Aula 8: Reações Heterogêneas II
Prof. Gabriel de Castro Fonseca (DQBIO/UFSJ)
Projeto de Biorreatores
Contextualização
Onde foi que nós para- Na última aula deduzimos a equação para o balanço
mos? material em uma partícula de catalisador esférico onde
ocorre simultaneamente difusão e reação. Considera-
mos estado estacionário e obedecendo a algumas con-
dições razoáveis em bioprocessos, como partícula de
catalisador isotérmica e coeficiente de partição unitá-
rio. O balanço material resultou em uma equação di-
ferencial de segunda ordem que não pudemos resolver
diretamente sem estabelecer uma expressão para a ve-
locidade de reação (vA ).
d2 CA 2 dCA
!
DAB + + vA = 0 (1)
dr 2 r dr
O objetivo da aula de hoje é resolver essa equação de
balanço e encontrar o perfil de concentração no cata-
lisador considerando que a velocidade de reação obe-
dece a uma cinética de ordem zero, de primeira ordem
e a equação de Michaelis-Menten.
Ordem Zero
Como seria o perfil de Considerando uma reação de ordem zero, podemos
concentração em uma es- substituir vA = −k na Equação (1)
fera para uma reação de
ordem zero? d2 CA 2 dCA k
+ − 0 =0 (2)
dr 2 r dr DAB
onde k0 é a constante intrínseca de velocidade de
reação e seu valor dependerá da densidade de biocata-
lisadores na partícula.
A Equação (27) é uma EDO linear e de segunda or-
dem. Essa equação pode ser resolvida pelo Método
dos Coeficientes Indeterminados adivinhando-se uma
função que pode ser solução para a equação e encon-
trando seus coeficientes. Esta equação em particular
contém uma derivada segunda somada a uma derivada
primeira dividida por r e somada a uma constante. Tudo
isto é igual a zero.
1
Como seria o perfil de Um bom palpite para a solução do problema seria um
concentração em uma es- polinômio de segundo grau, afinal sua derivada se-
fera para uma reação de gunda é uma constante, sua derivada primeira é função
ordem zero? de r e ao ser dividida por r também se tornará cons-
tante e ao se somar outra constante o resultado pode
ser igual a zero. Supondo uma solução polinomial e
substituindo-a na Equação (27),
CA (r) = ar 2 + br + c (3)
dCA
= 2ar + b (4)
dr
d2 CA
= 2a (5)
dr 2
2 k
2a + (2ar + b) − 0 = 0
r DAB
2b k
6a + − 0 =0 (6)
r DAB
Precisamos aplicar condições de contorno para deter-
minar os coeficientes do polinômio. Em primeiro lugar,
podemos usar a condição de que a concentração de
substrato na superfície externa da esfera (r = R) é co-
nhecida. Por exemplo, se a difusão externa for muito
rápida, pode-se assumir que a concentração na super-
fície da partícula é igual à concentração no seio da so-
lução. A segunda condição de contorno é que o perfil
de concentração no interior da esfera é simétrico, isto
é, há um mínimo de concentração de substrato no cen-
tro da esfera. Essas condições de contorno podem ser
resumidas pelas equações
CA (R) = CAs (7)
!
dCA
=0 (8)
dr r=0
Aplicando a segunda condição de contorno à Equa-
ção (4), conclui-se que b = 0. Alternativamente à Equa-
ção (8), poderia-se usar também como condição de
contorno a exigência de a concentração de substrato
ter valor finito em r = 0, o que também forçaria b = 0 na
Equação (6). Isolando a nessa mesma equação,
k0
a= (9)
6DAB
Finalmente, substituimos o valor de a encontrado e apli-
carmos a primeira condição de contorno à Equação (3),
CA (R) = aR2 + c = CAs
=⇒ c = CAs − aR2
CA (r) = CAs + a(r 2 − R2 )
k0
CA (r) = CAs + (r 2 − R2 ) (10)
6DAB
O perfil de concentração de substrato na partícula é pa-
rabólico, como supomos.
