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SILVA e HENNING Natureza e Cultura REMEA 24

Este artigo tem como objetivo problematizar como as relações do humano com o mundo natural vão acontecendo no decorrer da história, especialmente a partir do século XVI. O recorte é dado devido ao nascimento da ciência que aí se estabelece criando outras condições para o mundo natural. São tomados alguns acontecimentos que evidenciam o domínio humano sobre a natureza criando condições de possibilidade para a emergência daquilo que se conhece hoje como crise ambiental. Na companhia de alguns auto

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Paula Henning
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SILVA e HENNING Natureza e Cultura REMEA 24

Este artigo tem como objetivo problematizar como as relações do humano com o mundo natural vão acontecendo no decorrer da história, especialmente a partir do século XVI. O recorte é dado devido ao nascimento da ciência que aí se estabelece criando outras condições para o mundo natural. São tomados alguns acontecimentos que evidenciam o domínio humano sobre a natureza criando condições de possibilidade para a emergência daquilo que se conhece hoje como crise ambiental. Na companhia de alguns auto

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Natureza e cultura ou naturezas-culturas?

Problematizando as relações
humanas com o mundo natural e seus efeitos na crise ambiental
Cíntia Gruppelli da Silva 1
Universidade Federal do Rio Grande – FURG
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4971-6822

Paula Corrêa Henning 2


Universidade Federal do Rio Grande – FURG
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3697-9030

Resumo: Este artigo tem como objetivo problematizar como as relações do humano com o mundo natural vão
acontecendo no decorrer da história, especialmente a partir do século XVI. O recorte é dado devido ao
nascimento da ciência que aí se estabelece criando outras condições para o mundo natural. São tomados alguns
acontecimentos que evidenciam o domínio humano sobre a natureza criando condições de possibilidade para a
emergência daquilo que se conhece hoje como crise ambiental. Na companhia de alguns autores como Leandro
Guimarães et al. (2009), Keith Thomas (2010), Paula Henning (2008, 2012, 2019), Juliana Coutinho (2017), Anna
Tsing (2019), Ailton Krenak (2020), Donna Haraway (2021), entre outros, foram mapeadas múltiplas narrativas
do que vem a ser natureza. Assume-se o assento teórico a respeito das verdades sobre a natureza serem
produzidas pela cultura e os modos de vida que experienciamos. A intenção do artigo é pensar em como
chegamos até aqui e quais possibilidades de outros modos de existir e conviver com a natureza, vislumbrando o
desejo de expandir a vida e compondo outros modos de existência na convivência com.
Palavras-chave: natureza, cultura, modernidade, crise ambiental, convivência multiespécies.

¿Naturaleza y cultura o naturaleza-culturas? Cuestionando las relaciones


humanas con el mundo natural y sus efectos en la crisis ambiental

Resumen: Este artículo tiene como objetivo problematizar cómo se dan las relaciones humanas con el mundo
natural a lo largo de la historia, especialmente a partir del siglo XVI. El corte se da debido al nacimiento de la
ciencia que allí se establece, creando otras condiciones para el mundo natural. Se toman algunos hechos que
evidencian el dominio humano sobre la naturaleza, creando condiciones de posibilidad para el surgimiento de lo
que hoy se conoce como crisis ambiental. En compañía de algunos autores como Leandro Guimarães et al. (2009),
Keith Thomas (2010), Paula Henning (2008, 2012, 2019), Juliana Coutinho (2017), Anna Tsing (2019), Ailton
Krenak (2020), Donna Haraway (2021), entre otros, fueron mapeados múltiples narrativas de lo que llega a ser

1
Técnica em Artes Gráficas – UFPel; Mestre em Educação – IFSul; Doutoranda em Educação Ambiental – FURG;
Membro GEECAF - FURG. E-mail: [email protected]
2
Doutora em Educação, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e do Programa de
Pós-Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Líder do Grupo de
Estudos em Educação, Cultura, Ambiente e Filosofia -GEECAF/FURG. Bolsista Produtividade do CNPq 2. Rio
Grande, Brasil. E-mail: [email protected]
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la naturaleza. El asiento teórico se asume sobre las verdades sobre la naturaleza que produce la cultura y los
modos de vida que experimentamos. La intención del artículo es pensar cómo llegamos aquí y qué posibilidades
hay de otras formas de existir y convivir con la naturaleza, vislumbrando el deseo de expandir la vida y
componiendo otras formas de existencia en la convivencia.
Palabras-clave: naturaleza, cultura, modernidad, crisis ambiental, convivencia multiespecies.

Nature and culture or nature-cultures? Questioning human relations


with the natural world and its effects on the environmental crisis

Abstract: This article aims to discuss how human relationships with the natural world have taken place
throughout history, especially from the 16th century onwards. The cut is given due to the birth of science that is
established there creating other conditions for the natural world. Some events are taken that show the human
dominion over nature, creating conditions of possibility for the emergence of what is known today as an
environmental crisis. In the company of some authors such as Leandro Guimarães et al. (2009), Keith Thomas
(2010), Paula Henning (2008, 2012, 2019), Juliana Coutinho (2017), Anna Tsing (2019), Ailton Krenak (2020),
Donna Haraway (2021), among others, multiple narratives of the which becomes nature. The theoretical seat is
assumed regarding the truths about nature being produced by the culture and the ways of life that we
experience. The intention of the article is to think about how we got here and what possibilities of other ways of
existing and living with nature, envisioning the desire to expand life and composing other ways of existence in
living with.
Keywords: nature, culture, modernity, environmental crisis, multispecies coexistence.

Introdução

Vivemos um tempo em que tudo na vida é transformado em mercadoria: nossos


desejos, nossa força de trabalho, relacionamentos, o tempo, a natureza... E, ao pensar em
nossas relações com o mundo natural na atualidade, algumas questões insistem em ecoar
dentro de nós: é possível escapar dessas formas monetárias de vida? O que é capaz de nos
afetar, tocar, a ponto de nos impulsionar a teimar e agir em prol das múltiplas coletividades
humanas e não humanas que coexistem, transformando o cenário de que nós somos os
destruidores de nosso habitat? De que maneira podemos nos sentir inseridos e partes da
natureza, deixando crescer em nós o estranhamento, o sensível e o pensamento em direção a
outros modos de vida ecológicos, e não só como exploradores e objetificadores da natureza
como tão bem a história nos apresenta?
Este artigo tem como objetivo problematizar como as relações do humano com o
mundo natural vão acontecendo no decorrer da história, principalmente com um olhar para o
século XVI, quando a ciência emerge como verdade absoluta, até o tempo presente. Para isso,
são tomados alguns acontecimentos para potencializar a escrita, mostrando o domínio
humano sobre a natureza que dá condições para a emergência do que atualmente chamamos
de crise ambiental. Na companhia de alguns autores como Leandro Guimarães et al. (2009),
Keith Thomas (2010), Paula Henning (2008, 2012, 2019), Juliana Coutinho (2017), Anna Tsing
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(2019), Ailton Krenak (2020), Donna Haraway (2021), entre outros, foram mapeadas múltiplas
narrativas do que vem a ser natureza, permeadas pelas verdades produzidas pela cultura de
algumas sociedades.

Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a


humanidade. Enquanto isso – enquanto o seu lobo não vem –, fomos nos alienando
desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma
coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa
que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu
consigo pensar é natureza (KRENAK, 2020, p. 16-17).

Para início de conversa, junto com Krenak (2020) e pensando filosoficamente com
Alfredo Culleton, tomamos natureza como sendo

[...] o conjunto de tudo o que existe, o mundo, o universo, mas igualmente o que
singulariza algo existente, seu princípio ou sua essência. O radical latino, assim como
seu equivalente grego, remetem ao que nasce (nasci) e se desenvolve (fýomai,
brotar, crescer). A natureza está então do lado do vivente, do que é susceptível de
reprodução e de corrupção: o instável. Ao mesmo tempo, a natureza é o que se
mantém, o permanente, o estável, ao lado do ser e da ordem (2006, p. 43, grifos do
autor).

A partir dos filósofos e autores que estudamos, consideramos que toda a verdade é
fabricada, e nossas subjetividades produzidas por uma maquinaria tecnológica capitalística
que constantemente nos ensina como devemos perceber o mundo e como devemos nos
comportar diante da crise ambiental e da natureza, produzindo discursos engendrados na
cultura, orientando nossos modos de viver. Cabe destacar aqui, nas palavras de Henning
(2012), que entendemos a cultura como um conceito alargado, que produz sentidos nas
formas de ser e viver, significando as verdades do nosso tempo. É a partir da cultura que vamos
sendo orientados a determinado olhar sobre e em relação ao mundo. Para a autora,

[...] não há dúvida de que a fabricação da verdade se dá nos interstícios da cultura.


Fabricamos a verdade e a produzimos a partir de discursos que fazemos circular
como verdadeiros. Nossas opções e escolhas não são questões privadas, são, pelo
contrário, governadas por um conjunto de valores que nos cerca e direciona nosso
olhar para o que convencionamos chamar de certo, bem e verdadeiro. (IDEM, p. 7,
grifos da autora).

Ao recuperarmos o horizonte histórico, podemos ressaltar o racionalismo moderno


despontando nas bases da educação e da ciência que (nas figuras de Galileu Galilei, Francis
Bacon, René Descartes e Isaac Newton) se apresentam com o poder de promover o progresso

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e o desenvolvimento a qualquer custo. Emerge, então, com toda força a era do Antropoceno 3:
“Uma nova ética se consolida: a ética antropocêntrica. As explicações religiosas já não dão
conta sobre os acontecimentos terrestres. É este humano que poderá, a partir do crivo
científico, explicar as coisas do mundo” (HENNING, 2019, p. 773). A natureza e o tempo são
mercantilizados. “Relações de mercado, natureza e lógica temporal antropocêntrica passam a
formar um sistema complexo de inter-relações” (GRÜN, 1996, p. 25). Esse modelo inaugura
uma nova razão em que os valores divinos vão, paulatinamente, perdendo força para os
valores humanos, dividindo cultura e natureza e impondo dicotomias: sujeito e objeto; mente
e corpo; razão e emoção, bem e mal... Viviane Mosé, filósofa contemporânea, vai corroborar:

Um novo modelo de humano é a grande invenção da modernidade, uma nova


subjetividade. É este novo sujeito, racional, objetivo, claro que vai levar adiante o
sonho de uma sociedade controlada pela inteligência humana, pela técnica, projeto
que permanece vivo em nosso tempo. Com a modernidade, enfim, a humanidade
passou a depender não mais de Deus, mas da ciência, ou melhor, dos cientistas, dos
seres humanos (MOSÉ, 2018, p. 36).

Essa ética está intimamente ligada ao mecanicismo, na qual a natureza perde sua
concepção orgânica para se tornar algo sem vida. “A natureza de cores, tamanhos, sons,
cheiros e toques é substituída por um mundo ‘sem qualidades’. Um mundo que evita a
associação com a sensibilidade” (GRÜN, 1996, p. 27, grifo do autor). É preciso, ainda, que a
razão aprisione os instintos, emoções e paixões que possam desviar a razão humana do
controle de si mesmo e da vida. Desse modo, houve uma desconexão, um afastamento do ser
humano com seu jeito de ser natureza que aparece, principalmente, com a emergência do
Humanismo. É o advento da ciência como uma verdade universal e absoluta que vai mudando
essa relação.
O interesse por adentrar nesses acontecimentos se dá por querer perscrutar algumas
marcas que provocaram a emergência da crise ambiental, e que ecoam até os dias de hoje, se
atualizando em discursos que orientam nossas maneiras de enxergar o mundo. O desejo é de,
conhecendo o que se sucedeu na história, talvez criar vias inventivas para atuarmos como

3
Adotamos o conceito de Antropoceno com inicial maiúscula a partir dos estudos de Anna Tsing e Juliana
Coutinho. É um conceito usado pelas autoras, pelas Ciências Humanas e pelas Ciências da Natureza que se refere
aos impactos e influências da participação humana na transformação dinâmica ambiental do nosso planeta
(TSING, 2019; COUTINHO; 2017).
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pesquisadores atentos ao que acontece ao nosso redor, expandindo o desejo de viver e olhar
para outras possibilidades de viver com.
Com esse objetivo, dividimos o artigo em quatro seções. Nesta primeira,
apresentamos os contornos do estudo e as aproximações com a dicotomia que, pouco a
pouco, foi se produzindo entre humano e natureza. A próxima seção discute sobre os modos
de enxergar o humano apartado da natureza, compondo outros modos de relação que
experienciamos junto ao nascimento da ciência. Na sequência, o texto investe em
problematizar atravessamentos que foram possíveis, justo porque o nascimento da ciência se
fez imperioso; ora assumindo a potência do humano sobre a natureza, ora questionando essa
relação. Fechamos o texto discutindo sobre nossas relações com a natureza e as possibilidades
de criação e invenção que passam, inexoravelmente, pelos nossos modos de enxergar e
tensionar aquilo que somos.

Humanidade e Natureza: uma cisão a favor da ciência moderna

Talvez estejamos muito condicionados a uma ideia de ser humano e a um tipo de


existência. Se a gente desestabilizar esse padrão, talvez a nossa mente sofra uma
espécie de ruptura, como se caíssemos num abismo. Quem disse que a gente não
pode cair? Quem disse que a gente já não caiu? (KRENAK, 2020, p.57).

Que ideia de humano criamos? Quais nossos modos de enxergar a natureza?


