de varios mo-
vimentos sociais no decorrer da histéria, unindo homens ¢
71 J.-M. Le Clézio, Hai, Paris, Skira/Flammarion, 1987, pp. 41-2
72 Cf, Claude Dubar, La crise des identités, Paris, PUF, 2000.
73 Jack Goody, Pouvoirs et savoirs de l’écrit, Paris, La Dispute,
P. 237.
2007,
7 a 135
A simbolizagao ¢ a narrativa: poderes ¢ limitesmulheres que nao tinham voz ¢ nao aguentavam maj
‘ 3 . " 'S Out,
falando em scu lugar, A intengao de difundir a culty TOs
TA eserj.
taé sentig
e das narrativas nas maos dos poderes politicos, econémic ‘0
0s,
simbélicos ou domésticos (que sempre foram muito ambiy,
lentes com os seus rivais, os livros), € desses demagogos, ve
tremistas religiosos, gurus ou charlataes que, em tempos de
se, se metem a falar rapidamente.
E também a de nao abandoné-los 4 tinica “ordem de
ferro televisiva”, para retomar as palavras de Armando Pe.
trucci. Nés nao erguemos os olhos da televiséo como os er-
guemos de um livro. Retomo aqui as palavras de Patricia
Correa que coordena um programa de leitura nos hospitais
colombianos, Palabras que Acompafian:”4
mbém, claro, a de nao deixar o monopélio do
cri
“Os que assistem aos doentes assinalam que a oni-
presenga da televisdio domina as maes, que nao tém dis-
ponibilidade fisica e nao falam o suficiente com os seus
filhos. A imposigao constante da imagem e do som nao
deixa espaco as tao preciosas trocas entre mae e filho,
que se sente vulnerdvel. As criancas nao esto em condi-
g6es de reconstruir um espago interno. fai que leitura
se torna essencial: ela transforma a relagéo com a crian-
Ga, que se torna um sujeito”.
Ou as de Daniel Goldin, para quem o nosso mundo se
caracteriza pelo barulho, sendo este “auditivo, mas também
visual ¢ conceitual” (“em qual restaurante, cafeteria ou cet
tro comercial nao encontramos duas ou trés telas de telev
sao e musica ambiente frequentemente desvinculada do que
antido por
a
resa Gl
: da Ame
4 i; é
7 oO Programa de leitura Palabras que Acompaiian € ™
instituigdes piiblicas como Bibliored ¢ Cruz Vermelha, ¢ pela &™
xoSmithKline. Ele é realizado em varios hospitais da Colombia
rica Central,
‘aude
1 cote a ida
= Aaarte de ler ou como resistit & adeaparece na tela?”).”5 Ou ainda M. Castaréde: “Somos in-
yadidos pelo barulho e submetidos a ele; o barulho dispersa
enquanto 0 siléncio une. Apenas algumas experiéncias privile-
giadas nos levam ao silencio unificador”.76 © canto ea psi-
candlise sao exemplos privilegiados; a leitura também, mes-
mo se oral.
Ao forjar suas proprias narrativas a partir de fragmen-
tos encontrados em textos, aquelas e aqueles que participam
de espacos de leitura livremente compartilhados adquiri-
ram melhores possibilidades de se expressar; algumas vezes,
encontraram sua voz sem cair na algazarra. Pelo contrario,
eles também aprenderam a ouvir e a calar. Pois, como diz
Juan Mata: “Discutir é muitas vezes a consequéncia mais
deliciosa da leitura. [...] Ainda que o siléncio também seja
gratificante. As vezes, 0 que foi lido é tao forte, tio cativan-
te, que nao sabemos comunicar seus efeitos, ou talvez nao
devemos”.77
Hoje, nés estariamos em uma “nova ordem narrativa”,
na era do storytelling. No comeco dos anos 1990, nos Esta-
dos Unidos, em resposta a crise do modelo empresarial, os
dirigentes econdmicos teriam redescoberto a importancia das
narrativas para atrair seus trabalhadores nas redes de uma
ficgio comum. Os politicos teriam igualmente apostado nas
narrag6es para mobilizar e instrumentalizar as emog6es, para
ganhar o poder e manté-lo. Da mesma forma, eles mudaram
a mancira de se expressar e passaram a contar historias. “Os
novos relatos que nos propée 0 storytelling”, escreve Chris
tian Salmon, “evidentemente nio exploram as condigées de
*5 Daniel Goldin, “El album: un género que pone en crisis nuestro
Acercamiento a la lectura”, Nuevas Hojas de Lectura, Bogoti, 11.
76 M.-F. Castaréde, La Voix. op. cit, p. 217.
is 77 Juan Mata, “Fuera de s(”, in Palabras por la lectura, op. cit. P.
1,
Asimb -
Olizago ¢ a narrativa: poderes ¢ limitesuma experiéncia possivel, mas as modalidades de bmi
Jo”.7* E por isso que, segundo ele, “a luta dos home Mis.
sua emancipagio nio poderia ser satisfeita por esses. Por
poderes; cla passa pela reconquista de seus meios de pov
jo e de narragio”.”? Pres.
7 C. Salmon, Storytelling, op. cit., p. 199.
7 Ibid., p. 212,
, ade
138 Aarte de ler ou como resistir 8 avers