2
Figura 1: Perfis de concentração em partícula esférica com difusão
e reação de ordem zero.
1
R<Rmax
R<Rmax
0.8
concentração
0.6
0.4
0.2
0
1 0.5 0 0.5 1
raio
Essa solução é sempre vá- Existe um problema com as condições de contorno
lida? que escolhemos para resolver nosso problema. Nós
assumimos que o perfil de concentração tinha um
mínimo no centro da esfera, o que é uma consideração
plausível.
No entanto, não podemos descartar também a
possibilidade de que a partícula de catalisador seja
grande demais e o substrato se esgote antes de chegar
ao centro da esfera. Uma condição de contorno mais
geral, portanto, seria a de que o mínimo de concentra-
ção é alcançado já em um raio r = R0 ≥ 0. Trocando a
condição de contorno da Equação (8) por
!
dCA
=0 (11)
dr
r=R0
Escolhemos esta condição de contorno em vez de
CA (R0 ) = 0 para garantir que a curva seja suave. Apli-
cando as Equações (7) e (11) ao polinômio da Equa-
ção (3) como condições de contorno, obteríamos
k0 1 1
CA (r) = CAs + r 2 − R2 + 2R30 − (12)
6DAB r R
Essa equação vale para r > R0 , para r ≤ R0 , CA (r) = 0.
A dificuldade em utilizar a Equação (12) é que R0 ge-
ralmente não é conhecido. Além disso, o esgotamento
do substrato antes de o centro da esfera ser alcançado
não é uma situação desejável, pois nesse caso as
enzimas e células imobilizadas na região 0 < r < R0
seriam desperdiçadas e poderiam sofrer desativação
(morte celular por falta de substrato, por exemplo).
Para evitar esse problema, podemos usar a Equa-
ção (10) para calcular o máximo raio permitido para o
catalisador esférico que evita o esgotamento de subs-
trato antes do centro da partícula. Basta resolvermos a
equação para CA = 0 quando r = 0, de onde resultaria
r
6DAB CAs
Rmax = (13)
k0
3
Primeira Ordem
Como seria o perfil de Substituindo uma lei de velocidade com cinética de pri-
concentração em uma es- meira ordem vA = −k1 CA na Equação (1),
fera para uma reação de
primeira ordem? d2 CA 2 dCA k
+ − 1 CA = 0 (14)
dr 2 r dr DAB
onde k1 é a constante intrínseca de velocidade. Embora
esta equação diferencial de segunda ordem seja linear,
sua solução a primeira vista não é tão óbvia quanto a
da Equação (27). É possível, no entanto, simplificar essa
equação fazendo uma substituição de variável conveni-
ente
y = CA r (15)
Colocando as derivadas primeira e segunda que apare-
cem na Equação (14) em função de y,
dCA d y 1 dy y
= = − (16)
dr dr r r dr r 2
d2 CA
!
d 1 dy y
= −
dr 2 dr r dr r 2
1 d2 y 2 dy 2y
= − + (17)
r dr 2 r 2 dr r 3
Substituindo (16) e (17) na Equação (14),
1 d2 y 2 dy 2y 2 1 dy y
!
k y
− + + − − 1 =0
r dr 2 r 2 dr r 3 r r dr r 2 DAB r
d2 y k
= 1 y (18)
dr 2 DAB
A Equação (18) é muito mais simples de resolver do
que a Equação (14). Podemos supor que a solução
y(t) é uma função que após ser diferenciada duas
vezes continua sendo proporcional a si mesma, o que é
característico de funções exponenciais.