Potencializadas por essas discussões, recorremos a acontecimentos da modernidade para
entender como nos constituímos naquilo que somos. Assim, fizemos, objetivamente, um
recorte na história e buscamos entender algumas repercussões produzidas pelo nascimento
da ciência, no século XVI. Concordamos com Krenak que talvez seja possível desestabilizarmo-
nos quando entendermos as nossas condições históricas e culturais de existência. Talvez
olhando com acidez para nossas marcas históricas possamos inventar outras possibilidades de
existir e conviver no contemporâneo.
Os modos como fomos tecendo as nossas relações com a natureza criaram verdades
e formas específicas de enxergá-la. Aliamo-nos com Guimarães (2008) e compreendemos que
não existe uma única forma de ver, ler, narrar e se relacionar com a natureza; essa
multiplicidade encontra-se conectada às representações culturais (relações de amizade,
grupos que fazemos parte, programas que vemos na televisão, revistas e livros que lemos...),
as quais circulam pela sociedade, num dado momento histórico que vivemos. “[...] é na
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cultura, nesse espaço de circulação e compartilhamento de significados, que vamos
aprendendo a lidar com a natureza e, também, vamos estabelecendo nosso lugar no mundo,
ou seja, sabendo quem nós nos tornamos dia a dia” (IDEM, p. 88). Sendo assim, podemos dizer
que esses múltiplos olhares são constituídos coletivamente e vão ganhando força,
considerando a importância da história e dos discursos produzidos através dos códigos
sociais/culturais que compartilhamos (GUIMARÃES, 2008).
Para início de conversa, invocamos Peters (2000, p. 13) que nos diz: “[...] o
modernismo, pode ser visto, na filosofia, como um movimento baseado na crença no avanço
do conhecimento, desenvolvido a partir da experiência e por meio do método científico”. A
natureza pode ser então dissecada pelo ser humano, pois tudo está centrado numa via
racional. Nada acontece por acaso e tudo já está predeterminado a ser de uma forma, desde
que esteja dentro de um método. Essa concepção de natureza vai fazer parte da grande
revolução epistemológica e cultural que vai emergindo no século XVI na Europa, com a grande
perspectiva de um pensamento mercantilista: o projeto Iluminista da Modernidade. Francis
Bacon (na Inglaterra) e René Descartes (na França) acompanham toda a mudança histórico-
cultural que se instaura na época.
Diferente dos pensadores medievais, os estudiosos desse período e em diante,
começaram a criticar os pensamentos elevados a Deus, afirmando a autonomia da razão
natural humana. Ou seja, Bacon (com suas obras Novum Organum e A dignidade e o
crescimento das ciências) critica a tradição escolástica 4 e se alia à técnica, instaurando um novo
pensamento que vai mudar toda a visão de ser humano e de natureza; alargando o espaço ao
Antropocentrismo. Em seus estudos Henning vai argumentar que:

Muitas transformações culturais, sociais, econômicas, religiosas, políticas ocorreram


no período chamado Renascimento. Um conflito entre um mundo nascente e um
mundo já desgastado parece trazer outros tons e olhares para este tempo. Teorias
do geocentrismo para o heliocentrismo; advento do humanismo; engrandecimento
do homem; razão como elemento fundamental do humano; novos modos de fazer
ciência são alguns dos acontecimentos que fazem nascer uma outra ordem para o
mundo ocidental (2019, p. 768).

4
Escolástico é o “[...] pensamento cristão da Idade Média, baseado na tentativa de conciliação entre um ideal de
racionalidade, corporificado especialmente na tradição grega do platonismo e aristotelismo, e a experiência de
contato direto com a verdade revelada, tal como a concebe a fé cristã. [...] personalidades intelectuais como
Alberto Magno (1200-1280) e Tomás de Aquino (1227-1274) seguem uma forte orientação aristotélica e supõem
a harmonia parcial entre fé e razão” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1206, grifos dos autores).
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Para Bacon, é a partir da técnica e do empirismo que o homem será capaz de dominar
e intervir na natureza, transformando o conhecimento em algo útil para a vida humana. Nesse
momento, em nome de uma objetividade, é que acontece um apagamento da relação do ser
humano com a natureza, ficando cada vez mais explícito, com a figura de René Descartes (logo
após, no séc. XVII), essa estreita relação entre poder e saber que emerge com a ciência como
verdade absoluta, criando, assim, uma tensão entre ciência, técnica e natureza que nos
acompanha até hoje em nossas relações com o mundo natural.
Como argumenta Henning (2019), os ditos “Saber é poder” de Bacon e “Penso, logo
existo” de Descartes constituem-se como fundamentos do pensamento moderno. “É a partir
deles e com eles que a ciência – enquanto inscrita na Modernidade – passa a existir. A
imponência do saber e a lógica cartesiana explicam as coisas do mundo. Mas não é somente
isso. Além de explicar, agem sobre ele. Um de seus objetos de domínio é a natureza” (p. 765).
Para a autora, um novo paradigma epistemológico se instaura determinando outras formas de
ver o mundo, principalmente com as descobertas da Matemática, da Física e da Astronomia
na Europa do século XVI. E ainda vai afirmar:

Entendo a Modernidade como o local privilegiado em que saem de cena os mitos, as


religiões, a filosofia e o homem assume o personagem principal em uma época em
que o advento da ciência, através das suas mãos, toma forma e constitui-se no
regime de verdade corporificado através das metanarrativas favorecedoras de um
único saber legítimo (HENNING, 2008, p. 62).

Acompanhando o pensamento de Bacon, Descartes, com sua obra Discurso do


Método, afirma ainda mais a dualidade mecanicista que a metodologia científica moderna
instituiu no modo como passamos a conceber o mundo: cultura/natureza, sujeito/objeto,
razão/emoção, corpo/mente... Além disso, o filósofo afirma a superioridade do ser humano
em relação aos animais. Para ele, o comportamento dos animais estava ligado apenas ao mero
impulso/instinto natural implantado por Deus, e, por isso, não tinham capacidade de
raciocínio, não sentiam dor e nem tinham qualquer sensação.
Por outro lado, existia uma frente opositora ao pensamento cartesiano, que falava na
culpa do homem sobre a exploração da criação bruta e reconheciam o sofrimento dos animais:
“[...] suscitava dúvidas sobre os motivos de um Deus capaz de permitir que os bichos
sofressem misérias não merecidas em tal escala” (THOMAS, 2010, p. 43). No entanto, a
ascensão de um novo mundo, marcada pela ciência, assumia um discurso de verdade, e a
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argumentação de Descartes, em nome da ciência, fazia crer que os animais eram máquinas
sem almas feitas por Deus, disponíveis ao domínio do homem.
Se prestarmos atenção na atualidade, nos deparamos ainda com essa visão utilitária
de se relacionar com os animais e plantas: estes devem estar disponíveis a qualquer
intervenção científica, tudo em nome do progresso e do conhecimento. Além do uso de
animais para experimentos em laboratório, a ciência mistura natureza, biotecnologia e
engenharia genética para a criação de outras formas de vida, incluindo a produção industrial
de animais e alimentos geneticamente modificados. Nesse contexto, Thomas Kesselring
argumenta com exemplos sobre as fronteiras inexistentes entre técnica e natureza:

Estamos diante de uma situação que é única na história da Cultura: os âmbitos da


técnica e da Natureza começam a se confundir. Em primeiro lugar, hoje é possível
criar processos que até então não ocorreram na Terra. Como um exemplo, menciono
apenas a produção de uma série de isótopos radioativos, que antes não se
encontrava na Natureza terrestre. Em segundo lugar, pode-se patentear bactérias ou
organismos construídos pela tecnologia genética, o que indica que caiu a fronteira
tradicional entre produtos da engenhosidade técnica e os seres vivos da Natureza.
Em terceiro lugar, o nosso estilo de vida, dominado pela técnica em geral, tem
conseqüências primárias e secundárias não reversíveis, o que nos força a contar com
eles como se fossem eventos naturais (2000, p. 167).

Muito além de uma dessacralização da natureza como obra divina, a espécie humana
submete o mundo natural em experiências científicas sem prever as consequências de suas
ações. Ao continuar com o olhar sobre a história, podemos encontrar outras evidências sobre
isso. Pensando nisso, nos encontramos com a tese A cosmopolítica dos animais, de Juliana
Coutinho (2017) em que ela discute sobre a complexidade que exprime o tema sobre os
direitos dos animais e a ética humana. A autora tensiona o quanto é difícil deixar de pensar
que os animais são coisas e que não possuem direitos, e a partir de seus comportamentos
morais, decidimos por matá-los ou não, descartando a possibilidade de pensarmos neles,
também, como seres políticos e que possuem seus agenciamentos.

O sofrimento, por mais terrível e sério que seja, retira dos animais – não só dos
animais – a sua possibilidade de agir: perguntar ‘eles podem sofrer?’ consiste em
perguntar-se ‘eles podem não poder? [...] O que mudaria caso o eixo se deslocasse,
caso se considerasse aquilo que os animais podem? O modo como respondem, agem,
criam? Em suma, que outra política se abriria para além da piedade, do poder
soberano, da inoperosidade? (IDEM, p. 121, grifos da autora).

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Precisamos debater o quanto somos responsáveis e quais argumentos temos para
escolher quem vive e quem morre; quem pode ser domesticado e quem pode ser caçado, para
servir de alimento. Nesse contexto, podemos ainda pensar com Coutinho (2017) para que
servem os zoológicos? Difícil chegar a uma conclusão ou, pelo menos, a uma solução para
dirimir os interesses políticos e econômicos quanto à escravização, ao tráfico, confinamento e
sacrifício de animais. No entanto, precisamos pensar sobre isso!
Ao voltar na história, ela nos mostra que a natureza vai ficando invisível e dissociada
do ser, e áreas de silêncio na educação moderna vão sendo criadas (GRÜN, 2006). É Descartes,
com a supervalorização das ciências matemáticas e sua objetividade (a qual nega o sensível),
que coloca o homem (branco europeu) na posição de senhor e dono da natureza, fazendo com
que perdêssemos a capacidade de pensar a crise ambiental numa dimensão histórica e ético-
política, pois fomos forçados ao esquecimento do pensamento tradicional: é preciso deixar a
emoção e os sentidos de lado e dar espaço à razão, pois esta não é suscetível a erros (GRÜN,
2006).

Com os ensinamentos científicos de Bacon e Descartes a natureza se torna uma outra


coisa, muito diferente dos modos sentidos e vividos em tempos anteriores. Depois
das fabricações científicas modernas os modos como nós, humanos
contemporâneos, a sentimos já é outro, atravessado que está por novas verdades e
criações. Daí porque a enxergamos descolada de nós, olhando para o mundo
enquanto objeto natural passível de desbravamento e compreensão racional. Um
independente recurso a ser consumido, em prol do homem, da vida e do mundo
moderno. De um lado, mundo físico, de outro, mundo humano, científico e racional.
Retiramos da natureza qualquer possibilidade histórica e cultural que pudesse ser
pensada (HENNING, 2019, p. 770).

Desse modo, a era Antropocêntrica emerge com dois promissores projetos científicos:
de um lado um projeto para conhecer e dominar a natureza e, do outro, um projeto para a
construção e o desenvolvimento de uma suposta humanidade.

Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente
alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e
da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros
urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de
origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade (KRENAK, 2020, p. 14).

Para o líder indígena Ailton Krenak (2020), enquanto a sociedade moderna criava
estruturas para uma ideia de humanidade, fomos cada vez mais nos distanciando da Terra
como um organismo vivo do qual somos parte e passamos a pensar que o humano é uma coisa
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e a natureza é outra. Esse distanciamento aconteceu enquanto uma revolução cultural
fervilhava junto com o capitalismo que ajustava suas engrenagens. Como prova desse
distanciamento, temos os interesses políticos e econômicos de uma minoria elitizada que não
veem limites em suas intervenções na Terra. Em nome do progresso e desenvolvimento a
qualquer custo, a civilização moderna, desbravadora do mundo selvagem, não previa que
inúmeros desastres ambientais pudessem ocorrer devido à apropriação e exploração da
natureza. Henning (2019, p. 767) nos lembra de vários eventos recentes que ocorreram:

O acidente nuclear em Chernobyl em 1986 levou a morte quase 80 mil pessoas,


estimando uma radiação nuclear cem vezes maior que as bombas de Hiroshima e
Nagasaki. O derretimento de petróleo na embarcação Exxon Valdez, em 1989, foi
uma maré negra de 36 mil toneladas de petróleo, afetando a fauna e a atividade de
pesca, além de matar 250 mil aves. O derrame tóxico de alumínio em Ajka, cobriu de
um mar vermelho em 2010 a cidade da Hungria, afetando milhares de vítimas devido
ao alcance da substância. O acidente nuclear de Fukushima ocorreu em 2011, devido
ao derretimento de três reatores nucleares, evacuando da área 300 mil pessoas; seus
efeitos foram comparados ao acidente de Chernobyl, alcançando também o nível 7
da Escala Internacional de Acidentes Nucleares. O rompimento da barragem de
Mariana, em 2015 devastou o local e, cobrindo o município de lama, contaminou o
Rio Gualaxo, acabando com diversos ecossistemas.

Além desses eventos, inúmeros artigos denunciam as queimadas na Amazônia


(MUTZ; NARCISO, 2022; MANGUEIRA, 2021; GONÇALVES et al, 2012; DIAS, 2015); os estudos
de Anna Tsing (2019) falam sobre as ruínas provocadas pela ação humana sobre variadas
paisagens; Geneviève Azam (2020) em seu livro Carta à Terra: E a Terra responde, vai tratar
dos efeitos catastróficos que o mundo da extração, da competição, da produção máxima
produzem no meio ambiente:

Trata-se sem dúvida de colapsos. Não o “grande colapso”, um sublime big bang final,
nem um conto de ficção científica de um outro tempo e uma outra dimensão, nem
as cenas hollywoodianas do fim do mundo, acessíveis das confortáveis poltronas de
cinemas de alta tecnologia, mas desastres terrestres de larga escala, vividos e
experimentados localmente e de maneira íntima, específicos e de dimensão
universal (AZAM, 2020, p. 104, grifos da autora).