E cada vez que se deriva uma função exponencial,
ela é multiplicada por uma constante. Tirando a raiz
quadrada da constante que acompanha q y no lado
k1
direito da equação, podemos definir a = DAB , que
deve ser a constante que acompanha a variável inde-
pendente na exponencial. A solução geral, do nosso
problema deve, portanto, ser a combinação linear
y(r) = c1 ear + c2 e−ar (19)
Isso pode ser verificado derivando-a duas vezes:
dy
= a (c1 ear − c2 e−ar ) (20)
dr
d2 y
= a2 (c1 ear + c2 e−ar ) (21)
dr 2
d2 y
= a2 y ≡ Equação (18)
dr 2
4
Como seria o perfil de Para encontrar uma solução específica para a esfera,
concentração em uma es- podemos usar as mesmas condições de contorno im-
fera para uma reação de postas ao problema de ordem zero, mostradas nas
primeira ordem? Equações (7) e (8). É preciso, entretanto, escrever es-
sas condições que estão em termos de CA em função
da nova variável dependente y = CA r. Para a primeira
condição de contorno isso é muito simples:
CA (R) = CAs
=⇒ y(R) = CAs R (22)
Para a segunda condição de contorno, a adaptação é
mais complicada.
!
dCA
=0
dr r=0
! " #
dy d
=⇒ = (CA r)
dr r=0 dr
r=0
! !
dy dCA
= CA (0) + r (23)
dr r=0 dr r=0
A condição de contorno nos diz que quando r = 0,
dy
dr = CA (0), que é a concentração de substrato no cen-
tro da partícula, um valor constante. No entanto, ao
contrário de, CAs , o valor de CA (0) é muito difícil de esti-
mar ou medir. Podemos nos livrar dessa contante deri-
vando a Equação (23) mais uma vez.
!
d2 y
=0 (24)
dr 2 r=0
Substituindo a condição de contorno da Equação (24)
na Equação (21) obtemos c1 = −c2 . Aplicando a condi-
ção de contorno da Equação (22) à Equação (19),
y(R) = c1 (eaR − e−aR ) = CAs R
C R CAs R
=⇒ c1 = aR As −aR = (25)
e −e 2 senh(aR)
Substituindo c1 na Equação (19),
CAs R ear − e−ar
y(r) =
senh(aR) 2
q
k1
R senh(r DAB )
CA (r) = CAs · q (26)
r
senh(R Dk1 )
AB
Resumo
Condição de simetria A condição de simetria é válida para partículas esféri-
cas com distribuição homogênea de biocatalisadores.
O diâmetro da esfera não deve ser tão grande que a
concentração de substrato caia a zero antes do centro.
5
Figura 2: Comparação entre perfis de concentração em partícula
esférica para reações de ordem zero, primeira ordem e cinética de
Michaelis-Menten. Os parâmetros das equações foram escolhidos
de modo que as concentrações no centro fossem iguais.
1.1
ordem zero
1 primeira ordem
Michaelis-Menten
0.9
0.8
concentração
0.7
0.6
0.5
0.4
0.3
0.2
0.1
1 0.5 0 0.5 1
raio
Michaelis-Menten
Como seria o perfil de Substituindo a cinética de Michaelis-Menten na Equa-
concentração em uma ção (1),
esfera para uma rea-
d2 CA 2 dCA
!
ção com cinética de 1 vmax CA
+ − · =0 (27)
Michaelis-Menten? dr 2 r dr DAB Km + CA
onde vmax e Km são parâmetros cinéticos intrínsecos.
Diferentemente das outras equações diferenciais que
resolvemos, está é não linear e não tem solução
analítica. É preciso recorrer a métodos numéricos
para encontrar sua solução, mas é possível fazer
uma estimativa qualitativa do perfil de concentração
esperado de uma reação que segue a cinética de
Michaelis-Menten.
Observe que a cinética de Michaelis-Menten está
em algum lugar entre a cinética de ordem zero e a de
primeira ordem. Quando a concentração de substrato
é muito grande, isto é, CA Km ,
vmax CA
vA = − ≈ −vmax (28)
K
m + CA
ou seja, para altas concentrações de substrato (pró-
ximo à superfície externa da partícula), a velocidade de
reação é aproximadamente de ordem zero (vmax ≈ k0 ).