Em sua obra, a autora, num diálogo com a Terra, cita os grandes feitos humanos que
abalam desde as mais profundas camadas do solo e do mar, extraindo toda e qualquer matéria
orgânica e depositando lixo tóxico; até a poluição das camadas atmosféricas que sustentam a
vida no planeta. Entre os mais recentes estão os grandes incêndios que atingiram a Suécia,
Portugal, a Grécia, a Califórnia, a Austrália no verão de 2018; as inundações em Miami,

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Bombaim, nas Ilhas Sundarbans e em Bangladesh no verão de 2017; e a radioatividade que se
espalha pelos oceanos, oriunda de Fukushima. “O envenenamento da vida não está mais
confinado a lugares particulares e herméticos, a lugares malditos. É um evento cotidiano
universal, amplificado pela corrida louca e enlouquecedora do capitalismo global” (IDEM, p.
105).
O passado nos mostra que a colonização produzida pelos brancos europeus tinha
como objetivo tirar os povos da escuridão e levá-los à luz da civilização, estabelecendo apenas
uma forma verdadeira de habitarmos a Terra. Nesse contexto, podemos nos perguntar, junto
com Krenak (2020), se somos mesmo uma humanidade? Ou melhor: sendo animais da raça
humana (Homo Sapiens) que pensa e tem o domínio sobre o conhecimento, como inventar
outras histórias que possam incluir e construir novos mundos, ao invés de excluir e destruir o
que temos?
Para o autor, narrativas que valorizam as relações do humano com uma natureza
considerada um organismo vivo são esquecidas em função de uma narrativa global, superficial,
que conta sempre a mesma história e montam kits superinteressantes para o nosso
entretenimento. “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em
sociedade, do próprio sentido da experiência da vida” (IDEM, p. 26). Ao nos distanciarmos da
natureza, vivemos numa civilização abstrata em que a diversidade é suprimida e a pluralidade
das formas de vida e de existência são negadas, produzindo, assim, modos de existir em que a
experiência se dá pelas estratégias do consumismo, desaparecendo qualquer relação possível
com o mundo natural (KRENAK, 2020). Por essa via de pensamento é que damos continuidade
aos estudos sobre o modo como a humanidade relaciona-se com a natureza, pelas artimanhas
do desenvolvimento do capitalismo com o foco em uma produção de uma “Terra máquina”
(AZAM, 2020, p. 22).

As relações com a natureza no contemporâneo: outros olhares e novas sensibilidades

Séculos XVI, XVII e XVIII, o Iluminismo dando luz ao progresso e ao capitalismo


desenfreados; populações crescendo cada vez mais e buscando melhores condições de vida;
e a natureza num estado de servidão imposto pela espécie humana: é necessário destruir e
explorar para dar conta de tantas demandas que só aumentam ao longo dos séculos.

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A intenção não é discutir se viver aliados à técnica é bom ou ruim, longe dessa
dualidade. O que está sendo tensionado é a forma como as relações com a natureza foram
acontecendo com o surgimento da ciência e do progresso com promessas sedutoras; e quais
efeitos foram sendo produzidos para que uma suposta humanidade/civilização fosse
empreendida. Essas questões são necessárias problematizar se almejamos a invenção de
outras relações com o mundo natural, já que houve um abandono dos instintos e modos
sensíveis de ser dos indivíduos modernos, quando estes se entregaram ao mundo da razão. O
que se busca com essas indagações é identificar os vazios provocados pela visão
antropocêntrica e, talvez, criar potentes rizomas (DELEUZE; GUATTARI, 1995), inventando
outros modos de existir contemporâneos equilibrando com as necessidades do mundo
natural, principalmente, nos enxergando como parte e responsáveis pela crise ambiental.
Keith Thomas (2010), em seu livro O homem e o mundo natural, destaca que entre
1500 e 1800 novas sensibilidades emergiram em relação aos animais, às plantas e à paisagem.
Mesmo com toda a corrente de pensamento racional baconiana e cartesiana, existiam espaços
para contestações sobre o modo como o ser humano relacionava-se com os animais e plantas
e seu direito de explorar todas as espécies em benefício próprio.
Entre os séculos XVII e XVIII se debatia teologicamente sobre o bem-estar dos animais
em serem domesticados, pois estes podiam se multiplicar e serem civilizados, ao invés de
estarem à mercê de feras predadoras. Os que eram selvagens eram caçados e mortos (pois
apresentavam perigo) e, ainda, existiam os animais que eram úteis para a prática de
vivissecção 5. Além disso, começou o incentivo à criação de cavalos para o meio de transporte
e para serem empregados na guerra, na caça, na agricultura (IDEM).
Enquanto que na época medieval a taxonomia do reino animal aparecia em meio a
símbolos e significados inseridos na cultura cristã e saberes populares, no início da
modernidade os animais e as plantas eram classificados de acordo com sua aparência física,
comestibilidade, utilidade e estatuto moral, sem nenhuma relação com o ser humano e
totalmente antropocêntrico: “[...] essa nova forma de olhar a natureza teve acentuado

5
A vivissecção é o ato de dissecar um animal vivo com o propósito de realizar estudos de natureza anatomo-
fisiológica. No seu sentido mais genérico, define-se como uma intervenção invasiva num organismo vivo, com
motivações científico-pedagógicas.
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impacto sobre a percepção dos indivíduos comuns e não cientistas, terminando por destruir
muitos pressupostos populares” (THOMAS, 2010, p. 72).
No final do século XVII, após várias discussões sobre a existência dos animais e plantas
para o bem-estar e utilidade do ser humano, novas sensibilidades começaram a surgir no meio
social e na doutrina cristã, dando espaço ao pensamento de que toda a criação divina deveria
ser usada com respeito, protegida e tratada com gentileza. Esse pensamento mais acolhedor
foi estimulado, principalmente, pela transformação social industrial: “O triunfo da nova atitude
esteve estreitamente vinculada ao crescimento das cidades e emergência de uma ordem
industrial em que os animais se tornaram cada vez mais marginais ao processo de produção”
(IDEM, p. 258).
Durante este período, também houve crescente interesse em cultivar jardins e hortas
em propriedades (como passatempo nas horas livres), plantar árvores nas cidades (com cunho
estético acompanhando a arquitetura) e preservar as árvores das matas. As pessoas
apreciavam passear nos bosques e florestas, não tratando mais como uma terra inculta e
selvagem, mas como refúgio daqueles que gostavam da solidão e que fazia bem ao deleite e
ao espírito humano. Ter uma casa no campo para passar o final de semana, por exemplo, era
o desejo de refrigério e descanso de todas as classes sociais, pois viam no espaço urbano um
infatigável anseio pelo progresso.

Desse modo, essas novas sensibilidades – que provinham, predominantemente, da


classe burguesa – passaram a primar pela valorização da natureza. Mas, nesse caso,
a natureza diferia daquela objetificada pelo conhecimento científico. Trata-se, então,
de uma nova leitura da natureza: essa seria representada por uma visão idílica e
bucólica da vida no campo. Também não se trata da vida selvagem, inóspita, mas de
uma natureza domesticada de acordo com determinados parâmetros estéticos
(GUIMARÃES et al., 2009, p. 17).

Mais tarde, no início do século XVIII, houve uma tendência em encontrar, na


diversidade de espécies animais, justificativas de projetar categorias de diferenciação social e
arranjos políticos entre os seres humanos, por conta de uma hierarquia presente entre o reino
animal e sua organização social e divisão de tarefas. “[...] não somente a hierarquia das
espécies naturais era invocada para justificar as desigualdades sociais no seio da espécie
humana. Mesmo no interior de cada espécie natural acreditava-se que havia divisões sociais e
políticas estreitamente semelhantes às presentes no mundo dos homens” (THOMAS, 2010, p.
85). Ainda nesse período, se discutia sobre as matanças de animais para serem usados como
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alimentos. Esse fato causava constrangimento e suscitava discussões se o ser humano deveria
ser carnívoro, pois as pessoas não gostavam de ver o animal, por exemplo, como o coelho que
saltitava pelos campos, e depois morto, costurado e servido à mesa. “A ocultação dos
matadouros ao olhar público tornou-se um recurso necessário para evitar um choque
excessivamente forte entre a realidade material e as sensibilidades privadas” (THOMAS, 2010,
p. 424). Sendo assim, no final do séc. XVIII foi crescendo o número de indivíduos que
considerava o domínio do homem sobre a natureza algo abominável e totalmente contrário
aos sentidos morais e estéticos.

Em contraposição à natureza como um objeto que deve ser fracionado, dividido pelo
conhecimento científico, aparece uma natureza vista como bela e inspiradora; um
refúgio para a burguesia cansada da fumaça dos centros industriais. Por outro lado,
não deixa de ser, também, uma natureza que precisa ser domada, domesticada, para
corresponder aos parâmetros estéticos almejados por tais sensibilidades: essa
deveria ser uma natureza que não oferecesse perigos e com a qual se pudesse viver
pacificamente (GUIMARÃES et al., 2009, p. 18).

Entre os séculos XIX e XX houve uma ruptura com todo esse pensamento do passado
e naturalistas, ao invés de perceber as analogias do ser humano com a natureza, começaram
a estudá-la em si própria. Ou seja, nesse período emergia uma taxonomia mais neutra e
ampliada, considerando ainda a separação entre sociedade humana e natureza, no entanto,
esta última com existência independente e ritmo próprio. Esse pensamento se deu
gradativamente e muito lento, pois “Compreender que o mundo da natureza era autônomo,
devendo ser entendido em termos não humanos, era ainda uma lição quase impossível de
entender” (THOMAS, 2010, p. 128).
A partir dos estudos de Thomas (2010), podemos inferir que existe uma grande
contradição que atravessa toda a civilização humana desde os primórdios da modernidade até
hoje: de um lado temos o conforto, bem-estar e felicidade materiais do ser humano; e, do
outro, temos uma impiedosa exploração de todas as formas de vida. Um conflito jamais
resolvido que permeia interesses políticos/econômicos/científicos em direção a um suposto
progresso e a uma suposta humanidade sublime; em conjunto com um mundo natural que
precisa ser cuidado, pois se encontra à beira de um colapso.
Nesse ínterim, coadunamos com Guimarães et al. (2009) ao entendermos a natureza
como uma produção social, cultural e histórica. Com isso, o autor não desvaloriza toda a
taxonomia das espécies biológicas construída pela ciência por todos esses séculos, no entanto,
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quando nos aproximamos dos estudos sobre a história das ciências ou dos estudos
culturais da ciência, vemos o quanto esta é moldada e influenciada pelos valores
sociais e pela cultura. Desse modo, os conhecimentos científicos sobre a natureza
foram e são produzidos em meio a negociações, confrontos de ideias e relações de
poder, os quais deixam suas marcas nas formas como esse conhecimento é
construído e divulgado (p. 12-13).

A partir desse tom é que chegamos ao século XX. Dentre os acontecimentos que
marcaram esse período, estão os movimentos contraculturais (por exemplo, hippies, ativistas
ambientais...), os quais questionavam o capitalismo desenfreado que continuava a destruição
da natureza, e outros movimentos (estudantis, feministas...) que contestavam as
desigualdades sociais, raciais e de gênero. “A partir dessas condições de possibilidade,
emergem vários movimentos – protagonizados, principalmente, pela juventude: pacifistas,
feministas, antirracistas e, também, os primeiros movimentos ecológicos” (GUIMARÃES et al.,
2009, p. 19). Depois da metade do século, abriu-se espaço para a emergência de outros olhares
em relação à natureza, até mesmo voltados a uma percepção romântica existente no passado.

[...] essas leituras articulam-se às perspectivas românticas, visto que se opunham à


dominação e destruição do ambiente natural e seguem buscando a valorização da
natureza. Contudo, essa natureza não seria mais aquela da vida campestre, vista
como domesticada e bela. Essa “nova” natureza seria aquela caracterizada como
frágil, ameaçada, que se precisaria proteger, cuidar, preservar: a natureza selvagem,
caótica e, ao mesmo tempo, entendida como equilibrada e harmoniosa. Surgem,
assim, as áreas de preservação, os projetos destinados à conservação da natureza, a
legislação ambiental e, inclusive, a educação ambiental (IDEM, grifo do autor).

Juntamente a esses movimentos contraculturais, emergem os discursos ecológicos


baseados no medo, pintando um cenário catastrófico para o futuro em que a extinção das
espécies e da biodiversidade é um acontecimento que já se encontra em vias de recuperação
duvidosa. Com a impensável intervenção desmedida na natureza, o ser humano é o causador
de todas as crises ambientais e mudanças climáticas.

Hoje, as feições que o Império do Homem assumiram atendem por nomes como
Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Mudança Climática e Sexta Grande
Extinção, entre outros. Cada um desses conceitos dá conta de um aspecto ou
dimensão de como a natureza ou as "meras coisas" responderam ao projeto de
dominação (COUTINHO, 2017, p. 62, grifo da autora).