Por outro lado, para concentrações de substrato muito
pequenas, ou seja, CA Km
vmax CA v
vA = − ≈ − max CA (29)
Km +
CA
Km
ou seja, para baixas concentrações (próximo ao cen-
tro da partícula), a velocidade de reação é aproximada-
mente de primeira ordem ( vKmax ≈ k1 ).
m
6
Figura 3: Perfil de concentração de substrato em uma placa plana
infinita coberta por um biofilme.
Biofilmes
Como seria o perfil de Dedicamos nossa atenção até agora a partículas
concentração em uma ge- esféricas de catalisador. Se uma outra geometria for
ometria diferente? considerada, porém, o perfil de concentração encon-
trado será diferente.
Fora a geometria esférica, que é útil para modelar
biocatalisadores imobilizados, a geometria de maior in-
teresse para bioprocessos é a de uma superfície plana.
Quando uma população de microrganismos cresce
sobre uma superfície ela se insere em uma matriz
de substâncias poliméricas extracelulares produzida
pela própria comunidade de células. Esse sistema é
chamado de biofilme.
Biofilmes se formam naturalmente, por exemplo,
nos seus dentes (placa bacteriana). Na indústria seu
uso é comum, por exemplo, no tratamento de esgoto,
onde águas residuárias passam por filtros contendo
biofilmes contendo microrganismos que digerem com-
postos orgânicos. Uma outra aplicação interessante é
em células combustível microbianas (microbial fuel cell,
MFC ), onde bactérias em biofilmes são usadas para
gerar eletricidade conforme transferem elétrons para
um anodo ao degradar um substrato.
Biofilmes também são comuns na indústria de ali-
mentos, mas nesse caso são indesejáveis, podendo
contaminar alimentos, aumentar a corrosão e afetar a
transferência de calor em biorreatores.
7
Como seria o perfil de Biofilmes podem ser modelados como superfícies
concentração em um bio- planas, mesmo que a superfície de suporte seja curva,
filme? uma vez que a espessura do filme é muito pequena
comparada ao raio de curvatura de um tanque de
fermentação, por exemplo.
Para simplificar a modelagem, podemos considerar
uma superfície plana de área infinita (essa suposi-
ção permite tratar o problema como unidimensional)
coberta por um biofilme de espessura b conforme a
Figura 3.
fazendo-se as mesmas suposições que fizemos para
o balanço em uma superfície esférica (estado esta-
cionário, partícula isotérmica, partícula homogênea,
etc.), o balanço de massa, através de um elemento de
espessura ∆z, seria dado por
Entra − Sai + Reage = Acumula
dCA dCA
DAB − DAB + vA ∆z = 0
dz z+∆z dz z
No limite quando ∆r → 0,
d2 CA
DAB + vA = 0 (30)
dz2
Considerando-se uma cinética de primeira ordem, vA =
−k1 CA ,
d2 CA k
2
= 1 CA (31)
dz DAB
Observe que a Equação (31) é exatamente igual à Equa-
ção (18), mas já está em função de CA (z), em vez de
uma variável auxiliar y. O procedimento de resolução
é similar e as condições de contorno nesse caso serão
CA (b) = CAs (32)
dCA
=0 (33)
dz z=0
Resolvendo o problema de forma análoga a como fi-
zemos para a partícula esférica, encontraremos neste
caso a solução
q
k1
cosh(z DAB )
CA = CAs q (34)
k1
cosh(b DAB )
Bibliografia
[1] P.M. Doran. (2013). Bioprocess Engineering Principles. Academic Press. 2a ed., Capítulo 13.
[2] H.S. Fogler. (2004). Elementos de Engenharia das Reações Químicas, 4a ed. Capítulos 11 e 12.