Apresenta-se, então, um ambiente que está em ruínas e se nossos hábitos e modos


de vida não forem reavaliados, a espécie humana também estará em extinção. Dessa forma,
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podemos perceber que, em meio às tramas do mundo moderno e do capitalismo consolidado,
não só a natureza foi objetificada, mas o ser humano também foi sendo tratado como tal.
Contudo, por não encontrar na Modernidade explicações que dessem conta de
tamanha multiplicidade, complexidade, subjetividade e provisoriedade existentes nas relações
do mundo, vai surgir o movimento chamado por autores como Lyotard (1984), Peters (2000),
de Pós-modernidade. Tecendo críticas à Modernidade, principalmente colocando as verdades
produzidas na ciência sob suspeita e rejeitando a universalização dos saberes, filósofos como
Friedrich Nietzsche, Martin Heidegger, entre outros, serão os precursores de um novo
pensamento sobre as questões do mundo.
Nesse contexto, no final do século XX novos espaços para discussões e novas histórias
são criadas; e outras problematizações em torno da relação cultura-natureza, num esforço de
romper com as fronteiras estabelecidas pela modernidade, encontram novos ritmos e tons. A
intenção é superar o pensamento moderno de um distanciamento entre humano e natureza;
e, assim, inventar outros modos de convivência que são atravessados por singularidades
existentes em todas as espécies, as quais são capazes de contribuir para o “Bem viver”
(ACOSTA, 2016) de todos os que habitam o planeta.

Caíram as últimas fortalezas da defesa do privilégio da singularidade [humana] – a


linguagem, o uso de instrumentos, o comportamento social, os eventos mentais;
nada disso estabelece, realmente, de forma convincente, a separação entre o
humano e o animal. Muitas pessoas nem sequer sentem mais a necessidade dessa
separação; muitas correntes da cultura feminista afirmam o prazer da conexão entre
o humano e outras criaturas vivas. Os movimentos em favor dos direitos dos animais
não constituem negações irracionais da singularidade humana: eles são um lúcido
reconhecimento das conexões que contribuem para diminuir a distância entre a
natureza e a cultura (HARAWAY, 2009, p. 40).

O desafio é pensar diferente do que se está acostumado, numa perspectiva de se abrir


a novos olhares. E de que maneira podemos nos imaginar outros nas insurgências
contemporâneas? Como pensar em outras relações com os seres vivos, não humanos,
acolhendo-os como integrantes partícipes na constituição de um ambiente comum de vida,
em que todos importam? Com essas questões, chegamos ao século XXI e depois de percorrer
as marcas históricas que caracterizaram as relações humanas com o mundo natural,
encontramo-nos numa espécie de cruzamento... Para onde olhar?

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Há momentos na vida em que a questão de saber se é possível pensar de forma
diferente da que se pensa e perceber de forma diferente da que se vê é indispensável
para continuar a ver ou a refletir. [...] Mas o que é então a Filosofia hoje – quero dizer,
a atividade filosófica – senão o trabalho crítico do pensamento sobre si mesmo? E se
ela não consistir, em vez de legitimar o que já se sabe, em tentar saber como e até
onde seria possível pensar de modo diferente? (FOUCAULT, 2017, p. 191-192).

Não sabemos até onde é possível pensar de modo diferente, mas quando buscamos
de que forma pensar diferente nos encontramos com a “vida em ruínas” nos estudos de Anna
Tsing (2019). Nesse momento, caminhando com a autora é que trazemos alguns contornos
para, talvez, suscitar que outros modos são possíveis de habitar o planeta, considerando que
existem naturezas-culturas (e não natureza e cultura), coabitando a partir de socialidades
humanas com não humanas. A antropóloga (IDEM, 2019), em seu livro Viver nas ruínas:
paisagens multiespécies no Antropoceno, nos convida a olhar, de um jeito sensível e afetuoso,
para as novas ecologias provocadas pelo reino “feral 6”. Este reino em que, para além de toda
a perturbação e intervenção da mão humana no ambiente natural, espécies não humanas
possuem a capacidade de transformar-se, também, numa condição de vida em ruínas. Para a
autora:

O termo Antropoceno marca uma diferença: à medida que as infraestruturas


industriais e imperiais se espalharam, os efeitos perigosos não projetados
dispararam. Se somarmos os comportamentos ferais das coisas não vivas, do dióxido
de carbono à radiotividade e ao lixo plástico, poderemos ver a terra infundida nesse
tipo de ferocidade perigosa. Esse é o resultado da transformação da paisagem na
qual investidores, formuladores de políticas e engenheiros não se importam com
efeitos não planejados, mesmo quando obtêm acesso a enormes campos de ação
(TSING, 2019, p. 14-15).

Pensando nessas questões, Tsing vai além dos perigos ferais e nos mostra quais
benefícios podem surgir dessa relação. São outros valores provenientes das ações não
humanas que nos desafiam a querer aprender e, principalmente, observar na natureza outras
socializações possíveis. Por mais que tentemos explorar os recursos naturais, prever e
controlar as condições de vida do planeta (do ar, da terra, da água, do fogo, dos gases...), há
uma esfera natural que se manifesta ferozmente e nos surpreende. A autora fala de paisagens
multiespécies e multiculturais que se formam em campos abandonados ou precarizados pela
ação humana.

6
“Feral” aqui se refere a reações não projetadas de não humanos às infraestruturas humanas (TSING, 2019, p.
14). Essas reações tanto podem ser benéficas quanto maléficas ao ser humano.
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As paisagens globais de hoje estão repletas desse tipo de ruína. Ainda assim, esses
lugares podem ser animados apesar dos anúncios de sua morte; campos de ativos
abandonados às vezes geram novas vidas multiespécies e multiculturais. Em um
estado global de precariedade, não temos outras opções além de procurar vida nessa
ruína (TSING, 2019, p. 7).

A partir de um entrelaçamento da pesquisadora com os movimentos do mundo não


humano (o qual ela considera como agentes), dentre eles os fungos, as árvores, os animais, os
solos e também as pessoas que intervém nesses movimentos, ela descobre novas formas de
vida, para além dos domínios industriais e das "plantations 7 de ecologias simplificadoras”
(TSING, 2019). Em suas escritas, numa imersão apaixonada na vida dos não humanos, Tsing
carrega como característica um amor multiespecífico (algo antes negado a aparecer no mundo
científico), em que se permite andar em caminhos desconhecidos da ciência natural com a
mobilização das pessoas (especialistas ou não) a sua volta. “A intervenção crítica desses novos
estudos científicos é que eles permitem que a aprendizagem na ciência natural e todas as
ferramentas das artes transmitam uma conexão apaixonada” (IDEM, p. 60). Nesses caminhos,
novos encontros com a natureza são possíveis.

A conjuntura histórica que torna isso possível é nossa preocupação compartilhada


com a diminuição da habitabilidade da terra, que cada vez mais e mais é reduzida a
recursos para processos industriais e acumulação capitalista. [...] Preocupações sobre
o Antropoceno possibilitam novas conversas entre pesquisadores das ciências
naturais e das humanidades, que podem interromper uma era anterior, em que as
portas entre as ciências e as humanidades eram fechadas (TSING, 2019, p. 93).

A colaboração de nosso estudo está em pensar nas práticas possíveis de


habitabilidade, em que as relações sociais acontecem em alianças de paisagens multiespécies
– socialidades mais que humanas. Anna Tsing argumenta que precisamos reconhecer que
somos incapazes de sobreviver sem as outras espécies. “Somos seres dentro de teias
ecológicas e não fora delas. Paisagens multiespécies são necessárias para sermos humanos”
(IDEM, p. 94). Podemos pensar com ela que é possível viver junto com outras espécies e tentar
compreender as necessidades do outro em processos de mutualidade.

7
“Por plantation quero dizer aquelas simplificações ecológicas nas quais os seres vivos são transformados em
recursos – ativos futuros –, removendo-os de seus mundos de vida. As plantations são máquinas de replicação,
ecologias evocadas para a produção do mesmo” (TSING, 2019, p. 206).
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Novamente, isso nos remete aos nossos modos de ser e realizar a nossa humanidade,
pensando de que forma a nossa vida está implicada em todo esse processo que é ético e
político nos encontros e desencontros com os animais e outros seres viventes.
E para pensar em conjunto sobre essas socialidades, sobretudo com os animais,
buscamos em Coutinho (2017) e Haraway (2021) algumas inferências para avaliarmos o
quanto é importante pensar em nossas relações com os outros seres:

Seja pela perda de habitat e modos de vida, seja por sua categorização como animais
de companhia, pestes, escravos, cobaias ou trabalhadores, nos imensos campos em
que se os mantêm confinados, pela reprodução forçada, pela morte impedida e pelo
extermínio, os animais estão implicados e são atores numerosos e potentes nas
histórias e estórias que tecemos hoje, no começo do século XXI, sob o signo do
capitalismo liberal, na época geológica chamada Antropoceno (COUTINHO, 2017, p.
13).

Do mesmo modo, Haraway (2021) colabora com seus estudos, principalmente


feministas, para ampliarmos nossas relações com os animais, especificamente os cachorros,
trazendo em sua obra O manifesto das espécies companheiras, uma narrativa que se importa
com uma ética e uma política comprometida com a “alteridade significativa”, expressão que
ela usa para falar da relação com sua cadela Cayenne. “Somos, constitutivamente, espécies
companheiras. [...] Um outro significativo uma para outra, em diferença específica,
significamos na carne uma forte infecção de desenvolvimento chamada amor. Esse amor é
uma aberração histórica e um legado natural-cultural” (IDEM, p. 10-11, grifo da autora).
Desde a domesticação dos animais, podemos dizer que os modos de vida humanos
foram fortemente transformados pela convivência com cachorros e outros animais de
companhia, trazendo vários benefícios. Nesse viés, o convite dessas autoras é o de superar
nosso pensamento formatado pelas verdades da modernidade e aguçar o olhar, a escuta e o
respeito a esses seres que vão nos constituindo e nós ajudamos a constituir, num movimento
em que todos importam. “[...] quando reduzimos nossa reação de fuga ou luta em relação a
naturezas-culturas emergentes e paramos de ver apenas reducionismos biológicos e
singularidades culturais, enxergamos tanto pessoas como animais com outros olhos” (IDEM,
p. 41).
Coutinho (2017) diz que práticas com a arte e a ciência talvez possam nos ajudar a
pensar em outros modos de existir e conviver com os animais. Já que o mundo está em
constante mudança e é resultado contingente e provisório de infinitas relações, podemos
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pensar que as experiências de disponibilidade e entrelaçamento com os animais provocam a
dissolução de dualismos: não faz mais sentido separar humano e animal, somos todos capazes
de constituir mundos que podem ser atravessados “por afetos outros na diferença específica”
(p. 217).

Reconhecer, produzir e inventar oddkin (parentes estranhos) diante uns dos outros;
interessar-se, tornar-se disponível e capaz, autorizar; entrar em fluxos
multiespecíficos, imaginativos, conceituais, em discurso e em ação são modos de
abrir portas para a criação de mundos em que animais humanos e outros-que-
humanos coexistam de um modo intensamente cosmopolítico (IDEM, p. 219,
tradução minha).

Pensando com essas autoras, que outras socialidades e alianças podemos praticar
com o outro (humano ou não) de modo a produzir algo que não está posto? Parece-nos que,
em todo esse contexto, não podemos voltar atrás e nem pensar a natureza dissociada de
qualquer forma de vida. Somos todos natureza e precisamos aprender a habitar o planeta,
cada um na sua diferença, porém, numa coletividade e socialidade harmônicas.

Considerações finais

O artigo buscou discutir sobre alguns traçados produzidos no interior da


modernidade, produzindo nossas relações com a natureza. Temos uma relação que deixa
rastros de destruição, mas, também, temos uma história a ser escrita. Assim como temos
capacidade de andar a passos largos em direção ao domínio do conhecimento, também
podemos inventar outros possíveis, outros modos de habitar o mundo. Outros modos que,
quiçá, possam nos levar a deslocamentos, principalmente em nossas pesquisas, pela crítica do
próprio pensamento. Esse exercício não é fácil, mas é urgente!
Essa escrita abordou, superficialmente, as questões sociais, políticas e econômicas
que envolvem nossas relações com a natureza, pois a intenção foi provocarmo-nos a pensar
nos desdobramentos produzidos em nome de uma época, de um acontecimento ímpar que
consolidou uma cultura antropocêntrica, científica e definidora de formas específicas de
conviver com a natureza. Mesmo sabendo que tudo está em ruínas talvez possamos articular
outros modos de convivência e experiências de viver nossas relações com o mundo, pois tudo
está interligado e tem a ver com os sentidos que damos ao mundo.

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Essa escrita termina aqui, mas as problematizações continuam. O desejo é que nossos
pensamentos possam se aliar a outros, e produzir outras coisas com as paisagens em ruínas
de Anna Tsing; com a cosmopolítica de Juliana Coutinho; e com a alteridade significativa de
Donna Haraway. Certamente nossos autores nos inspiram a continuar pensando politicamente
o contemporâneo e a compor outras histórias em nossas relações com a natureza.
Ao concebermos a ideia de que somos múltiplos – corpo, vida, natureza, cultura,
pensamento, sensibilidade etc., um horizonte se abre com infinitas possibilidades de nos
relacionarmos com o mundo e com o outro, no esforço de superar a racionalidade que
herdamos e nos desafiando a criar outras ecologias conectadas a nossa dimensão sensível,
entendendo que esta é atravessada por vivências éticas e estéticas. Essa dimensão, então,
encontra-se com as naturezas-culturas emergentes de Dona Haraway (2021), e as socialidades
mais que humanas de Anna Tsing (2019) as quais poderão nos ajudar a problematizar as
relações contemporâneas com o mundo natural, e que foram discutidas no decorrer da escrita.
O que importa é dissolver as certezas que nos fixam no solo da representação e da linguagem
reducionista; criar deslocamentos e composições afirmativas com a vida e a natureza; partindo
do que se é, mas, também, tensionando o que somos: que outras éticas e estéticas podemos
inventar com a natureza no encontro com a vida? Cabe a nós a criação.

Referências

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Submetido em: 25-03-2023


Publicado em: 13-08-2024

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